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O comportamento sintático e semântico dos verbos de mudança de estado

Fillmore (1970/2003, p. 130) identificou os verbos de mudança de estado como um grupo com valência semelhante, que asserem algum tipo de mudança de estado de uma entidade, e na forma de seu particípio um adjetivo estativo é capaz de descrever a entidade em seu estado posterior à mudança (p. 136):

Maria quebrou o vaso O vaso quebrou O vaso quebrado.

O autor defende que esses verbos formam uma classe coerente por compartilharem aspectos semânticos – expressam uma mudança de estado –, e comportamento sintático – ocorrem nas mesmas construções. Conforme adotado em nosso estudo, essas diáteses são:

SujV V SN Agente Paciente - O garçom quebrou o copo. - O sol murchou a flor. E na ergativa:

SujV V Paciente

- O copo quebrou. - A flor murchou.

Smith (1970) também focaliza as características sintático-semânticas da classe dos verbos de mudança de estado: a sua ocorrência com um Agente, como Maria quebrou o jarro; e na construção ergativa, sem objeto direto, na qual não há um Agente como em O jarro quebrou, construção que a autora chama de “intransitiva”:

Pode-se dizer que a ação ou mudança pode ocorrer sem um agente externo, como indicado pela possibilidade de frases intransitivas [...]. No entanto, o controle

externo da mudança pode ser assumido por um agente, tal como indicado pela possibilidade de frases transitivas [...]. Como transitivos, os verbos referem-se a uma ação ou mudança de estado de seus objetos. Duas características semânticas, então, são características da classe de verbos de mudança: independência relativa da ação (no sentido de que ela pode ocorrer sem um agente externo), e a possibilidade de um agente externo controlar a ação. (SMITH, 1970, p. 101-102, tradução nossa).64

A autora destaca que nas construções com objeto, este indicará a entidade que muda de estado, o Paciente.

Como veremos adiante, embora apenas em algumas situações, os verbos de mudança de estado podem ainda ocorrer com a variável Paciente não realizada sintaticamente, na seguinte diátese:

SujV V

Agente Paciente - Esse cão morde.

Nesse exemplo, há um sujeito Agente e apenas no nível conceptual um Paciente, que não foi expresso. É preciso frisar que essa construção não pode ser confundida com a ergativa; a ergativa não é uma construção de objeto omitido; é uma construção que recusa o objeto, na qual o Paciente está na posição de sujeito, como em O fio entortou.

A classe dos verbos de mudança de estado inclui os de mudança de estado externamente causada e internamente causada. Uma mudança de estado externamente causada é a desencadeada por alguma coisa externa à entidade que sofre a mudança; há uma causa externa como origem do evento descrito: um agente, um instrumento, uma força natural ou uma circunstância que, conforme adotado neste estudo, reunimos no papel semântico Agente: 203) O vento abriu a porta.

204) José cortou a árvore.

Quando a mudança de estado tem sua origem interna à entidade que muda de estado, dizemos de verbos de mudança de estado internamente causada; eles descrevem mudanças que “[...] são inerentes ao curso natural do desenvolvimento das entidades que eles predicam e não

64

The activity or change can be said to occur without an external agent, as indicated by the possibility of the intransitive sentences [...]. However, external control of the change can be assumed by an agent, as indicated by the possibility of the transitive sentences [...]. As transitive, the verbs refer to an activity or change of state of their objects. Two semantic features, then, are characteristic of verbs of the change class: relative independence of the activity (in the sense that it can occur without an external agent), and the possibility of an external agent’s controlling the activity.

precisam ser provocadas por uma causa externa [...] " (LEVIN; RAPPAPORT HOVAV, 1995, p. 97, tradução nossa):65

205) Os ipês floresceram. 206) As janelas enferrujaram.

Levin (1993) e Levin e Rappaport Hovav (1995; 1998) consideram como marca que diferencia os verbos de mudança de estado de causa interna daqueles de mudança de estado de causa externa a ocorrência destes nas construções com objeto direto e na ergativa (alternância causativa/incoativa, para as autoras e outros):66

A propriedade mais conhecida de verbos de mudança de estado externamente causada - e uma propriedade que os diferencia de verbos de mudança de estado internamente causada - é a sua participação na alternância causativa, [...], ou seja, eles permitem usos transitivo causativo e intransitivo não causativo. (RAPPAPORT HOVAV; LEVIN, 1998, p. 117, tradução e grifo nossos).67

Conforme as autoras, os verbos de mudança de estado externamente causada ocorreriam em construções com objeto direto, e na ergativa, como nos exemplos:

207) Tereza quebrou os pratos. 208) Os pratos quebraram.,

enquanto os verbos de mudança de estado internamente causada ocorreriam apenas na construção ergativa:

209) A rosa floresceu.

210) *O jardineiro floresceu a rosa.

Ergativa, como dissemos, é uma construção na qual o sujeito é Paciente e se caracteriza pela ausência de Agente, expresso ou subentendido, e que não admite objeto; ocorre tanto com os verbos de mudança de estado internamente quanto externamente causada: Os pratos trincaram/ As rosas floresceram. É preciso distinguir a ergativa de casos de omissão do objeto, como Muito sol envelhece [a nossa pele], em que há um Agente e o argumento Paciente

existe, apenas não foi realizado sintaticamente. Assim, as construções ergativas – Minha pele envelheceu - não se incluem no âmbito de nossa pesquisa, para o estudo específico da omissão do objeto, uma vez que a ergativa recusa esse complemento.

65 [...] are inherent to the natural course of development of the entities that they are predicated of and do not need to be brought about by an external cause [...]

66 Levin (1993, p. 30) registra que essa alternância é conhecida por uma variedade de outros nomes, incluindo “ergativa”, que é o adotado por nós.

67 The best-known property of externally caused verbs of change of state - and a property that sets them apart from internally caused verbs of change of state - is their participation in the causative alternation, [...] that is, they allow transitive causative and intrasitive noncausative uses.

Em português, diferentemente do que Levin e Hovav afirmam, encontramos muitos verbos de mudança de estado internamente causada com objeto, não sendo essa uma exclusividade dos verbos de mudança externamente causada, conforme demonstram os exemplos a seguir, com verbos de mudança de estado internamente causada:

211) Minha janela enferrujou. (sem objeto)

212) A maresia enferrujou minha janela. (com objeto) 213) O leite azedou. (sem objeto)

214) Uma gota de limão azedou o leite. (com objeto) 215) A parede do túnel dilatou. (sem objeto)

216) O calor forte dilatou a parede do túnel. (com objeto)

Por outro lado, embora a maioria dos verbos de mudança de estado externamente causada ocorra na ergativa (sem objeto), em sentenças como O fio entortou, temos em português verbos de mudança de estado externamente causada que não possuem essa diátese, como assassinar, beber, comer, eliminar, matar, morder e outros. Esses verbos não admitem sujeito Paciente e, portanto, não ocorrem na ergativa.