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ARTICLE II. Each state retains its sovereignty, freedom and

Capítulo 3: Território, Fronteira e Natureza: a forma de uma nação

3.3. Fronteira: entre o que é e o que se deve ser.

A transformação do sentido de territorialidade em uma realidade apreensível após a sua redefinição política se dará então pela demarcação das fronteiras nacionais. Como etapa final no processo de definição territorial, a fronteira materializa as divisões estabelecidas após negociações, lutas e tratados: é uma forma de apreensão intelectual do espaço geográfico.187 A fronteira limita não apenas o espaço de jurisdição, mas também os âmbitos de produção e reprodução da identidade nacional, e exclui aquilo

185 PIMENTA, 2002, p, 205 186 MURARI, 2007, p.53

que está fora dos parâmetros idealizados. Trata-se, portanto, de um símbolo político e intelectual que delineia a forma como o Estado projetou o seu alcance territorial do poder. A fronteira torna a nação um elemento tangível188.

Não há consenso em torno do termo “fronteira”. Este é traduzido e utilizado em vários contextos e línguas de formas diferentes. Michiel Baud e Van Schendel apontam para o problema de se definir o termo em si. O termo boundary, por exemplo, pode ser usado em discussões diplomáticas sobre a localização de fronteiras, pode apontar para linhas divisórias entre pessoas ou culturas; quando se trata de diferenças psicológicas ou para enfatizar regiões, normalmente o termo border é mais usado. Frontier normalmente se refere à expansão territorial de nações ou civilizações em direção a áreas “vazias”189. Aqui, assim como para esses autores, o termo fronteira é utilizado como sendo de fato as divisões políticas que resultaram justamente do processo de construção nacional. Contudo, deve-se tomar o cuidado de não entender essas fronteiras simplesmente como barreiras estáveis e intransponíveis, pois a mobilidade é uma qualidade intrínseca ao próprio termo. A fronteira pressupõe um avanço em direção à margem, onde ao mesmo tempo em que separa um Estado de outro, cria zonas de contato, seja entre Estados, culturas ou regiões geográficas. Assim, ainda que haja uma forte tendência a pensá-la como o encerramento de um espaço, a partir de uma “abordagem fixada pela territorialidade e pela geopolítica”, é necessário compreender também o seu aspecto de passagem, de trânsito e comunicação190. Ela remete a um limite de soberania, ao pertencimento ao território o qual delimita e interfere na própria relação que se tem com o outro, aquele que está fora de sua circunscrição.

A fronteira confirma cartograficamente uma soberania política em jurisdições territoriais e põe fim às formas irregulares, muitas vezes flexíveis e contestáveis, que os princípios coloniais de ocupação do território suscitavam e que, dentro de um sistema global de Estados, não podiam mais existir. Assim, é importante ressaltar que do mesmo modo como os Estados nacionais foram reificados pela historiografia, as fronteiras também, como um de seus elementos constituintes mais importantes, passaram pelos mesmos processos de imaginação, construção e naturalização, os quais precisamos reavaliar historicamente. Sobre o caráter artificial das fronteiras, Baud e Schendel frisam que são:

188 QUIJA DA, 2000, p. 376

189 BAUD; SCHENDEL, 1997, p. 213 190 PESA VENTO, 2002.

(…) prime examples of how mental constructs can become social realities. Once agreed upon in diplomatic meetings and neatly drawn on maps, borders become something real for the people living near them191.

Para esses autores, a naturalização das fronteiras foi manipulada pelo Estado e esteve a serviço de uma ideologia nacionalista na busca de sua legitimação192. Porém, a cartografia dessas fronteiras definidas politicamente passou também por um processo de construção ideológica tributária não apenas da história, mas em muito devedora da geografia, outro campo de conhecimento que se consolidou no século XIX e que serviu igualmente ao Estado em sua legitimação territorial. Os argumentos da s fronteiras naturais e da predestinação geográfica foram amplamente utilizados na justificativa da expansão territorial norte-americana e do “fechamento” do território argentino. A idéia de que os territórios nacionais poderiam ser delimitados a partir da seleção de acidentes geográficos como rios, mares e montanhas, agregada à noção de que determinados Estados tinham direitos naturais sobre ou estavam predestinados a essas fronteiras justificou a expansão para oeste nos Estados Unidos e também o avanço do Estado Argentino sobre seu deserto.

Contudo, está claro hoje que a seleção dos elementos geográficos ou “fatos naturais”, tomados como elementos naturalmente, ou providencialmente colocados como limites entre as nações além de ser uma construção mental varia de acordo com os interesses em jogo, oscilando de acordo com as conjunturas políticas. Rios, montanhas e bacias hidrográficas foram considerados como perfeitas fronteiras naturais e muito mais facilmente delimitados do que fronteiras culturais, étnicas ou lingüísticas. Pimenta afirma que a “idéia de especificidade territorial consagrava-se na América espanhola nas primeiras décadas do século XIX, amparada numa poderosa base de racionalidade oferecida pelo argumento das „fronteiras naturais‟”193.

Mas este importante elemento ideológico não esteve presente apenas na América espanhola, mas também na América inglesa, talvez de forma ainda mais proeminente. Os argumentos complementares das “fronteiras naturais” e de “predestinação geográfica” foram essenciais para a materialização das fronteiras nacionais e, talvez

191“(...) ótimos exemplos de como constructos mentais podem se tornar realidades sociais. Uma vez que as fronteiras foram acordadas em encontros diplomáticos e ordenadamente desenhadas nos mapas, elas se tornam algo real para as pessoas que vivem ao seu redor”. BAUD; SCHENDEL, 1997, p.242

192 Ibidem., p.232

mais importante, funcionaram como instrumentos na construção mental dessas fronteiras. Esses dois aparatos ideológicos foram importantíssimos para a produção de um imaginário territorial na Argentina e nos Estados Unidos e podem ser facilmente identificados como aspectos inerentes às geo-narrativas produzidas no século XIX.

A natureza exerceu assim um papel decisivo, definidor não apenas do espaço de jurisdição da nação, mas também da própria identidade nacional. Os seus aspectos físicos, climáticos e hidrográficos foram concebidos como agentes constitutivos do destino da nação, da sua história, do seu povo. Cria-se assim, uma “pátria natural” por meio de uma operação de nacionalização da natureza. Não é apenas o Estado que configura a nação, ela existe naturalmente. E mais ainda, ela passa a existir por uma relação temporal distinta: a nação não é recente, ela é tão antiga e tão natural quanto o seu território. Forja-se uma relação mítica com o tempo, uma relação de ancestralidade. Isso é particularmente importante para a América. A natureza imponente, fulgurante e dominadora, bastante diversa da natureza encontrada na Europa torna-se um elemento definidor de uma nacionalidade construída. Maria Elisa Mäder afirma também que a grandiosidade natural na América foi uma espécie de substituto de uma herança histórica, ou de um tradicionalismo. A pujança da natureza teria possibilitado a construção de uma antiguidade mítica a partir da herança natural do território e a autora afirma que as imagens construídas sobre este teriam sido amplamente utilizadas como instrumentos de análise pelos intelectuais e como forma de legitimação das novas identidades forjadas194.

Para autores como Turner e Sarmiento, o papel da natureza precisa ser reconhecido pelo homem uma vez que ela se impõe sobre ele, determina o seu desenvolvimento, o seu progresso. Ainda que haja diferenças sobre a forma como a natureza exerceu forças sobre a constituição nacional (positivas ou negativas), ela ainda provoca admiração e temor, mas é a natureza também que marca as singularidades, as originalidades da nação que está sendo gestada, recebendo um tipo de tratamento sagrado. A natureza, como herança torna-se uma promessa de futuro, e as imagens produzidas sobre ela “podem ser tomadas como exemplos de apropriação étnica da paisagem e de construção e difusão de mapas cognoscitivos da terra natal de uma comunidade histórica particular”195.

194 MÄDER, 2008a, p.263

195Maria Elisa Mäder utiliza a idéia proposta por Antony Smith, na qual ele sustenta que a identidade nacional provém da reserva de mitos e lemb ranças históricas inclusive da natureza histórica da terra natal.

A construção territorial, portanto, bem como a sua delimitação através da fronteira, irá se apoiar sobre a natureza. E um destino ou uma predestinação nacional pode ser formulada. A marcha norte-americana até o oceano Pacífico formulando uma espécie de “ilha-continente”, bem como o Rio da Prata como o limite natural de uma nação argentina unificada foram idéias criadas e pautadas justamente em uma concepção natural de fronteiras e utilizadas como argumentos irrefutáveis da unidade e grandiosidade das nações norte-americana e argentina.