• Nenhum resultado encontrado

FEL E SANGUE

No documento O riso em movimento (páginas 123-159)

IV. 1 Fel escorre da pena de Camilo

O humor está presente na Literatura desde seus primórdios. A cada momento histórico, a manifestação do cômico adquire novas nuances, por isso não é de estranhar que tantos filósofos tenham se debruçado sobre o assunto. Também Camilo valeu-se do cômico para promover um retrato bastante amplo de sua época, de seu povo e dos sentimentos humanos.

O recurso já era apontado por Quintiliano como ―um meio excepcionalmente poderoso de solaparmos nossos adversários‖ (Skinner, 1999, p.268), Crasso, personagem de Cícero, contribui com a questão sugerindo motivos que levam ao riso: ―é possível encontrar material para o ridículo nos vícios observáveis no comportamento das pessoas" (Apud Skinner, 1999, p. 268). Como se percebe, a oratória antiga reconhecia o humor como um procedimento útil para conquistar o público e, ao mesmo tempo, expressar derrisão.

Considerando-se as citações feitas por Camilo em O sangue de textos que se valem do humor, nota-se que o escritor estudou e apreciou o recurso. Um dos livros mais antigos, de feição irônica, aludidos na novela em questão, é A arte de furtar, texto anônimo, escrito no século XVII. A narrativa apresenta o intuito de ―ensinar a conhecê-los [os ladrões], para os evitar‖ (2006, p. 30) Permeada por ironia ferina e estilo jocoso, o livro dedica-se a satirizar os costumes da época, revelando que os verdadeiros ladrões e piratas não são punidos; pelo contrário, ocupam tronos e recebem homenagens. Nesse texto, são feitas críticas severas aos poderosos, ao sistema judiciário e à nobreza. Entretanto, o foco da censura feita pelo livro não é a sociedade, mas o ser humano; por isso, a vaidade, a ambição, a soberba, o zelo pela opulência e o excesso de amor próprio são julgados com veemência.

Outros autores que se dedicam ao humor, citados pelo novelista são Molière e Gavarni. O dramaturgo do século XVII tratou, em suas peças, de vários temas que aludem ao comportamento do homem da época. Suas críticas dirigem-se aos modos afetados da nobreza, à falsidade das relações matrimoniais, à hipocrisia da classe dominante - sobretudo a do clero -; ao ridículo procedimento dos novos-ricos de imitar a nobreza; à soberba e à

arrogância. Seu humor é corrosivo e erudito, não se trata do burlesco, do grosseiro, do agressivo, mas revela o poder do dito espirituoso, parece corresponder ao que Freud preconizava como um riso que revela um sentimento de superioridade e de superação e confere liberdade quanto à fraqueza do outro. Esse tratamento do cômico vai abrir espaço para a caricatura, amplamente cultivada no século XIX.

Nesse âmbito, Gavarni revelou-se genial, apresentando por seus desenhos os costumes de sua época em traços burlescos e picantes. Ele iniciou seu trabalho ridicularizando tipos sociais, mas, em fase mais madura, passou a retratar o lado grotesco da vida familiar e da natureza humana. Suas gravuras sugeriam pessimismo e indignação diante do ridículo dos vícios. A caricatura exagera traços psíquicos, dessacraliza, servindo até mesmo aos iletrados, daí Baudelaire afirmar:

[A caricatura] realiza desproporções e deformações que devem ter existido na natureza em estado de veleidades mas que não podem desabrochar, recalcadas por uma força maior. Sua arte, que tem qualquer coisa de diabólico, ressalta o demônio que derrotou o anjo. (fonte)

O filósofo considerava esse riso de perfil demoníaco como profundamente humano uma vez que sugere a debilidade do homem em seu orgulho, sua intenção de humilhar, de vingar-se, de agredir.

O cômico em Camilo, no entanto, parece transcender essa intenção e vincular-se à dialética do riso e da tristeza preconizada por Victor Hugo. Para o autor, o cômico advém da tomada de consciência de que a realidade é grotesca e muito distante do ideal. Essa concepção vai ao encontro da busca romântica pela unidade perdida.

El espíritu del hombre, creatura separada, es el espejo más puro del universo y del Alma universal. Más aún, esta Alma no puede llegar a la consciência y conocerse a si misma sino en su imagen, que es la alma humana; pero no [...] en el alma tal cual es, inculta y abandonada, sino únicamente en el hombre que há sabido llegar a ser lo que ya es. Lo que debemos hacer es habituar nuestro oído para percibir el diálogo interior del Todo consigo mismo, alcanzar em nosotros mismos las regiones inconscientes, que son de la semejanza divina. (Béguin, 1993, p. 103 – 104)

O riso camiliano reúne as várias gradações do humor clássico e romântico, incidindo, fundamentalmente, sobre a psicologia humana de forma dissimulada, irônica. Antídoto contra a atitude sisuda e nada criativa de uma sociedade pautada em regras que se articulam de acordo com os interesses da classe dominante, o humor de Camilo parece ter o

intuito de gerar prazer psicológico a si e ao leitor sagaz que escarnece de procedimentos indicativos de certa economia mental.

Em O sangue, o cômico relaciona-se ao próprio processo narrativo, já que Camilo elabora seu texto revelando a literatura como fingimento e como representação, para o quê se vale da ironia romântica. Exemplo desse procedimento são as sínteses com que se iniciam os capítulos, cabe citar um trecho modelar:

Desengano aos fariscadores de escândalos. Como pode o engenho fazer o milagre de conservar personagens honestos até o 4º. capítulo inclusive. De como no Porto de há vinte anos houve homens endiabrados com senhoras, e outras coisas tristes. Por que dizem que a esperança é verde. [...] Dizem outras coisas que tocam o coração. (Camilo, 1907, p. 53)

A consciência crítica do autor refreia-lhe o sentimentalismo e faz irromper um escritor irônico, capaz de dessacralizar seu tempo, sua gente e seu próprio texto. Também a compreensão de que a vida social é composta por disfarces e dissimulações é sugerida por comentários críticos de teor metalinguístico os quais perpassam as cenas de pura farsa. Esse saber torna a melancolia, a desilusão, a amargura diante da estupidez humana o cerne do humor de Camilo. Em suma, é necessário brincar com a dor para obter consolo e autopreservação.

A índole do riso camiliano é sugerida nessa narrativa, sobretudo, pelas alusões intertextuais. O livro é permeado de um riso ácido que desorganiza as convenções, liberta das circunstâncias exteriores, esfacela a moral social hipócrita, para tornar o leitor apto a ver o mundo com olhos mais críticos e atentos. ―No grotesco romântico [...] a loucura adquire os tons sombrios e trágicos do isolamento do indivíduo.‖ (Bakhtin, 2010, p. 35)

O narrador inicia o romance, em tom de deboche, a pedir a um amigo um lance extraordinário para um escritor que de uma ideia sem originalidade nenhuma compõe dez livros singulares. A alusão metalinguística e a intertextualidade são elementos fundamentais para a compreensão do processo narrativo camiliano.

Com base nesse pressuposto, importa iniciar o estudo do romance pela apreciação crítica dos textos aludidos pelo escritor. Como já se enunciou, um índice onomástico das citações de Camilo caminharia dos clássicos aos românticos pela vertente do blague, do

chiste. Percebe-se, por isso, o valor que o novelista atribui ao humor como forma de desentorpecer os sentidos para produzir mudanças.

Alerta de que a vida é efêmera e, por isso, há que se valorizar o eterno e o risco, o novelista promove a caricatura da sociedade burguesa de forma a evidenciar quão frágil e insignificante é sua moralidade, enquanto defende a integridade do interior humano. Para afrontar a falta de entendimento e a hipocrisia, Camilo emprega um riso amargo, misto de prazer e dor, que denota censura e compaixão. ―{...} Num mundo fechado, acabado, estável, no qual se traçam fronteiras nítidas e imutáveis entre todos os fenômenos e valores, o infinito interior não poderia ser revelado.[...] (Bakhtin, 2010, p. 39) Para isso contribui o uso triste da sátira.

A análise crítica inicia-se desde a primeira página da narrativa, que se abre com uma conversa entre o narrador-autor e Antônio Joaquim. Esse diálogo é pretexto para Camilo zombar dos ricos que louvam a pobreza e não conseguem conviver com a ideia de velhice pelo apego excessivo à vida. As reflexões do amigo abastado lembram ao narrador a Arte de furtar.

Antônio Joaquim, por seu turno, considera a moralidade do personagem-autor semelhante à de Droz e de Franklin e a conduta ética dos desvalidos similar à de Sócrates, Philo, Jesus Cristo e Jean Jacques Rousseau.

Sem perder o tom de deboche, o narrador-autor rebate que pouco sabe desses filósofos e só se incomoda em tentar desvendar o significado das palavras de Cristo, ―Benditos os que choram‖. Para Camilo, cultivar e expressar emoções definem o cerne do homem; no entanto, ele olha com desconfiança o versículo citado já que o consolo prometido aos que sofrem é substituído, em sua sociedade, por zombaria e menosprezo. Choram os pobres e oprimidos que são rejeitados e escarnecidos.

Como se pode notar, em poucas páginas há um grande número de citações. Cabe lançar alguma luz sobre as ideias sugeridas por essas alusões intertextuais a fim de adentrar-se o universo camiliano.

Sobre os filósofos citados, basta recordar algumas ideias-chave que corroboram a visão camiliana. Droz propunha que o homem deve ser educado para privilegiar os deveres em detrimento dos direitos a fim de construir uma sociedade exemplar. Em Franklin, são coletados ideais de liberdade para a conquista da independência individual privada, livre da

opressão de soberanos. Em Rousseau, o desdém pela sociedade urbana, corruptora que deve ser problematizado.

Quanto à filosofia de Sócrates, o que parece interessar a Camilo é o ideal de aprimoramento pessoal e o menosprezo pelo enriquecimento material. Já em Philo, o novelista parece recuperar o conceito, distorcido pelo individualismo burguês, de que as paixões desviam o homem do caminho da perfeição e da virtude; por isso há que se reprimirem os desejos para que a bondade, a prudência, a coragem, o autocontrole sejam cultivados. A Burguesia, em prol do lucro, materializa as relações, subjuga os sentimentos para travar casamentos convenientes.

Depois dessas sugestões filosóficas, Antônio Joaquim oferece-se a contar ao suposto autor um lance original que lhe dê ideia para um romance. As personagens de sua história foram apresentadas ao narrador-autor em certa ocasião em que ceiam um cordeiro ao assistir pela oitava vez à peça Degolação dos Inocentes. Enquanto assistem à dramatização do episódio em que Herodes manda perseguir e executar os primogênitos, a família come um cordeiro do qual deixa cair uma perna do camarote para a plateia. O grupo em que se insere o narrador vai até o local para devolver o quitute em tom de zombaria.

O grotesco é motivo de riso, é

[...] uma espécie de carnaval que o indivíduo representa na solidão, com a consciência aguda do seu isolamento. A sensação carnavalesca do mundo transpõe-se de alguma forma à linguagem do pensamento filosófico idealista e subjetivo, e deixa de ser a sensação vivida [...] da unidade e do caráter inesgotável da existência que ela constituía no grotesco da Idade Média e do Renascimento.

O princípio do riso sofre uma transformação muito importante. Certamente, o riso subsiste; não desaparece nem é excluído como nas obras ―sérias‖, mas no grotesco romântico o riso se atenua, e toma a forma do humor, ironia ou sarcasmo. Deixa de ser jocoso e alegre. O aspecto regenerador e positivo do riso reduz-se ao mesmo. (Bakhtin, 2010, p. 33)

O paralelo entre a peça e um grupo de cristãos-novos que destroça e devora um cordeiro é um índice de como o novelista enxerga a hipocrisia daquele grupo. Tal como Herodes manda sacrificar os primogênitos para assegurar seu poder, os burgueses da rua das Cangostas imolam sua religião e seus filhos em prol de seus interesses. O sacrifício do cordeiro, antes oferecido a Deus, é agora meio de saciar a gula.

Verifica-se, assim, que a acidez e profundidade da visão camiliana permeia as primeiras páginas de seu livro por meio de alusões críticas que somente serão captadas e compreendidas apenas por um grupo seleto apto a rir com o novelista.

O tema da sujeição ao lucro entrelaça-se a assuntos relacionados à psique humana, como o amor-próprio. O enredo de O Sangue tem como nó o casamento de Tomásia e Inocêncio, tramado por Gervásio em busca de direcionar a vida do filho e ao mesmo tempo agraciar a órfã, que criou com amor de pai, tornando-a sua filha. Cabe aqui uma paráfrase resumitiva da novela para enfatizarem-se alguns dados relevantes para análise.

Assim que nasce a menina, sua mãe falece nos braços da vizinha, a rica cristã nova Tomásia de Barros. Imediatamente a família Barros encarrega-se de criar e educar o bebê que recebe o nome de sua madrinha. Quando atinge idade suficiente, o padrinho planeja casá-la com seu próprio filho para manter o dinheiro em família. Os moços titubeiam, mas acabam consentindo. O casamento fracassa já na lua-de-mel, quando o rapaz se revela doentiamente ciumento. Na primeira oportunidade, Inocêncio viaja e amanceba-se com uma francesa. Tomásia permanece solitária até reencontrar um moço que a assediara com longos olhares em sua lua-de-mel. Eles trocam cartas, ela identifica-se com a solidão do rapaz, engravida e tem que fugir com ele depois de o bebê nascer, para livrar-se da vingança do marido. Na fuga, tem que abandonar o bebê, mas planeja vir buscá-lo logo que possível. Entretanto, Inocêncio morre antes de voltar para casa e a família Barros sai de Portugal anonimamente para criar o ―neto‖ na Inglaterra. Já adulto, Pedro toma conhecimento de que a mãe é viva e casada com o homem que teria arruinado a reputação de seu pai. Impetuosamente, o rapaz decide desafrontar a honra do pai, travando um duelo com Nicolau, sem revelar sua identidade; no entanto, é ferido de morte. O marido de Tomásia vem a saber que baleou o filho e enlouquece. Pedro visita Nicolau percebe que aquele é seu verdadeiro pai, mas decide afastar-se e assumir-se herdeiro universal dos Barros. Diante do desfecho, um amigo do narrador comenta: ―Um filho só pode ser filho de quem é seu pai, quando não herda oitenta contos de outro que foi casado com sua mãe.‖ (Branco, 1907 , p. 254)

A trama constitui-se a partir dos interesses mesquinhos de cada personagem. No ancião, há o desejo de preservar seus bens, sem ter que dividi-los com outra família. No rapaz, o interesse por Tomásia é despertado pela inveja de um adversário mais elegante, moço que ―cavalgava guapamente, era bem parecido, galeava pelos figurinos, tinha uns ares soberbos de quem despreza invejosos, entrava na roda dos provincianos fidalgos, e, de mais a mais, [era] rico.‖ (Branco, 1907, p. 73) A órfã aceita a proposta movida pelo

despeito, pois fora ridicularizada por Costa Guimarães. Além disso, a ama lhe assegura que não acharia marido melhor.

A psicologia é tema caro ao novelista. Cada personagem configura-se um meio de Camilo apresentar traços de comportamentos individuais e sociais. A astúcia feminina introduz-se pela personagem Custódia. Interessada em desvincular Tomásia de Inocêncio por antipatizar com o rapaz que sempre a maltratou, ela manipula a menina a corresponder- se com outro. Clama a São Gonçalo de Amarante por um marido para a moça e acredita tê- lo encontrado no dandy Costa Guimarães. Entretanto, quando toma conhecimento de que este desdenha de sua senhora, aconselha Tomásia a corresponder ao filho do Sr. Barros. A sagacidade de Custódia contrasta com sua ingenuidade. Se, por um lado, revela-se engenhosa ao tentar dissuadir Tomásia, mostra-se tola e ridícula quando é crédula, ou retoma as quadrinhas de um antigo pretendente como índice de sabedoria.

Como a ama, as personagens apresentam qualidades e defeitos, os heróis são dessacralizados. No livro, Camilo põe em xeque os exageros românticos e encaminha-se a estabelecer seu realismo romântico, que apresenta consciência dos limites da representação literária, questiona o fazer narrativo, revelando suas incongruências, sem, no entanto, deixar de criticar a arte que se quer retrato imparcial, sem imaginação e criatividade. ―O que faz parecer a novela Camiliana realista é, pois, a sua intensidade romântica, ou seja, a verossimilhança conseguida depende mais da relação enunciador-linguagem-mundo do que de uma adequação da linguagem e do enunciador ao mundo real.‖ (Ferraz, 1991, p. 81)

No intuito de revelar o ser humano por meio de personagens, Inocêncio, sem saber com que moça se casa, é ridicularizado e comparado ao burro de Buridan. Esse jumento, indeciso, morre de fome diante de dois fardos de palha exatamente iguais. Assim, veicula- se a falta de iniciativa de um rapaz educado sob o controle da vontade paterna. Esse traço torna o nome da personagem ainda mais irônico, pois não se trata de ingenuidade, mas de parvoíce.

O caráter ridículo do rapaz é ainda acentuado quando este se põe a citar versos do Ciúme do Bardo, ―em voz soturna‖, ao lado de barqueiros ignorantes e de senhoras que lhe tomam medo.

O texto de Castilho citada apresenta um poeta em desespero por acreditar-se traído por sua amada. O eu lírico oscila entre ímpetos de vingança e de morte, e a iminência de

enlouquecer. O ciúme é, no poema, uma paixão sensual e voluptuosa que aguça os sentidos e a imaginação. O adultério faz com que o sujeito poético deseje o mal de sua amada para que sua desgraça sirva de exemplo à humanidade.

A história de amor do bardo apresenta algum ponto de semelhança com a de Inocêncio e Tomásia. Ambos os casais conhecem-se desde a infância; no entanto, em Castilho, há amor do que decorre o desejo do sujeito lírico de perdoar a amada. O amor que rompe barreiras não ocorre em Camilo; pelo contrário, o casamento é mero contrato. A insegurança do rapaz gera o ciúme e a desconfiança, esses sentimentos são exacerbados a tal ponto que a esposa aviltada pelas constantes acusações passa a desdenhar do marido e pede ao padrinho que a ponha em um convento.

Camilo concebe Inocêncio como homem pervertido pela sociedade. Acostumado a frequentar bares, jogar, beber, o rapaz entedia-se no isolamento da lua-de-mel. Ao lado da ―Fonte dos Sátiros‖, propõe à esposa que retornem a Lisboa.

A alusão aos sátiros é irônica, pois refere-se aos companheiros de Dionísio que passavam seu tempo perseguindo as ninfas, bebendo vinho, dançando e tocando harmônica de canos, flauta ou gaita. A associação convida ao riso os que são capazes de compreender a alusão.

Hábil conhecedor da psicologia feminina, o autor zomba da situação dos protagonistas, sugerindo que Tomásia, se fosse mulher experiente, teria usado o ciúme para suscitar o desejo do marido. Dessa forma, o narrador evidencia a inocência e inexperiência da moça, o que será valioso para configurar a visão geral do narrador acerca da personagem.

Para asseverar a verossimilhança dos tipos que cria, o narrador compara Costa Guimarães, motivo do ciúme de Inocêncio, a Saint-Preux, ― terror da moral desde a Porta dos Nobres até o Poço das Patas‖ A menção refere-se a uma personagem de Júlia ou a Nova Heloísa, de Rousseau. Diferente da moça que dá nome ao livro e seu marido Wolmar, com quem casa para satisfazer a vontade paterna, o ex-namorado de Júlia, Saint-Preux, não é resignado e virtuoso, mas apaixonado e disposto a viver um amor adúltero. Júlia e o esposo representam o controle racional, como uma virtude que motiva a verdadeira felicidade, a paz da alma. As personagens da narrativa de Rousseau são seres superiores, muito além do homem comum. A moça subordina sua vontade particular à paterna, visando

a preservar a imagem da família. Wolmar configura-se um Inocêncio às avessas, é forte, controlado, domina situação e quer conhecer o antigo namorado da esposa. Saint-Preux não atinge o autocontrole, com ele o leitor pode identificar-se. Entretanto, Rousseau parece negar o que afirma, já que sugere a ataraxia, ao mesmo tempo em que mostra a impossibilidade de o homem comum segui-la.

A Nova Heloísa aponta a contenção racional como possibilidade de resolver os conflitos gerados pelo amor-próprio e por outras tendências humanas, as quais fazem do homem um ser incompleto e insatisfeito; por outro lado, nega essa possibilidade pela confissão do sofrimento de Júlia antes de morrer.

Já em Camilo, os embates humanos são intensificados pelo caráter passional das personagens, o controle dos sentimentos não é um ideal. Incapaz de vigiar a si mesmo e de vencer seu maior desafio, que é o próprio eu, o homem não alcança a virtude e tem destino trágico. Em Rousseau, as belas almas atraem os homens comuns para aperfeiçoá-los; em Camilo, as belas almas são as que se entregam ao amor, rechaçando as convenções,

No documento O riso em movimento (páginas 123-159)

Documentos relacionados