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Situações que favorecem a omissão do objeto direto

5.1 Verbos de localização e mudança de localização e suas diáteses

5.1.1 Situações que favorecem a omissão do objeto direto

Pelo levantamento que fizemos - conforme exemplificado nos agrupamentos da seção anterior -, concluímos que em geral o Tema é de expressão obrigatória. Dos 163 verbos de localização e mudança de localização examinados, encontramos apenas 27 que podem ocorrer em orações nas quais o objeto direto Tema pode ser omitido: botar, colher, comprar, conduzir, cuspir, depositar, derramar, descarregar, doar, entornar, entregar, escoar, escorrer, furtar, ganhar, herdar, jorrar, levar, perder, pingar, pôr, receber, roubar, urinar, vazar, vender e vomitar. No entanto, a omissão não é livre: ela se dá em situações especiais, como veremos a seguir.

a) Objeto direto privilegiado - os verbos botar, colher, cuspir, depositar, descarregar, doar, ganhar, perder, pôr, receber, urinar e vomitar; derramar, entornar, escoar, escorrer, jorrar, pingar e vazar possibilitam a omissão do objeto direto em virtude de seu esquema semântico: esses verbos possuem em seu esquema um Tema privilegiado, cuja realização sintática é dispensada. Por exemplo, para os verbos botar e pôr, quando se trata de ave fêmea, o dicionário menciona a “coisa posta”, ovo; isto é, botar e pôr quando se trata de ave, têm as variáveis rotuladas Agente (a ave) e Tema já “pré-preenchido” com “ovo”; esse objeto direto privilegiado é geralmente omitido:

88) A galinha do meu sítio não bota mais.

89) A avezinha põe num ninho improvisado na beirada da janela.

Porém, quando se trata de um objeto não privilegiado, ele precisa ser expresso: 90) A secretária botou um vaso lindo no escritório.

91) * A secretária botou no escritório.

92) Uma pessoa pôs um tijolo debaixo da escada do quintal. 93) * Uma pessoa pôs debaixo da escada do quintal.

O mesmo se dá com os verbos cuspir e urinar, respectivamente expelir saliva e urina; quando o objeto é outra coisa diferente, é preciso explicitar. Semelhante processo ocorre com o verbo vomitar.

94) Muitas pessoas cuspiam na rua. 95) Meu filho cuspia o leite dormido.

96) Crianças novinhas ainda urinam na cama.

97) Por causa da lesão no intestino, o paciente urinava sangue. 98) Tarde da noite, meu filho começou a vomitar.

99) Durante o espetáculo, o mágico vomitava fogo.

O verbo doar permite a omissão do Tema quando este for o privilegiado: quantia, valor, importância em dinheiro (100-101); se for algo diferente (102-103), tem que ser expresso; comparem-se as frases a seguir:

100) Mamãe sempre doa para o Criança Esperança. 101) Você já doou para a Campanha do agasalho?

102) A família doou os órgãos do filho acidentado para o hospital da universidade. 103) Não vou doar meu precioso tempo para um projeto desses.

Note-se que nas frases (102) e (103), se o objeto direto for omitido, a interpretação será pelo Tema privilegiado. Em (103), por exemplo, Não vou doar para um projeto desses: ao ouvir essa frase, o referente do objeto direto omitido será preenchido na mente do ouvinte por algo como valor algum, isto é, o privilegiado.

Ainda com os verbos colher, depositar, descarregar e receber quando não se trata de referente privilegiado, respectivamente o que foi plantado, dinheiro (valor monetário), mercadoria e salário ou proventos, o Tema tem que ser realizado:

104) Nesta semana, começaremos a colher.

105) Nesta semana, começaremos a colher o material para a pesquisa. 106) Meu pai deposita todo dia primeiro.

107) Meu pai deposita sua confiança apenas em mim. 108) O motorista descarregou em hora e local indevidos.

109) O motorista descarregou sua ira em hora e local indevidos. 110) Vovó recebe no quinto dia útil.

111) Vovó ainda recebe suas mensagens por carta.

Os verbos ganhar e perder, com objeto omitido, evocam o sentido de ganhar ou perder um tipo de competição ou disputa - jogo, luta, eleição:

112) O candidato da oposição ganhou/perdeu.

Porém, o objeto não poderá ser omitido quando se tratar de ganhar objetos, apelidos, atribuições etc.; bem como perder compromisso, horários, coisas:

113) O reitor da universidade ganhou o título de Cidadão Honorário de Belo Horizonte. 114) Mariana perdeu a chave do carro.

115) Quase perdi o voo.

116) Antônio ganhou o apelido de Tonico.

Na sentença Meu tio ganhou na loteria, o contexto situacional e de conhecimento de mundo facilita a omissão: loteria sorteia parte do valor das apostas. Assim, “ganhar na loteria” significa ganhar determinado valor em dinheiro ou outro bem sorteado. É interessante observar que valor monetário é exatamente um referente que pode ser omitido quando ganhar significa ‘receber’, como em Ele trabalha sem ganhar. Nesses casos, o verbo ganhar, como o verbo receber, possui Tema privilegiado: valor monetário.

Os verbos derramar, entornar, escoar, escorrer, jorrar, pingar, e vazar são os de deslocamento que facilitam a omissão quando se trata do Tema privilegiado - líquido, ou sólido contínuo - e na posição de sujeito um SN desempenha o papel semântico de Fonte. Quando a Fonte for um ser humano, o Tema é geralmente um tipo de secreção, como suor, por exemplo. Desses verbos, escoar e escorrer permitem a omissão também quando o sujeito for uma Trajetória (APÊNDICE A, seção 2.4.4, alíneas d/d’, f e f’, p. 180-181):

117) A piscina derramou. (Fonte) 118) O reservatório entornou. (Fonte)

119) O ralinho desse banheiro escoa muito lentamente. (Trajetória) 120) O nariz do bebê está escorrendo. (Fonte)

121) O chafariz da praça jorra ininterruptamente. (Fonte) 122) Após os exercícios aeróbicos, Maria pingava. (Fonte) 123) O tanque está vazando. (Fonte)

No caso desses exemplos, é bom lembrar que não se trata de construção ergativa (sujeito Paciente), mas de construção com objeto omitido – o Tema existe no nível semântico mas não foi realizado sintaticamente, como é possível comparar nas duas construções: na de objeto omitido a variável Tema existe apenas no nível conceptual mas não no sintático, conforme espaço vazio reservado a este na primeira linha da notação:

Construção com objeto omitido:

A piscina derramou. SujV V Fonte Tema Construção ergativa: O porco engordou. SujV V Paciente

Interessante, como pudemos observar, que com os chamados “verbos de derramamento” (BRANDÃO, 2012), nas sentenças nas quais o Tema foi omitido, na posição de sujeito está a Fonte, ou ainda, em algum caso, a Trajetória (exemplos 117 a 123). Quando o sujeito for Agente, o Tema tem que vir expresso sintaticamente, pois a frase resultará agramatical sem o objeto, por conta da restrição selecional:

124) Logo pela manhã, o chefe derramou aqueles relatórios sobre a mesa. 125) * Logo pela manhã, o chefe derramou sobre a mesa.

126) O pedreiro entornou a massa na gamela. 127) *O pedreiro entornou na gamela.

128) A fábrica escoou a produção lentamente. 129) * A fábrica escoou lentamente.

130) A cozinheira escorre água fervente na pia entupida. 131) *A cozinheira escorre na pia entupida.

132) A paciente pingou o colírio durante sete dias. 133) * A paciente pingou durante sete dias.

134) O caseiro vazou a água da piscina no jardim. 135) * O caseiro vazou no jardim.

O verbo jorrar parece não ocorrer com sujeito Agente.

Temos, portanto, um fator importante na omissibilidade do objeto: o objeto pode ser omitido quando for privilegiado em relação ao evento expresso pelo verbo. Objetos privilegiados não precisam ser expressos, pois já fazem parte do esquema dos seus verbos como Temas preferenciais. Essa possibilidade de omissão não precisa ser marcada na valência de cada um dos verbos que têm o Tema privilegiado.

b) Enunciados indicando capacidade ou generalidade - Quando o verbo é tomado como indicando uma habilidade, uma capacidade generalizada, um evento habitual ou reiterado, a omissão do objeto direto fica facilitada. O verbo em geral está no imperfectivo. Nesses casos, o foco é a atividade em si (RICE, 1988). Dos verbos que analisamos, eis os que facilitam a omissão nesses contextos: comprar, conduzir, entregar, furtar, herdar, levar, roubar e vender.

Vejamos um exemplo com o verbo comprar: 136) Minha irmã compra pela internet.

Aqui o que está em evidência é a atividade de fazer compras, não o que é comprado. Porém, quando a sentença já não se refere a uma atividade geral, com o verbo no perfectivo, o objeto tem que ser expresso:

138) Vou comprar uma casa na praia. 139) ?Minha irmã comprou pela internet. 140) * Vou comprar na praia.

Além do verbo comprar, já citado acima, vejamos exemplos com os verbos conduzir, entregar, furtar, herdar, levar, roubar e vender sem a realização sintática do Tema como objeto direto:

141) O desespero pode conduzir ao suicídio. 142) Sua empresa entrega em todo o país?

143) Os garotos apreendidos costumavam furtar em feiras de artesanato. 144) Parentes muito distantes não herdam.

145) Uma hiperdose de droga leva à morte. 146) Aquele bandido rouba descaradamente. 147) Nossa lojinha vende para todo o bairro.

Mas se o caráter de generalidade ou habitualidade - expresso pelo verbo no imperfectivo ou pelo acréscimo de alguma expressão adverbial – desaparece; ou se a intenção é focalizar o Tema o objeto direto tem de ser expresso:

148) O desespero conduziu aquele homem ao suicídio. 149) *O desespero conduziu ao suicídio.

150) Sua empresa entregou fogos de artifício para a festa junina? 151) *Sua empresa entregou para a festa junina?

152) Aqueles garotos pobres furtavam comida na feira de artesanato. 153) Joana herdou esse jeito acanhado.

154) *Joana herdou.

155) Uma hiperdose pode levar à morte. 156) *Uma hiperdose levou à morte.

157) A quadrilha roubou caixas eletrônicos. 158) *A quadrilha roubou.

159) O escritório vendeu diplomas falsos. 160) * O escritório vendeu.

Notamos, assim, que quando as sentenças em que estão denotam um fato bem geral, genérico, alguns verbos aceitam a omissão do objeto direto. Quando se quer fazer generalizações,

expressar ações habituais ou reiteradas, muitas vezes se omite o objeto direto e este acaba sendo interpretado esquematicamente. O imperfectivo é utilizado em frases atemporais, válidas para qualquer tempo - não são conhecidos os limites entre o começo e o fim do evento -, por isso é a forma verbal empregada, geralmente, para veicular enunciados que dão o sentido de generalidade, habitualidade, reiteração.

5.2 Verbos de localização e mudança de localização: papéis semânticos Meta, Trajetória