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Fatores Externos: as políticas públicas e a desintegração do processo de formação da identidade da supervisão

SUPERVISÃO DE ENSINO: DOS MITOS HISTÓRICOS CONTRADITÓRIOS À IDENTIDADE EMANCIPATÓRIA POSSÍVEL

3.2.1 Fatores Externos: as políticas públicas e a desintegração do processo de formação da identidade da supervisão

O recorte de análise realizado até o momento, com base nos excertos dos depoimentos dos supervisores, retrata uma lógica externa, ou seja, a influência direta dos marcos ideológicos, contornados por políticas públicas, que criaram formas de administrar os espaços e tempos de trabalho, impactando na subjetividade dos trabalhadores, desarticulando a atuação dos supervisores de forma institucional.

Tempo e espaço se recriam no imaginário:

63 Excerto depoimento grupo focal de 02/05/2007. 64 Excerto depoimento grupo focal de 02/05/2007.

65 Excertos dos depoimentos de três supervisores que participaram do grupo focal em 02/05/2007 no Sindicato APASE.

Disse Minerva, a deusa de olhos pulcros, E ao Olimpo subiu, à régia e eterna Sede dos deuses, onde a tempestade Ruge jamais, e a chuva não atinge E nem a neve. Onde o dia brilha Num céu limpo de nuvens e ameaças. Felicidades sempiterna gozam Ali os seus divinos habitantes.66

Aos supervisores que esperavam encontrar o Olimpo, retratado acima, na Odisséia, por Homero, restou apenas a busca pelo paraíso perdido.

Essa operação ideológica externa encontra justificativas várias: redução no quadro de funcionários de apoio nas escolas e na DE; falta de infra-estrutura; ausência de investimentos na formação continuada do supervisor; sobrecarga e ênfase nas tarefas administrativas, no fluxo de comunicação Escola - DE - SEE; baixos salários; descontinuidade de programas e políticas públicas, entre outros. Sem considerar a formação inicial!

O contexto e complexidade das regulamentações legais para o desenvolvimento da ação supervisora criou o perfil e o supervisor ideal. As políticas neoliberais cumpriram o último trabalho de Hércules67: trouxe do mundo de Hades (inferior, dos mortos) ao mundo superior, Cérbero (cão de três cabeças e pescoços eriçados como os de serpentes), após subjugá-lo. O supervisor ideal transforma-se em monstro sem identidade: cada cabeça vê uma realidade.

Considerado monstro causa medo em todos a sua volta. Até aos que só o conhecem de ouvir falar. Apesar da truculência metafórica ela nada perde a realidade.

Não conheço a trajetória do supervisor. O conhecimento que tenho da realidade diz respeito ao meu tempo como aluna. Lembro-me que chegavam dois, três supervisores na escola e todo mundo saia correndo. Era o fiscalizador! Passava um pouco e vinha

66 Apud p. 10: BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia. Trad. David Jardim Júnior. 25 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

67 Hércules é conhecido na mitologia por sua força e façanhas. Por ser filho de Júpiter (ou Zeus em grego) com uma mortal Alcmena, despertou a ira de Juno (Hera), esposa daquele. Por meios astutos esta consegue deixar Hércules sob as ordens de Euristeus. E assim são conhecidos os doze trabalhos de Hércules, façanhas perigosas impostas com a finalidade de matá-lo.

“a bronca”. O diretor entrava nas salas e avisava da presença da supervisão. Assim, ficou a noção de medo. (g.n.)68

O supervisor ideal, criação de um perfil ideal, apresenta a reunião de um conjunto de características institucionais (atribuições e competências legais) dos deuses do Olimpo, mitologicamente reunidas em um só deus, que sabemos não pertencer a este mundo. Diante da inexistência do supervisor, resta-nos um Cérbero que, subjugado, torna-se monstro de si próprio: vê várias faces sem saber qual a sua; vê dois mundos sem saber ao qual pertence. Mito e realidade confundem-se.

Mas, “o pensamento corresponde à realidade somente na medida em que transforma a realidade ao captar e decifrar sua estrutura contraditória [...]” (MARCUSE, 1968).

Captar e decifrar a estrutura contraditória em que estamos imersos vai além das análises dos fatores externos que determinaram ou condicionaram nossa identidade. Há necessidade de uma tomada de consciência, primeiramente, no plano individual do que fizeram de nós, relembrando Sartre69, para somente depois vislumbramos outras opções para nossa existência.

Alguns questionamentos “do que fizeram de nós” já são percebidos pela supervisão:

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Na verdade tudo acontece porque o próprio Estado não cumpre o seu papel. As escolas estão completamente afogadas porque não têm funcionários. Algumas só possuem funcionários contratados. Os poucos que ainda existem estão de licença ou afastados. Por essas dificuldades as coisas não acontecem adequadamente nas escolas, há muitos “erros”. Estes acontecem devido à falta de estrutura das escolas, falta de capacitação técnica dos funcionários e entre outras. E, para evitar os “erros” e minimizar seus impactos acabam “jogando” para alguém conferir. O diretor não dá conta, porque acaba exercendo mil papéis dentro da escola, tudo é de sua responsabilidade. Então, acaba “caindo” nas mãos da supervisão: conferência de portarias, pagamentos e outras coisas que não precisaríamos realizar. Mas, se não fizermos o pagamento não sai; parece que dá tudo errado. Por isso, acabamos assumindo um papel que não é efetivamente o nosso.70

68 Excerto do depoimento no grupo focal de 02/05/2007 de uma supervisora.

69 SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada: ensaio da antologia fenomenológica. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 2001. Em sua obra Sartre afirma que “o importante não é o que fazemos de nós, mas o que nós fazemos daquilo que fazem de

nós”.

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Agora quem tem culpa nisso? Quem tem culpa nisso é o governo que faz uma legislação “atrapalhada” ou “errônea” e nós vamos lá para tentar consertar. Assim, acabamos sendo coniventes com “a coisa” que está aí.71

Um supervisor complementa e faz um resgate histórico, relembrando os tempos produtivos, de um clima de reflexão, colaboração e parceria até aproximadamente o início dos anos de 1990. E outro analisa este momento:

Foi um momento de abertura, de redemocratização, em que houve essa preocupação de estar discutindo, refletindo. Se fizermos uma leitura da década de 1980 até começo de 1990, veremos que o pessoal estava voltando a discutir, conversar, encontrar caminhos. Após 1990, começa a influência do neoliberalismo e da economia de mercado. 72

O contexto histórico, político, educacional é percebido por alguns, entretanto, não chegam a romper com o mito do tarefeiro (conforme excerto de nota 70- n.1). O ordenamento instituído pelo Estado e Governo para a supervisão como um todo prevalece. Como já afirmamos, os fatores externos parecem colocar-se numa lógica abstrata, distante, e o pior, determinante da ação coletiva dos supervisores.

O cotidiano de lamentações e precariedades, de desconstrução ética e de valores, podem indicar um período de perdas de referências e tempos de crise. Neste contexto multifacetado, as normatizações sociais institucionalizadas entre os profissionais da educação, influenciados pela cultura hegemônica, acabam justificando as escolhas por determinadas práticas e concepções (FERINI; SILVA, 2007, p. 142).

Dessa situação complexa, com seus vários vieses, encontramos a presença de outro mito, que talvez seja o que mais nos preocupa, o supervisor alienado. A alienação acontece por diferentes razões:

- ingenuidade - ao não perceber as influências externas na sua atuação e assim reproduzindo a ordem vigente de forma acrítica, acreditando estar fazendo o certo e o melhor;

- cooptação – mesmo percebendo os valores politicoeconômico-culturais que determinam as práticas sociais, o supervisor vê-se seduzido pelo sistema, atraído pelo ‘canto da sereia’ e acaba por pactuar com a cultura de administração hegemônica;

- acomodação – talvez, como mecanismo de defesa, as tensões e conflitos inerentes ao mundo do trabalho, prefira viver ‘no mundo da lua’. Nunca sabe o que está acontecendo ou tudo

71 Excerto de depoimento do grupo focal realizado em 02/05/2007. 72 Excerto de depoimento do grupo focal realizado em 02/05/2007.

está sempre bem, na famosa frase “na minha DE isto não acontece”. Não costuma emitir opiniões ou, quando o faz, estas se dão sem convicção, voltando atrás diante do menor questionamento.

3.2.2 Fatores Internos: relações interpessoais e a ‘fogueira de vaidades’ na busca de