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Capítulo 2: De Muitos, Um O Federalismo na Constituição Nacional na América.

2.1. O federalismo como opção.

Ex pluribus, unum. De muitos, um. Esta citação explicita uma importante característica do complexo processo que se desenvolveu nos Estados Unidos e na Argentina entre o desencadeamento dos processos de independência (1776 e 1816, respectivamente) e a formação de um Estado que se possa afirmar efetivamente “nacional”. Foi justamente de muitos (estados, províncias, pueblos) que se formaram duas grandes nações unificadas. Entender como e porque unidades políticas menores, como as citadas acima, se unificaram em torno de um projeto centralizador, nacional é o objetivo deste capítulo. O foco aqui é justamente o do papel do federalismo/confederacionismo como ideais norteadores na construção dos Estados nacionais na América. Não se pretende afirmar uma equivalência nos processos nem uma uniformidade para todo o continente, mas trazer à tona elementos que possam tornar a comparação frutífera para a história da América. Marcello Carmagnani64 considera o federalismo uma espécie de “cultura política” na América, ainda que, no século XIX, seus termos não estivessem claramente delimitados. Talvez justamente por isso, e a partir da experiência pioneira dos norte-americanos, foi possível aos agentes históricos da época debater e construir um novo campo de experiência política pautado no federalismo/confederacionismo. É precisamente por esta veia que se pretende visualizar e comparar os processos de formação dos Estados nacionais nos Estados Unidos e na Argentina.

Conforme vimos no capítulo anterior, os processos de independência desencadeados numa e noutra ponta da América fizeram emergir a questão da soberania como elemento norteador de todo o debate político, ou seja, a disputa por poder entre as unidades políticas menores, como os estados e as províncias e o poder central. O

63 SOUTO, 2009, p. 453

rechaço à condição colonial e ao rei inglês nas Treze Colônias e a vacância do poder real espanhol, suscitada pela invasão napoleônica na América espanhola, transferiram a soberania da figura do monarca para as mãos do “povo”. Essa mudança colocou nas mãos dos ex-colonos o papel de definir o local de fato da soberania ou qual era o sujeito de imputação dessa soberania. A desconstrução de um poder central eleva unidades políticas menores, locais, antes submetidas ao jugo do poder central (metropolitano e colonial), ao patamar de unidades soberanas e independentes, inclusive umas das outras. E foi diante da disputa entre esses poderes locais ou unidades menores de poder, como as Treze Colônias norte-americanas e as províncias do antigo vice-reino do Rio da Prata, e de um poder centralizado que estes estados se consolidarão como “nacionais”. Há uma mudança política da afirmação do poder, soberania, autonomia e identidades dessas unidades menores e locais para a construção e afirmação de um poder central fortalecido. A documentação produzida como resultado desses debates evidencia esse câmbio político. Essa mudança é clara, por exemplo, na passagem dos Artigos de Confederação de 1781 para a ratificação de uma Constituição nacional em 1787, nos Estados Unidos e, do Pacto Federal de 1831 para a Constituição de 1853, na Argentina.

O que se pode observar, portanto, é que entre os pactos políticos propostos como formas de organização do Estado no pós-independência tanto nos Estados Unidos quanto na Argentina estão os pactos federais ou confederais. Esses aparecem como opções políticas que refletem os anseios autonomistas das unidades políticas que disputam o lócus da soberania. Mas é interessante notar que as distinções entre os termos federação/confederação não estavam ainda claramente colocadas, e que ao longo do final do século XVIII e início do XIX, os conceitos foram utilizados muitas vezes de forma imbricada e flutuante. Para Chiaramonte,

(…) el llamado federalismo argentino continúa aún hoy designando tendencias y actores políticos que muchas veces poco tienen que ver con el significado del término en la bibliografía jurídico-política contemporánea (…) el descuido de la diferencia entre el triunfante confederacionismo y la noción de federalismo.65

Mas se não há clareza quanto à distinção dos termos, fica já perfeitamente claro que foram utilizados como um antagonismo em relação ao pensamento centralista : à dupla federação/confederação se vinculam os desejos autonomistas de algumas províncias no espaço argentino e de alguns estados das antigas Treze Colônias. Para

Carole Leal, a dupla emerge como uma das soluções possíveis para a desconcentração de poder e ampliação das liberdades66. Isso pelo menos até o momento em que ocorre um turn no significado de federalismo nos Estados Unidos justamente como decorrência do seu processo interno de desenvolvimento político. Isso vai acontecer em 1787, quando o grupo político que luta pela ratificação de uma constituição federal, nacional, se apropria do termo federalista, designando assim, a existência de um governo central fortalecido, embora isso não signifique a submissão total dos poderes estaduais. A mudança do termo “que se produce entre 1778 y 1787 en la experiencia de los angloamericanos asentó la distinción entre „gobierno federal‟ y la actuación del „gobierno nacional‟”67. A ambigüidade léxica entre os termos nos mostra as diversas possibilidades de natureza do pacto que pode ser firmado a partir do ideal federalista. A diferença, por exemplo, assinalada entre unidade e união, que se insere nessa ambigüidade léxica, aponta para uma diferença semântica entre uma aliança temporal e uma federação68. Quando se entra em acordo pelos Artigos de Confederação em 1781 e pelo Pacto Federal de 1831, o que está colocado é ainda uma frágil união, longe de conformar uma unidade, principalmente uma unidade de interesses e de identidade.

Numa ordem política federal, a soberania, requisitada por cada corpo moral, é constitucionalmente descentralizada. Esta ordem obedece justamente ao que era o temor maior dessas unidades políticas: a perda do poder e da autonomia locais. O que se buscava era uma forma de organização na qual não haveria a sobreposição de um governo nacional que pudesse usurpar as liberdades políticas e também econômicas dessas unidades autônomas. No federalismo, a autoridade final reside em cada nível da federação, que pode ser auto-governante em determinadas áreas. Os cidadãos, nesse sentido, teriam obrigações para com os dois níveis de autoridade e soberania. Trata-se, de uma combinação entre shared rule e self-rule. Nesse sentido, “a federation involves a territorial division of power between constituent units and a common government”69.

De forma bastante simplificada, o federalismo possibilita a constituição de federações e confederações. No primeiro caso, fica claro que as unidades constitutivas são subordinadas efetivamente a um governo central, do qual emana a soberania nacional e também a cidadania, ou seja, seus membros individualmente fazem parte de

66 CURIEL, 2009, p.427

67 Ibidem, p. 437

68 Ibidem, p.428

69 FOLLESDA L, 2010. “uma federação envolve uma divisão territorial de poder entre as unidades constituintes e um governo comum”.

um corpo maior, que é o corpo nacional. Os estados, ou províncias, estão ligados organicamente a esse centro de poder, que possui grande força e atribuições institucionais extremamente centralizadas. Uma confederação, por outro lado, é uma ordem política em que o poder centrípeto é mais fraco e dependente das suas unidades constitutivas. Trata-se de uma “união entre formas independentes que por determinados interesses se unem sem prejuízos à autonomia de cada qual”70. Em uma confederação, portanto, a autoridade central é delegada às unidades-membros e não a um governo nacional ou central, e quando a autoridade é cedida ao centro, não pode ser de forma permanente, já que essas unidades podem se desligar da confederação. Isso significa que essa união não é inabalável e pode ser desfeita a qualquer momento, diferentemente do que ocorre em uma federação. Para Carmagnani, no federalismo,

(…) los estados por el hecho de ser titulares ellos también de soberanía y poseer una esfera política propia, pueden dar vida a mecanismos políticos formales e informales que tiendan a vincular dos o más estados entre sí sobre problemáticas afines, dando realidad a prácticas políticas caracterizadas como seccionales71.

A aliança, o pacto confederal, pressupõe, portanto, uma união em torno de interesses comuns para fins ofensivos, defensivos e comerciais. É um pacto temporal e a soberania é compartilhada entre os corpos políticos, diferindo-se na própria atuação do governo, uma vez que em uma federação de fato, há um governo nacional e a soberania é indivisível e reside no corpo central, compondo uma nação e agindo sobre todos os cidadãos numa relação vertical. Assim, como veremos mais adiante, o chamado “Pacto Federal”, firmado na Argentina em 1831 seria em realidade um pacto confederal, demonstrando assim, essa ambigüidade léxica a qual nos referimos. Já nos Estados Unidos, quando da afirmação da Constituição nacional, que preconizava um governo central com prerrogativas próprias de um Estado centralizado, e que seria por isso, “antifederal”, o que se observa é justamente a utilização do termo “federal”. Após a consolidação deste estado central, os EUA se tornaram uma união federal bidimensional com uma dimensão horizontal, que ligava as partes mais ou menos autônomas, e uma dimensão vertical, que se firma como significado “vencedor”, por assim dizer, na qual

70 PIMENTA, 2002, p.113 (g rifos nossos). 71 CA RMA GNANI, 1993, p.10

essas partes, bem como seus cidadãos, estavam conectadas a um governo central que se estendia sobre todas elas.72