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De um modo geral, a literatura analisada está suportada nas relações entre a localização e os agentes nela intervenientes. A série de estudos apresentada, por um lado, traz contribuições valiosas para a compreensão da estruturação interna das cidades e, por conseqüência, da segregação na sociedade contemporânea. Por outro, apresenta fragilidades que é importante ressaltar. Em primeiro lugar, a maior parte das pesquisas parte de pressupostos ecológicos para o estabelecimento de uma teoria das localizações espaciais dos grupos. Em segundo lugar, as abordagens, salvo a marxista, conforme apontara Gottdiener (1997), ainda estabelecem como ênfase os efeitos da organização econômica e dos processos competitivos na explicação dos padrões agregados de comportamento social (GOTTDIENER,1997, p. 37-38). Em terceiro lugar, a estreita relação entre Estado e economia renova o elo positivista e restrito à oposição entre capital e trabalho como causas dos conflitos econômicos, sociais e políticos, utilizando-se das ações estatais apenas como instrumentos de legitimação e acumulação das classes capitalistas. Por fim, no contexto complexo e múltiplo das cidades, no qual aparecem contradições de discurso, as ações e práticas sócio-territoriais, as raízes da estruturação do espaço social não podem ficar restritas a hegemonias ‘positivistas’ nem ‘dialéticas’, de forma que a complexidade do tema não fique restrita a uma visão teórica monofocal. Com isso, o esquema de legibilidade proposto adota como premissa o papel convergente que a questão urbana tem nas abordagens apresentadas, ao mesmo tempo em que, ressalvadas as limitações de cada abordagem, ‘apropria-se’ dos conceitos e termos mais elementares para debater as relações entre Estado, economia, sociedade e espaço na construção, continuidade e reprodução da segregação sócio-espacial no Aglomerado Urbano de Brasília.

2- GESTÃO DO TERRITÓRIO E A FORMAÇÃO DA SEGREGAÇÃO NO DISTRITO FEDERAL E ENTORNO GOIANO (1956-1985)

(...) O espaço está em evolução permanente. Tal evolução resulta da ação de fatores externos e de fatores internos. Uma nova estrada, a chegada de novos capitais ou a imposição de novas regras (preço, moeda, impostos, etc.) levam a mudanças espaciais, do mesmo modo que a evolução ‘normal’ das próprias estruturas, isto é, sua evolução interna conduz igualmente a uma evolução (...) Nesse caso, o espaço é um sistema complexo, um sistema de estruturas, submetido, em sua evolução, à evolução das suas próprias estruturas (...).

(SANTOS, 1982)

O objetivo deste capítulo é responder à primeira questão de pesquisa, que trata do papel da gestão do território na formação da segregação sócio-espacial no Distrito Federal, em um processo que vem se reproduzindo também em municípios do Entorno Goiano18. Para tal, embora se considere a produção de segregação como uma estratégia de diferenciação espacial dos grupos sociais, no caso em estudo, o monopólio da propriedade da terra, que se configurou desde os primórdios da capital federal, dá destaque à atuação estatal na estruturação do espaço metropolitano.

De forma especifica, a análise procura articular o contexto socioeconômico, aí incluídos o quadro político, a estrutura produtiva, o mercado de trabalho e os movimentos populacionais, como condicionante das ações de gestão do território. Esses processos teriam como resultado uma estrutura urbana, caracterizada, entre outros traços, por diferenciados padrões de segregação sócio-espacial. A análise proposta se desenvolve a partir de estudos bibliográficos acerca dos condicionantes da formação do que se conhece atualmente por Aglomerado Urbano de Brasília, aqui entendido como um conjunto urbano ainda em formação. Este capítulo inclui os períodos de Implementação (1956 a 1969) e Consolidação (1970 a 1985) da nova capital brasileira. Como forma de ancorar a análise, a primeira aproximação é histórica e trata dos antecedentes do processo.

18 Entenda-se por Entorno Goiano como sendo a unidade espacial composta pelos

2.1-ANTECEDENTES DA DINÂMICA TERRITORIAL REGIONAL

As primeiras formas de ocupação existentes na região Centro Oeste têm sua origem vinculada à economia aurífera, responsável pela intensa mobilidade espacial das entradas e bandeiras. Nesse período surgiram os povoados de Minas de Nossa Senhora do Rosário de Meia Ponte (1727), transformado, em 1732, em distrito de Meia Ponte e, em 1890, em Pirenópolis; Santa Luzia (1746), hoje Luziânia19; Santo Antônio do Descoberto (1750). A ocupação do território intensificou-se no século XIX, com a expansão dos povoados já existentes e através da criação de novos núcleos urbanos, tais como Mestre d' Armas posteriormente Planaltina (MMA, 2003).

O arrefecimento do ‘surto’ urbano relaciona-se com mudanças na estrutura econômica nacional e local. A decadência das minas de ouro na região do leste goiano levou à estagnação econômica e isolamento geográfico de ampla maioria das vilas e arraiais existentes. A estrutura produtiva consolidou-se em atividades do setor primário, com destaque para a pecuária extensiva, praticada em grandes áreas de pastagens naturais e lavoura de subsistência, prolongando até a primeira metade do século XX.

Após décadas de estagnação e isolamento, os anos 30 e 40, do século XX, trouxeram novos interesses e estratégias em relação à região Centro-Oeste. O longo período caracterizado pela presença do governo federal, restrita a ações militares de delimitação e proteção das fronteiras territoriais, deu lugar às políticas de ocupação territorial baseadas no discurso do primeiro período desenvolvimentista da "Marcha para o Oeste" (SILVA, 1997, p.38). As ações implementadas procuraram estimular a migração para a região, atraindo camponeses e trabalhadores rurais, nacionais ou estrangeiros, para núcleos de colonização (OLIVEIRA, 2003, p.01).

A principal ação do programa Marcha para o Oeste no estado de Goiás foi a transferência e construção da capital, de Goiás Velho para Goiânia.. A construção da cidade planejada de Goiânia reforçou o processo de interiorização da economia brasileira e gerou um surto de desenvolvimento local, com fluxos migratórios de diversas regiões do país e constituição de um centro socioeconômico no eixo Goiânia-Anápolis (SILVA, 1997, p.40).

19 Neste período, finais do século XVIII, a vila de Santa Luzia era apenas um

povoado em expansão devido às minas auríferas. Com o passar do tempo, a vila passou a categoria de cidade denominada Luziânia, concentrando as sedes do poder eclesiástico e políticos locais. Desempenhou, por este motivo, papel de centro político da microrregião do leste goiano, disputando com Pirenopólis o lugar da primazia local. (DA GUIA, 2003).

Contudo, a intervenção estatal de maior impacto social e econômico no leste goiano foi a transferência da capital federal coadunada com o projeto de integração nacional. Diferentemente de Goiânia, Brasília surge no Planalto Central como um pólo de desenvolvimento regional, atrator de fluxos populacionais, atuando como o ‘centro de gravidade’ ao redor da qual orbitam realidades tipicamente agrárias. A transferência da capital federal para o Planalto Central gerou expectativas e diversas intervenções estatais que mudaram por completo o cenário socioeconômico do leste goiano, principalmente com a decisão da escolha do sítio castanho, delimitado pelo relatório Belcher20, como futuro local de construção de Brasília.

Para Silva (1997), no período de “preparação do terreno para a construção”, a economia local passou a ser movimentada, nos municípios goianos de Corumbá de Goiás, Planaltina e Luziânia, pela intensa especulação das terras de qualidade agrária, decorrentes da proximidade física com o quadrilátero do Distrito Federal. Observou-se um rearranjo espacial em direção às rodovias de ligação com Brasília (BR-040 e BR-060), conformando uma nova estrutura territorial por meio da oferta de terras para uso urbano em distritos tipicamente rurais (SILVA, 1997, p.48).

No que se refere às ações políticas, antes mesmo da construção da capital federal, observou-se a emergência de dois agentes na organização espacial do Aglomerado Urbano de Brasília: o Estado e os loteadores descapitalizados21. O primeiro, que por meio de práticas territoriais comandadas pelo governo central, teve no planejamento técnico e racionalista o controle de todas as etapas de construção e implementação da nova capital: projeto, urbanização e ocupação do território de Brasília. O segundo agente, que por meio de práticas territoriais comandadas pelos fazendeiros e líderes políticos locais, teve o controle da intensa

20 Trata-se de um relatório técnico que se constitui de estudos e levantamentos

necessários à seleção de sítios indicados para abrigar a nova Capital do país. Dentre os 8(oito) sítios delimitados, o Castanho foi indicado para abrigar a capital federal, perfazendo uma área de 5.850 quilômetros quadrados (Km²) (CARPINTERO,1998).

21 A figura do loteador descapitalizado foi utilizada por diversos estudos sobre a estruturação interna das cidades do Rio de Janeiro (LAGO,2000) e Belo Horizonte (MENDONÇA,2002).A utilização para o caso do Aglomerado Urbano de Brasília deve-se, em parte, à ação dos fazendeiros na apropriação da renda gerada pela proximidade com o canteiro de obras da nova capital. Ribeiro (1994) aponta que, no caso do Rio de Janeiro, o (...) loteador descapitalizado realiza a operação sem investir previamente uma grande soma de recursos, não o mínimo para iniciar o negócio. Este agente era o próprio proprietário da terra ou um corretor que com ele se associava, não havendo, portanto, compra anterior da gleba. A sua estratégia de comercialização se orientava pelo objetivo de realizar rapidamente as primeiras vendas, oferecendo os lotes a baixo preço e a prestações compatíveis com a baixa capacidade de endividamento do comprador. E o negócio fosse bem sucedido, o loteador vendia os lotes restantes em condições mais favoráveis, por um preço superior e em prazo mais curto, em função da valorização proporcionada pelas primeiras ocupações (...) (RIBEIRO, 1994, p.11-12).

produção de loteamentos semi-urbanizados, principalmente nos municípios de Luziânia e Planaltina de Goiás.

A delimitação do quadrilátero que iria abrigar a nova capital federal consistiu basicamente na desapropriação de fazendas e na transferência da sede municipal de Planaltina, que tomou o nome de Planaltina de Goiás, para fora do quadrilátero. Nesse período de incorporação de terras ao setor produtivo e de crescentes fluxos migratórios, a valorização fundiária decorrente da ação estatal (presença de rodovias, escolas especializadas, fábricas de cimento, usinas hidrelétricas, dentre outros), gerou, por parte dos líderes políticos locais e proprietários das fazendas a produção de loteamentos organizados e vendidos pelas mesmas lideranças políticas (SILVA, 1997, p.49-50).

A breve revisão dos antecedentes de formação da região do leste goiano mostra que, desde as ações da Marcha para o Oeste, já se verificavam as intenções de incorporação de terras do sudeste goiano ao dinâmico setor produtivo das regiões urbanas do país, com destaque para São Paulo e Rio de Janeiro. Com a construção da nova capital brasileira, essas tendências tomaram dimensões significativas, principalmente se partimos do pressuposto que, desde os seus primórdios, Brasília situara-se como pólo de desenvolvimento urbano e regional em uma área com predominância das atividades ligadas ao ramo agropecuário. Em decorrência, a atuação do Estado e dos loteadores descapitalizados foi determinante para as posteriores fases de Implementação e Consolidação do Aglomerado Urbano de Brasília.

2.2- GESTÃO DO TERRITÓRIO E SEGREGAÇÃO NA FASE DE

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