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FAVELA: PERMANÊNCIAS E RE-SIGNIFICAÇÕES DE UM ESTIGMA NA HISTÓRIA DO RIO DE JANEIRO

Cena 1: Cidade Alta, num dia de semana à noite, por volta de 18:30. Alunos entram apressados pelo portão do Colégio Estadual República de Guiné-Bissau, muitos deles vindos direto do trabalho; é dia de prova. Na calçada do outro lado da rua, há um bar, e alguns fregueses bebendo e conversando. Num carro parado com equipamento de som na mala, a música toca bastante alta, a ponto dos professores não conseguirem se fazer entender claramente com os alunos prestes a fazerem a prova. Um aluno desce para pedir ao dono do carro para baixar o som, quando este responde justificando o volume: ‘Isso aqui é favela!’.

A questão:

Começamos com essa pequena história para ilustrar quão delicado é o território (isto no sentido mais lato), que estamos entrando. Afinal, o que é uma favela? Para o dono do carro acima, como pode se apreender, é o território da falta de regras, o que lhe permite ouvir o som no volume que quiser, ao lado de uma escola. Será que esse ponto de vista procede? Quais características um determinado local possui para que seja considerado, não necessariamente de forma consensual, como uma favela? Quem produz os discursos sobre a favela e a partir de quais interesses?

Favela(s): mudanças e permanências

Anteriormente servindo para se referir a uma localidade específica da cidade do Rio, o morro da Favella, no centro, com o passar do tempo o nome favela passou a figurar como uma forma de ocupação urbana específica, levando, ao longo do tempo, os habitantes do Rio a identificarem outros locais com características semelhantes e passarem a chamar estes também de favelas, que assim deixou de identificar uma única localidade

para designar um novo tipo de moradia das classes pobres, inicialmente associada aos morros da cidade.12

Se por um lado a palavra em si causa associações imediatas na cabeça de qualquer morador das grandes e médias cidades brasileiras de locais que possam ser considerados uma; por outro, favela não é uma categoria facilmente definida, ou que se explique por si mesma. Para definir a favela é necessário recorrer a um conjunto de circunstâncias e atores históricos.

A tarefa torna-se mais árdua ao nos darmos conta das transformações ocorridas nas favelas nas últimas décadas. Tais mudanças são analisadas em estudos acadêmicos, vivenciadas pelos seus moradores13 e confirmadas em estudos de órgãos de governo14, como pelo último censo do IBGE em 2000.15 Em que pese isso, o órgão ainda continua a definir favela, como o fez no último censo, como: “Aglomerado subnormal (favelas e similares) é um conjunto constituído de no mínimo 51 unidades habitacionais, ocupando ou tendo ocupado até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou

12 É curioso perceber que a associação entre favela e morro permanece ainda hoje. Num caso que

particularmente nos diz respeito, uma reportagem que tratava de conflitos entre traficantes e milicianos na Cidade Alta, tinha a seguinte cabeça na matéria: “Cordovil: tráfico toma de volta morro que milícia ocupou”

O Globo, 05/02/2007.

13 Conforme vemos em: ALVITO, Marcos. As cores de Acari – Uma favela carioca. Rio de Janeiro: FGV,

2002; BRUM, Mario Sergio. ‘O povo acredita na gente’: Rupturas e continuidades no movimento

comunitário das favelas cariocas nas décadas de 1980 e 1990. Dissertação de Mestrado em História Social.

Niterói: PPGH/UFF, 2006; GRYNSZPAN, Mario & PANDOLFI, Dulce. A favela fala: depoimentos ao

CPDOC. Rio de Janeiro: FGV, 2003; LAGO, Luciana Corrêa do & RIBEIRO, Luiz César de Queiroz. A

divisão favela-bairro no espaço social do Rio de Janeiro. Cadernos Metrópole – v.1 n. 5, 2001 p. 37 a 59; OLIVEIRA et alli, Anazir Maria de. Favelas e organizações comunitárias. Petrópolis: Ed. Vozes, 1993; MACHADO DA SILVA, Luis Antônio. “A continuidade do 'problema da favela'”. In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi (org.) Cidade: História e Desafios. Rio de Janeiro: FGV, 2002; ZALUAR, Alba & ALVITO, Marcos (Orgs.). Um século de favela. (Introdução). Rio de Janeiro: FGV, 1998.

14 Em levantamento realizado pela Prefeitura do Rio de Janeiro em 1997, observa-se que as dez favelas

cariocas com melhores índices de qualidade de vida registravam indicadores acima da média de toda cidade. Enquanto as primeiras tinham 2,62% de água inadequada, o Rio tinha 3,9%. Quanto à taxa de esgoto inadequado: 6,84% para as favelas; 8,9% para o Rio. Coleta de lixo inadequada: favelas, 1,64%; Rio, 4,3%. Ver Favelas cariocas: índice de qualidade urbana. Rio de Janeiro: Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro/ IplanRIo, Rio de Janeiro, 1997 (Coleção Estudos da Cidade).

particular) disposta, em geral, de forma desordenada e densa, bem como carentes, em sua maioria, de serviços públicos essenciais.” Pelos próprios dados do censo, pode se verificar que a realidade das favelas hoje é muito mais complexa, não sendo essa definição a mais adequada para descrevê-las hoje em dia.

Outro critério apresentado pelo IBGE é o da ausência, seja do título de propriedade do terreno, do ordenamento nas construções, de serviços públicos. Mas é fato que muitas favelas conseguiram, seja por seu próprio esforço, seja por investimento do Estado (ou os dois juntos) contar hoje com uma oferta variada de serviços públicos, em que o grau e qualidade variam não apenas de uma favela para outra, mas mesmo dentro de cada favela as diferenças são marcantes. Sendo assim, o que define uma favela não pode continuar a ser uma suposta ausência de serviços públicos. A questão da ilegalidade quanto à propriedade da terra também não pode ser aplicada indiscriminadamente. Visto que vários conjuntos habitacionais, ou mesmo algumas favelas, têm o título de propriedade desde sua origem (como o Bairro Barcellos, na Rocinha, entre outras favelas antigas que partes dela os moradores têm título de propriedade, pois surgiram a partir de loteamentos) ou conseguiram depois o título de propriedade16, embora realmente estes componham uma minoria.

O último critério são as características das moradias, estando favela associada a barraco. Em muitas favelas ainda permanecem construções toscas e desordenadas, particularmente no eixo atual de instalação de novas favelas, na Zona Oeste do Rio17, onde notamos ainda barracos de madeira ou de outros materiais. Mesmo em algumas favelas de ocupação antiga existem as tais construções toscas. Mas, por outro lado, em muitas favelas, as casas já carregam décadas de investimento de seus moradores: são casas de alvenaria, pintadas, com três pavimentos, sem nada a dever às casas de classe média.

As favelas conseguiram, seja por seu próprio esforço, seja por investimento do Estado (ou os dois juntos) contar hoje com uma oferta variada de serviços públicos, em que o grau e qualidade variam não apenas de uma para outra, mas mesmo dentro de cada favela as diferenças são marcantes. Sendo assim, o que a define não pode continuar a ser uma suposta ausência de serviços públicos. Ou seja, é relativamente difícil definir o que é uma favela, visto que é um termo que abrange localidades muito distintas entre si. E o

16

“Primeira favela carioca com título de propriedade vive dias de valorização” Folha de

São Paulo, 10/08/2004.

problema se agrava a partir das transformações das últimas décadas, que nos impedem de defini-la a partir do que lhe falta (o tradicional “comunidade carente”). Porém, não podemos esquecer que a sociedade em geral o faz, daí a aparente evidência do termo favela. Por isso, é necessário compreender a construção histórica do conceito e os estigmas que ele carrega, bem como as razões disto.

Assim, uma das primeiras precauções daqueles que querem se aprofundar no tema favela é quanto à historicidade do termo. Ou seja, é preciso ter em conta que ele adquire significados diferentes através da história, não pelo que ele significa: uma área urbana estigmatizada; mas pelos elementos (significantes) que a constituem.

Exemplo dessa dinâmica é a diferença de status da favela no Rio de Janeiro e em São Paulo, com as favelas desta última, em geral, tendo um status inferior aos que muitas favelas no Rio de Janeiro possuem. Isto revela-se no conformismo que se auto-reconhecia como invasor e alguém sem direitos, na música de 1955, “Saudosa Maloca”, de Adoniran Barbosa: “Foi aqui seu moço / Queu, Mato Grosso e o Joca / Construimos nossa maloca / Mais um dia / Nois nem pode se alembrá / Veio os homes com as ferramentas / O dono mandô derruba/ Peguemo todas nossas coisas / E fumos pro meio da rua / Preciá a demolição / Que tristeza que nois sentia /Cada tábua que caía / Duia no coração / Mato grosso quis gritá / Mas em cima eu falei / Os home tá coa razão / Nois arranjá outro lugá / Só se conformemos quando o Jocá falou / Deus dá o frio conforme o coberto.

Já no fim da década de 1970, Kowarick escreveu sobre as diferenças entre as favelas de São Paulo e do Rio de Janeiro: “Em São Paulo, os favelados jamais tiveram um grau de organização semelhante ao do Rio.”18 No Rio, tanto as associações de moradores, as escolas de samba, entre outras relações que a favela construiu com o ‘asfalto’, serviram como forma dos favelados interferirem na arena pública de modo que pudessem também inserir seus representantes e projetos na sociedade.19 Tristemente, o mesmo não ocorreu em São Paulo, onde, entre outros problemas, as favelas em anos mais recentes têm sofrido com sucessivos incêndios: “Dados do Corpo de Bombeiros da Polícia Militar do Estado de São Paulo revelam a dimensão do problema relacionado a incêndios em áreas de assentamentos e a importância do trabalho de prevenção e formação das brigadas de

18 KOWARICK, Lúcio. A Espoliação Urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

19 Debatemos isto em trabalho anterior. Entre os muitos exemplos, temos a União dos Trabalhadores

Favelados, essa atuante na década de 1950, que tinha como um dos seus eixos a tentativa de dar uma conotação positiva à palavra favela e favelado. Ver: BRUM, Mario Sergio. Op. cit.

moradores. São registrados, em média, 800 incêndios por ano em São Paulo.”20 Tantos incêndios em favelas assim serão por mero acaso?21

O termo áreas de risco também é bem representativo da mutabilidade que o termo favela possui. Se, num passado não muito remoto, as favelas (ou parte destas) eram consideradas como áreas de risco, geralmente devido a acidentes naturais somados a falta de um infra-estrutura urbana, o que por diversas vezes ocasionou deslizamentos de terra22; atualmente, o termo risco passou a designar áreas mais expostas à violência urbana, abrangendo aí não apenas as favelas, mas também as áreas no asfalto contíguas a essas, sob o alcance de balas perdidas ou da atuação de quadrilhas ligadas ao tráfico de drogas. Dito de outra forma, até aonde o risco possa alcançar.

A perspectiva aqui assumida é de que a favela não pode ser entendida simplesmente como o lugar da habitação das classes pobres na cidade, nem um mero espaço urbano segregado. Ela é uma formação complexa, que surge a partir não só de dinâmicas internas, mas da interação com outros atores, que atribuem a um determinado espaço urbano, a partir de um conjunto de características, em diversos aspectos (ambientais, econômicos, sociais, etc.), a acusação de ‘destoar’ e/ou ‘degradar’ o entorno e, em conjunto, a cidade como um todo.

Em 1973, um pesquisador estrangeiro tentou definir favela da seguinte forma: “Favela é o termo português para os estabelecimentos de invasores do Rio de Janeiro. Oficialmente, a favela é qualquer área que apresente uma das seguintes condições: um

20 “Projeto viabiliza desenvolvimento de manual de segurança contra o fogo em favelas”

http://www.finep.gov.br/imprensa/noticia.asp?cod_noticia=571_ Consultado em 28/10/2009.

21 “Esse não foi o primeiro incêndio nessa favela, que também já teve barracos destruídos por chamas em

2000, 2002 e 2006. No último grande incêndio em 2006, mais de 100 famílias deixaram a favela e foram morar em condomínios populares construídos nas imediações.” Conforme reportagem do portal de notícias

G1: “Incêndio destrói favela Diogo Pires em São Paulo” Portal G1: 12//10/2009 _ Consultado em 29/10/2009.

22 Temos estes dois exemplos em datas bem próximas entre si: o primeiro fala dos deslizamentos e

inundações: “O mapeamento dos domicílios que serão removidos está sendo finalizado e inclui imóveis em

cerca de cem comunidades sujeitas a alagamentos ou desmoronamentos ou erguidas em logradouros públicos e faixas de proteção ambiental” -“Prefeitura do Rio pretende retirar mais de 12 mil famílias de

áreas de risco O Globo, 06/01/2010; já o segundo aborda a questão da violência: “Das 50 unidades de pior

desempenho, 14 (28%) fazem parte do projeto Escolas do Amanhã, criado em agosto para reforço do ensino em 150 colégios situados em áreas de risco (em favelas ou nas proximidades).” “Violência ainda afeta

aglomerado de construções rústicas (i. e. casas construídas com materiais precários); desprovidas de serviços urbanos tais como luz, água, esgoto; sem arruamento regular ou numeração nas casas; e construídas em terreno nos quais os residentes não possuem título legal . Em última instância, esse último item é o mais importante. Mesmo os estabelecimentos de invasores bem desenvolvidos encontram-se sob ameaça de despejo, ao passo que habitações ainda mais precárias, mas para as quais há segurança de posse do terreno, são rarissimamente pertubadas.”23 [o grifo é meu].

Essa análise nos é interessante por alguns motivos. O primeiro é que o autor, estrangeiro, tenta definir de forma mais abrangente possível, sem poder estender demais a definição sob risco de não dar conta da especificidade da favela, para explicar para outros estrangeiros (o estudo é um relatório para Comissão Fullbright e Fundação Ford) a complexidade do fenômeno ao qual estuda.

O segundo é que ele é escrito em 1973, no auge do período de remoções no então Estado da Guanabara, de modo que podemos observar uma definição de favela corrente na época, considerando que, concordando ou não com a análise do autor, trata-se de um estudo científico. Possui algum embasamento, portanto.

E ainda: vemos que nessa definição, a favela se caracteriza pelas moradias precárias, pela falta de serviços urbanos, falta de uma ordem urbana (com ruas e um endereço ‘formal’) e, como o próprio autor define como sendo o mais importante, a ausência do título de propriedade. Esse ponto é fundamental para nossa argumentação, pois era justamente o mais valorizado pelas autoridades à frente das remoções, de que estas teriam como conseqüência o fim da condição de invasor e de ilegalidade que o favelado vivia para sua transformação na condição de proprietário.

A posteriori podemos relativizar o quanto a questão da propriedade é condição fundamental para permanência do status inferior da favela. Vemos, por exemplo, que no Brasil do início da década de 1980, a conjuntura política acenava com a possibilidade dos favelados terem acesso ao título de propriedade, principal bandeira de luta do movimento comunitário das favelas cariocas do período.24 A questão da posse da terra, tema tão sensível numa conjuntura onde o Estado não havia muito tempo ameaçara a existência de

23 LANGSTEN, Ray. Remoção: um estudo de relocação de favelados no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:

IUPERJ, 1973.

24 Para a mudança no eixo de mobilização do movimento comunitário das favelas cariocas, ver: BRUM,

todas as favelas com as políticas de remoção estava, ainda que não definitivamente resolvida, ao menos amenizada.25 Segundo Luciana Lago: “As transformações na conjuntura política nacional e fluminense na década de 80, período que marca o início da adoção pelo poder público (federal, estadual e municipal) de políticas de reconhecimento das favelas e dos loteamentos irregulares e clandestinos como solução dos problemas de moradia das camadas populares. Legitima-se a ilegalidade. Estas políticas, ao proporem a legalização da posse da terra e a urbanização das favelas, reduziram as incertezas quanto à manutenção dos moradores em suas ocupações.”26

Em processos correlatos, a posse da terra indicada pela ação urbanizadora do Estado nas favelas (significando um aceno quanto à intenção daquele em não removê-las trouxe segurança para os favelados investirem na melhoria de suas casas, processo identificado pelos próprios moradores.27

Em que pese esse reconhecimento/tolerância do Estado quanto à posse da terra por parte dos favelados, alterando a condição anterior de invasor, isso não trouxe alterações significativas em seu status. Mesmo porque esse reconhecimento não é partilhado por toda a sociedade. Eis uma situação onde mudam os significantes: a suposta ilegalidade derivada da condição de invasor; mas permanece o significado: a ilegalidade da favela por outras vias, como aponta Lago: “Há um conflito, exposto publicamente através da mídia, em torno de uma nova representação da “favela” como o lugar da criminalidade, que se

25 Com o Programa Cada família, um lote. O Governador Leonel Brizola, em seu primeiro mandato,

anunciava que daria o título de propriedade definitivo de seus terrenos a 400 mil famílias. Entre outras razões, as dificuldades jurídicas na regularização do terreno fizeram este ter resultados bem mais modestos, só alcançando 16 mil títulos e, mesmo assim, provisórios. Ver: ARAÚJO, Maria Silvia Muylaert de “Regularização fundiária de favelas – imóveis alugados: o caso do programa ‘Cada família um lote’ no Rio de Janeiro”. Revista de Administração Municipal, v. 7, n. 195. abr/jun 1990, pp. 26-35.

26 LAGO, Luciana Corrêa. Favela-loteamento: re-conceituando os termos da ilegalidade e da segregação

urbana. In: X Encontro Nacional da ANPUR, 1, 2003. Disponível em: http://www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br/download/anpur2003_lago.pdf.

27 Isso fica claro, por exemplo, no depoimento da ex-presidente da Associação de Moradores da Nova

Holanda, Eliana Sousa Silva: "O barraco de alvenaria simbolizava essa permanência, essa mudança de

paisagem ali. Os moradores entenderam isso muito bem. Depois quando a gente começou a conquistar a infra-estrutura, a quantidade de obras que começaram a acontecer por conta própria do morador foi muito grande.” apud BRUM, Mario Sergio Op. cit.

soma hoje à representação até então predominante da “favela” como lugar da pobreza e da ilegalidade urbana.”28

Para exemplificar isso, durante a semana de 24 a 30 de agosto de 2008, o jornal O Globo publicou série de reportagens com a legenda “Favela S/A” onde eram mostradas as diversas formas de comércio ilegal, que nas reportagens são apresentadas como próprias da favela, em contraposição a uma ordem existente no ‘asfalto’ e geralmente, com este último sofrendo prejuízos decorrentes desta situação. Por exemplo, em matéria sobre o comércio de imóveis nas favelas, vemos: “O mercado de compra e venda nessas comunidades chega a superar o que se arrecada no asfalto, curiosamente desvalorizado muitas vezes por conflitos em favelas.”29

Aqui mesmo vemos mais uma alteração relevante na realidade das favelas, que Lícia Valladares chamou atenção, de que uma vasta rede de comércio que emergiu em inúmeras construções pelas favelas (a rua principal da Nova Holanda, por exemplo, favela que foi construída como centro de habitação provisória por Carlos Lacerda no início da década de 1960, não tem praticamente nenhum imóvel que não tenha um comércio no primeiro andar) modificando a condição delas de serem um local exclusivamente com função de moradia.30 Em que pesem estas mudanças, além da informalidade das habitações (bem como do mercado imobiliário que surgiu a partir da consolidação das favelas), temos a informalidade de muitos destes serviços e comércios, permanecendo a condição de ilegalidade da favela, traduzida na falta de regulamentos que, supostamente, existiriam no ‘asfalto’.

A favela e o estigma de nascença

A data de surgimento da favela no Rio de Janeiro é controversa. Há o registro de que, após a demolição do cortiço Cabeça de Porco em janeiro de 1893, nas proximidades da Central do Brasil, foi permitido aos seus moradores recolherem parte do material ao chão e utilizarem-no para construir novas moradias no morro da Providência.31 Outra dá

28 LAGO, Luciana Corrêa do. Op. cit.

29 “Aluguéis rendem 107 milhões” O Globo, 25/08/2008.

30 VALLADARES, Lícia do Prado. “Que favelas são essas?” Insight Inteligência. n. 8, ago./out, 1999. p. 63-

68.

31 VAZ, Lílian Fessler. “Notas sobre o Cabeça de Porco”. Revista Rio de Janeiro. vol. 1, nº. 2. jan-abr, 1986.

conta que após a Revolta da Armada, em 1893, soldados se alojaram no Morro de Santo Antônio, também no centro do Rio.32 A versão mais corrente diz que após a campanha de Canudos, soldados vindos para o Rio à espera de pagamento por seus soldos, construíram suas moradias próximas ao Ministério do Exército, no Morro da Providência, batizando-o com o nome de Favela, similar ao monte situado ao lado do Arraial de Canudos. Algumas dessas versões dão conta de que já havia algumas habitações no morro da Providência,

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