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Fatores semânticos que condicionam a omissão do objeto direto

Trataremos a seguir de questões relacionadas à omissão do objeto, procurando identificar que fatores semânticos a condicionam. Consideremos a sentençaMinha mãe costura:

45) Minha mãe costura.

SujV V Agente Paciente

Ao ouvir essa frase, apesar da ausência do objeto direto, o receptor elabora em sua mente, de forma esquemática, um argumento para o verbo costurar, que pode ser vestidos, bolsas, o uniforme do filho, bonés etc. Já em frases como:

46) Ele cuspiu na rua. 47) Ele urinou na rua.

o ouvinte recupera um referente Tema específico para preencher a relação que seria expressa pelo objeto direto, caso houvesse: os esquemas SALIVA e URINA, respectivamente.

Talvez isso seja em razão da semântica de cada verbo. No dicionário, costurar/coser significa “ligar, unir com pontos de agulha”; cuspir é “expelir cuspo, lançar da boca cuspo ou outra coisa” (MICHAELIS, 1998). Note-se que para costurar o dicionário não menciona a “coisa costurada”, mas para cuspir menciona a “coisa cuspida”, presumivelmente porque aqui temos um Tema privilegiado, isto é, ele é um Tema preferencial entre muitos outros possíveis dentro do esquema semântico do verbo. Isso pode ser expresso, dentro da teoria dos esquemas (RUMELHART; ORTONY, 1976), dizendo que costurar tem as variáveis rotuladas Agente e Paciente, porém esta última em aberto; e cuspir tem as variáveis Agente e Tema, mas com o Tema já “pré-preenchido” com “cuspo”, cuja expressão é dispensada. Entretanto, há também a possibilidade de se cuspir outra coisa e, nesses casos, o objeto precisa ser expresso:

48) O artista cuspia fogo. 49) O doente cuspiu o remédio.

50) O marido cuspiu ofensas durante a discussão. 51) O bebê cuspia o leite dormido.

O mesmo se dá com o verbo urinar, que é expelir urina; quando o objeto é outra coisa diferente, é preciso explicitar: urinar sangue, por exemplo.

O verbo beber é um dos mais citados nos estudos que abordam a omissão do objeto direto. Em nossa pesquisa pudemos constatar que esse verbo se inclui entre aqueles que possuem em sua valência um Paciente privilegiado: “bebida alcoólica”. O dicionário Michaelis (1998), na acepção 6 registra: “ter o hábito de ingerir bebidas alcoólicas”. Interessante observar que dentre os líquidos possíveis de serem bebidos, apenas bebida alcoólica consta como um de seus pacientes especificamente citado no dicionário. Outro ponto por nós observado é o adjetivo bêbado da mesma raiz de beber, cujo significado é “perturbado pelo excesso de bebida alcoólica”; bem como o substantivo bêbado que designa “indivíduo que tem o vício da embriaguez”; e ainda: bebida, embebedar e bebedeira não são termos alusivos a outro líquido, mas a substância alcoólica. Não se diz que alguém fica bêbado de água, ou suco ou refrigerante. Isso vem confirmar, para nós, “bebida alcoólica” como o Paciente privilegiado do verbo beber.

Fizemos ainda um levantamento desse verbo em outras línguas e constatamos que o mesmo acontece, não só em línguas da família indo-europeia, mas numa semítica, o hebraico.

Em latim: bibĕre (beber); bibĭtus (bêbado); bibŭlus (que gosta de beber) (FARIA, 1962). E ainda como registra o Dicionário latino-português (SARAIVA, 1993): “‘Bibe, si bibis’ (Plauto)", que se traduz por: “Beba (o vinho) se estás bebendo”; "‘Bibere exiguis haustibus’ (Terêncio)”, que significa “Beber (vinho) aos pequenos goles”. E quando não se trata de bebida alcoólica, o SN vem expresso: "Bibere lac", beber leite.

Do verbo beber, em grego “pinoo” (πινω), derivam “bebida” e “bebível”- pótos e pótes32

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(ποτος , ποτης), respectivamente; o substantivo “bêbado” é philopótes (φιλοποτης) – amigo

da bebida -; beberrão é pótikos (ποτικος). (PEREIRA, 1976).

Em espanhol: beber (beber): 2. “Tomar licores u otras bebidas alcohólicas”; bebido (bêbado): “que ha tomado demasiado alcohol.” (SEÑAS, 2001).

Em inglês: drink (beber). Na acepção 2 encontramos: “To take alcoholic liquids”; “drunk (bêbado) adjective: overcome by having too much alcohol.” (PASSWORD, 1998).

Em alemão: trinken (beber); betrunken (bêbado) (IRMEN, 1956).

Em hebraico, aqui transliterado: raiz do verbo: SHaTáH; no infinitivo: LishTôT, beber. O substantivo bêbado é SHaTuY; e SHTiáH significa bebida, trago e até mesmo “porre” ou “bebedeira”. (BEREZIN, 2003).

Esse breve levantamento confirma que em várias línguas, além do português, o verbo beber tem o referente “bebida alcoólica” registrado como Paciente privilegiado. Se dissermos a alguém: Vamos beber lá em casa hoje à noite? Nosso interlocutor entenderá que o convidamos para tomar um drink, não um chocolate quente ou um chá. Se quisermos falar de beber outra coisa que não bebida alcoólica, teremos que ser explícitos: Vamos beber um chocolate quente lá em casa hoje à noite?

Um dos fatores que governaria a possibilidade de omissão do objeto é o papel semântico que ele veicula. Porém há casos de objetos de papel semântico idêntico que se comportam diferentemente quanto à omissão, como vimos nos exemplos de beber e cuspir, cujo objeto, quando omitido, pode ser entendido como privilegiado, em contraste com costurar que, sem objeto, tem Paciente apenas esquemático. Assim, partimos de algumas hipóteses, que constituem as perguntas básicas desta pesquisa. Em princípio, consideram-se as seguintes hipóteses alternativas (sendo que nem todas se excluem mutuamente):

I - A omissão é livre em princípio, e o referente do objeto direto omitido é esquemático.

As sentenças seguintes, com o verbo comprar, são exemplos de duas diáteses distintas, uma com objeto e outra sem objeto:

52) Mamãe compra suas bolsas pela internet. SujV V SN

53) Mamãe compra pela internet. SujV V

Agente Tema

Observe-se que, nesta segunda diátese, na primeira linha da notação o espaço reservado ao termo sintático está vazio.

II - A omissão do objeto parece que não é livre, dependendo do papel semântico do SN; com verbos como levar, colocar, tirar, que aparentemente exigem objeto explícito, mesmo esse objeto sendo esquemático, o Tema não poderia ser omitido. Isto é, levar, tirar, colocar, enviar é sempre levar, tirar, colocar, enviar qualquer coisa; porém a omissão parece não ser possível, gerando agramaticalidade:

54) *Ele tirou [o leite, o doce, o peixe ...] da geladeira.

55) *Mamãe levou [a mochila, meu agasalho ...].

56) *Ele colocou [o livro, o agasalho, as malas ...] no carro.

III - A omissão é imprevisível em princípio, e todo verbo precisa ser marcado. Disso decorre que cada verbo que admite a omissão do objeto precisa ter duas diáteses, uma com o termo em questão e a outra sem ele. É bom observar que essa hipótese não se verifica para os verbos em geral, porque há regras parciais como “objeto no papel semântico de Fonte, Trajetória e Meta não pode ser omitido”. Em casos em que não valem tais generalizações, a duplicação de diáteses é inevitável.

IV - A omissão está sujeita à maior ou menor elaboração do verbo, como comer e devorar, quando o primeiro permite e o segundo não permite a omissão do objeto. O verbo devorar inclui em seu significado uma maneira, um modo específico de comer: comer com voracidade. Isso ocorre com outros pares de verbos quase sinônimos, como morder/mordiscar, beber/sorver etc., em que os segundos não permitem a omissão do objeto.

57) A onça já comeu. 58) *A onça já devorou.

V - Verbos leves - Geralmente o verbo é responsável pela especificação do tipo de evento ou estado, uma espécie de eixo semântico da oração. Porém há casos em que a caracterização do evento é partilhada entre o verbo e os complementos, em vez de ser expressa apenas pelo verbo. Nesses casos eles são chamados de verbos leves (light verbs) e participam de

construções nas quais o elemento nominal (e não o verbo) parece ser o verdadeiro responsável pela denotação do evento da sentença (SCHER, 2003, p. 206). Se o principal responsável por veicular o sentido é o complemento, quando este é omitido o sentido fica alterado (o verbo não mais se entende como leve) ou às vezes a frase se torna agramatical, não sendo possível a omissão:

59) Minha avó sofreu uma queda quando era criança. 60) Minha avó sofreu quando era criança.

61) Cândida dava gargalhadas no cinema. 62) Cândida dava no cinema.

63) Eles realizaram o assalto em plena luz do dia. 64) *Eles realizaram em plena luz do dia.

65) Manoela tirou uma foto das araras. 66) * Manoela tirou das araras.

Nosso estudo pretendeu chegar a algumas conclusões que possam dar conta de explicar o que motiva a opcionalidade do objeto direto no português do Brasil, se a ocorrência depende de traços semânticos do verbo, do seu grau de elaboração; ou do aspecto; ou ainda outros fatores.

4 ALGUNS ESTUDOS QUE ABORDAM A OMISSÃO DO OBJETO DIRETO

O tema “objeto” tem ocupado espaço expressivo nos estudos linguísticos. Citamos o volume organizado por Frans Plank (1984), cujos autores não apresentam estudos conclusivos e chamam a atenção para a dificuldade (ou impossibilidade) de generalizações universais a respeito do conjunto de propriedades comumente atribuídas ao objeto direto, e concluem que definir “objetidade” (objecthood) não é tarefa simples até mesmo com relação a uma língua particular. Nos artigos reunidos nesse volume, entretanto, nenhum autor trata da questão da omissão do objeto. O que é geral é a constatação da dificuldade de definir a função objeto direto. Collinge recorda que

Jespersen (1924, p. 162) chamou a função OD "puramente sintática", e os caminhos semânticos (e até mesmo o categorial) para a descoberta e definição dessa função são claramente não confiáveis. Afetação, e mesmo o pressuposto existencial, não podem realmente nos guiar. Possivelmente, a ocupação de um lugar sintático fundamental para fins de derivação ou paráfrase, possivelmente as exigências interpretativas de uma posição especial, possivelmente (mas somente junto com um outro critério sintático) codificação no verbo-núcleo com uma gama de propriedades restritas - talvez uma combinação de tais indicadores, válidos para um idioma de cada vez, podem revelar o objeto direto como um subconjunto operacional de membro mais ou menos previsível dentro do conjunto de "nominais" com que começamos. Mas parece ser mais complicado do que Jespersen sugeriu. (COLLINGE, 1984, p. 26, grifos do autor, tradução nossa).33

Essa impressão de confusão dada pelo texto de Collinge se deve, a nosso ver, ao fato de que não se colocou a pergunta nos termos adequados. Em vez de perguntar “o que significa um objeto direto?” a pergunta deve ser “Que papel semântico cada verbo atribui a seu objeto?” Só assim se faz justiça à grande variabilidade semântica do objeto, pois o papel semântico do objeto depende da identidade do verbo da oração.

Destacamos, a seguir, alguns estudos que abordam o fenômeno da omissão de itens lexicais, e destes nos deteremos no estudo da omissão do SN na função de objeto direto.

33 Jespersen (1924, p. 162) called the OD function "purely syntactic", and the semantic (and even the categorial) paths towards discovery and definition of this function are clearly untrustworthy. Affectedness, and even existencial presupposition, cannot really guide us. Possibly the occupation of a syntactic address crucial for purposes of derivation or paraphrase, possibly the interpretative exigencies of a special position, possibly (but only along with another syntactic criterion) coding on the verb-nucleus with a restricted range of properties - perhaps a combination of such pointers, valid for one language at a time, may discover direct object as an operational subset of more or less predictable membership within the set of "n-oids" with which we began. But it seems to be trickier than Jespersen suggested.