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RESTA RIR

No documento O riso em movimento (páginas 194-200)

Os conflitos do romântico refletem-se no homem contemporâneo, já que se inserem em um mundo que não conseguem compreender. Aquele discorda de seu meio, este vive em um lugar em constante transição, tanto um como outro colocam sua identidade em xeque e procuram espelhos em busca de identificar-se e individuar-se. A ironia está em que o outro, quando reflete as características do eu, não só lhe dá uma identidade, como também sugere que esta não é única e individual, o que gera a despersonalização.

Camilo e seus heróis vivem no mesmo universo dramático, de cores intensas, ao mesmo tempo sublime e sórdido. O ideal dum programa imaginário e a realidade duma experiência vivida encontram-se unidos e indissociáveis [...] [Assim] pôde edificar a expressão dum drama que era bem um drama nacional. (França, 1993, p.285)

Além das condições históricas, o romântico vive um dilema ideológico. Partindo da concepção de que o processo da evolução cósmica parte da ―união mística‖, o homem da época concebe a existência separada como um mal, já que é mero reflexo do Todo. Cada indivíduo traz em si um gérmen da unidade perdida, o que o torna ambiguamente um princípio de individuação e de separação. Do mesmo modo, toda criatura é apenas reflexo da realidade sublime de completude. Nesse sentido, somente a morte ou o Amor podem reunir os indivíduos. Inicia-se, pois, a busca pela segunda criatura que possa acabar com o isolamento do eu.

Contudo só é possível encontrar-se no outro quando as aparências, efêmeras e enganosas, são rechaçadas. Despojado de aspectos materiais, o indivíduo deixa entrever seu eu verdadeiro, sua identidade original. Daí o desprezo do romântico pela materialização do mundo burguês.

Considerada neste aspecto, a existência imediata apresenta-se como um sistema de relações necessárias entre indivíduos e forças na aparência independentes no qual cada elemento ou é utilizado como meio ao serviço de fins que lhe são estranhos ou carece ele próprio do que lhe é exterior para o utilizar como meio. (Hegel, 1993, p. 90)

O exterior é finito e particular, levado em consideração, suscita paixões estéreis que desfiguram o ser tal como era originalmente, os traços mais profundos do espírito, livres e infinitos. O dilema consiste em transpor a finitude da existência para a conquista da liberdade genuína.

A contemporaneidade traz negações às antigas certezas. Não é possível resgatar a vitalidade e a simbologia do passado. A identidade do presente compromete-se pelo prefixo ―pós‖, o qual não só sugere o esgotamento potencial de um tempo, como o esvaziamento do potencial criativo e racional já que não constrói, apenas restaura, recompõe com cinismo e desencantamento. Insinua a sensação de fadiga, crise de sentido ético e existencial.

Não se trata de mera nostalgia ou conservadorismo, mas de revelar em que medida as transformações estruturais deslocaram valores, propuseram uma inovação contínua que gera mal-estar e grave crise cultural.

As concepções de sujeito, relacionadas ao racionalismo e ao empirismo, tornam-se insuficientes, não abarcam a subjetividade do indivíduo, a qual cresce e deve ser problematizada. A posição do Homem no universo não é mais central, organizada e hierarquizada desde a revolução científica do século XVIII que trouxe a noção da infinitude do Cosmo.

Os fundamentos para a teoria e para a práxis, antes concretos e organizados, agora se esfacelam. O indivíduo torna-se mero reflexo da exterioridade e, como tal, deve ser construído, assim como o conhecimento científico.

Para acentuar a sensação de dilaceração do ―eu‖, as Guerras Mundiais evidenciaram a quebra da relação entre razão científica e emancipação da humanidade, demolindo a ideologia do progresso global como alicerce da modernidade. As atrocidades decorrentes das guerras apresentaram como a razão pode voltar-se contra a humanidade, revelando o prejuízo da aparente prosperidade científica.

Dessa desilusão, nascem o cinismo, o tédio e uma nova sensibilidade para o questionamento das verdades instituídas e para a reavaliação do passado. Entretanto, em meio ao ceticismo, é necessário criar novas técnicas para essa análise e para o incentivo ao abandono da inércia, da resignação diante da tirania dos fatos. A indiferença, o individualismo destrutivo devem ser desafiados e colocados em xeque.

alteridade, a diferença, a investigação ontológica devem ser estimuladas. a estratégia utilizada por Fernando Gomes para desentorpecer, minar o ceticismo e estimular a criação é o humor. Pela astúcia, manifesta não mero cinismo cético, mas a alegria que a vida pode ter quando valorizada em seus aspectos mais simples e divertidos.

Nesse sentido, o cômico é, em Gomes, um convite para um novo olhar para a interação. Para isso, alguns recursos linguísticos são fundamentais. Os alogismos sugerem o desmascaramento do que é estúpido e está encoberto. Evidencia-se, dessa forma, a ignorância como fonte do cômico. A oposição entre argúcia de um e a estupidez do outro gera o riso saudável, sem arrogância, nem prepotência, mas simpático. A ignorância muitas vezes revela bondade, benevolência.

Os recursos linguísticos de que se vale Gomes associam-se ao caráter popular de suas personagens. Os trocadilhos revelam a agudeza do dramaturgo, sua capacidade de explorar a polissemia e a paronomásia.

Pela ironia, o autor torna seu público cúmplice de suas ideias. Riem com ele os que o compreendem. A ironia tem destinatário e um alvo, por isso cria comunidades capazes de perceber seus significados. É uma modalidade reflexiva, suscita uma atitude intelectual, já que pressupõe a consciência entre o dito e o não dito e a capacidade de representar a realidade de maneira figurada e literal. Além disso, a comunidade de fala deve compartilhar pressupostos, crenças, valores. Há, portanto, necessidade de um contexto discursivo compartilhado.

Gomes, por compreender a ideologia de seu espectador, dialoga com textos que enformam sua cultura a fim de despertar-lhe o interesse e a reflexão. Pela ironia, os interpretadores tornam-se agentes, não recebem passivamente o enunciado.

Também a chamada ironia romântica e a metalinguagem são recursos úteis às peças gomesianas.

[...] a ironia romântica [...] abarca dois planos da manifestação literária [...]. Um envolve a reformulação do fazer literário e o questionar desse fazer. [...] Outro pressupõe a reformulação do conceito de ‗inspiração‘ [...] De sopro divino, de móbil de certo modo exterior ao poeta, a inspiração internando-se, torna-se sopro vital por obra do tão apregoado centrar do eu. [...] a arte passa a ser uma ‗forma pública de auto-análise‘. [...]

A ironia como autocrítica tende a estabelecer o equilíbrio no excesso de convicção, é tensão primordial no dizer que afirma negando. (Ferraz, 1987, p. 39) Esse é um recurso especialmente eficaz para promover o desentorpecimento porque desilude, apresenta a diferença entre realidade e ficção.

Considerando que ironia vem de dissimulação, a intertextualidade é, em última instância, um recurso irônico já que sugere ideias indiretamente (Hutcheon, 2000, p. 207). Somente pela leitura e interpretação do paradigma alguns significados tornam-se concretos. Com base nesse pressuposto, o contexto textual camiliano antecipa características do comportamento humano e social de maneira que serão retomadas e revisitadas por Gomes.

Também a escolha do tipo e do nome das personagens é um recurso irônico ou humorístico. As personagens criadas por Gomes recebem apelidos que enfatizam defeitos físicos ou sua condição social. Gimbrinhas, por exemplo, é usado em dialeto local para referir-se ao indivíduo fraco, insignificante.

Povoam o universo gomesiano personagens grotescas, diversas do que é considerado e aceito como ―normal‖. Cegos, fanhosos, anões, corcundas, ou até mesmo um cego surdo-mudo ou um cego corcunda abundam nas peças, trazendo o riso e a irreverência. Fazem parte desse universo seres considerados sublimes, pois são retratados comicamente. As freiras de A vida trágica de Carlota, a filha da engomadeira, por exemplo, equiparam-se a prostitutas e são alcunhadas com base em seus pecados.

O reaproveitamento de ditados populares e a distorção de alguns deles dá novo colorido à ideologia de pessoas simples, além de sugerir a revisão de ideias cristalizadas. Interessante notar que o recurso foi utilizado por Saramago, em Ensaio sobre a cegueira como sugestão de que a alteração da concepção de mundo das pessoas cegas reflete-se na sabedoria popular, modificando os provérbios.

Em um mundo em que a violência oprime e as modificações tecnológicas despersonalizam, é necessário encontrar um meio de exorcizar e desmitificar os grandes fantasmas. Em um universo onde prevalece uma visão passadista e acomodada, é necessário estimular o movimento.

O riso torna-se ferramenta para a reorganização das concepções ultrapassadas, dos medos, dos entraves para o progresso intelectual. Tem, portanto, conotação psicológica e social.

O humor revela-se, em Fernando Gomes, como aptidão, inclinação para re- elaboração dos dados mais prosaicos da realidade, evidenciando o que há de lúdico e deve ser valorizado. Dessa forma, desentorpece-se o olhar, regeneram-se as forças reprimidas, promove-se a renovação.

O nonsense toma o lugar do cinismo, renova o humor espirituoso do Romantismo, sem afetação, irreverentemente. Olhar a realidade de forma bem-humorada, jovial, encanta, é um convite para a re-interpretação da vida. A sagacidade coloca-se a serviço da dessacralização e desmitificação de certa maneira receosa de ver a realidade. O cômico suscita cumplicidade e elimina terrores.

Não se trata de hedonismo, nem de otimismo infundado, mas de um tônico regenerador das forças reprimidas. Promove-se uma reorganização mental, uma revisão de como se deve olhar o mundo para eliminar a depressão que causa a inércia. Não apenas se elege o grotesco como motivo de riso, como também nasce a necessidade de reformar as concepções vigentes que estimulam o atraso pessoal e social.

O humor negro presta-se, então, a problematizar os motivos de medo. A linguagem obscena popular promove o diálogo, a identificação do povo e sua participação, possibilita maior interação. Possibilita que a ―arraia miúda‖ construa a história. Daí a importância dos narradores e das personagens populares, as cenas são construídas e comentadas com base em princípios diferentes dos socialmente instituídos.

Gomes parece mostrar como se pode reaprender a rir de forma alegre e descontraída. O dramaturgo parece criar lentes que dão coloridos às cenas cotidianas e fazem rejeitar o previsível. A credulidade é ridicularizada e o senso crítico valorizado. Contribuem para isso o paralelo estabelecido entre grupos tradicionalmente considerados antitéticos, como freiras e prostitutas.

A redundância, a estabilização, o conhecido entorpecem, geram a inércia que deve ser suspensa e obstada. O obstáculo, entretanto, impede o movimento, ainda que temporariamente e é necessário promover a ação. Nesse sentido, o humor é valioso, pois desperta, estimula o movimento em outra velocidade ou direção.

O previsível dá origem à inação, ao acomodamento e, por extensão, a uma postura acrítica, sem criatividade, apática. Diante da impassibilidade da massa, os que a representam ganham poder de manipulação, além de autonomia para direcionar o povo sem entraves.

No âmbito individual, da resignação decorre o retrocesso, a falta de progressão. O resignado não evolui, nem mesmo em autoconhecimento. Iludido, não tem sonhos, não cria, submete-se à rotina e ao cotidiano, sem conquistas, nem autoconfiança.

O humor mobiliza, ventila e ilumina consciências empoeiradas, ideias armazenadas no sótão a fim de que elas sejam renovadas. Nessa esteira, o chiste romântico é ferramenta para o projeto de recuperação da totalidade perdida. Conciliar a consciência racional à criativa pelo dito espirituoso é um meio de reunir o lado humano ao espiritual, sublime, o Todo. A capacidade de elaborar o chiste revela qualidades de um sujeito hábil, criativo e crítico que se dirige a seus pares, estimulando-os e provocando-os.

Em Gomes, o cômico oscila entre o nonsense e o humor negro. O trocadilho recupera o chiste e corrobora o propósito de despertar entorpecidos. Promover a crítica é estimular o indivíduo a reordenar sua visão de mundo e a si mesmo, tornar consciente o que jazia no inconsciente. O dito espirituoso promove a reflexão e põe em movimento tudo o que há no eu, sua razão e fantasia, reunindo o eu inteligível ao eu empírico.

A força encantatória da literatura amplia-se pelo humor já que este incentiva a participação, a cumplicidade. Pela força da palavra plurissignificativa, o espírito toma forma, concretiza-se.

―O trabalho da ‗crítica genuína‘ é despertar o gênio próprio de cada um, mas isso implica, paradoxalmente, entender sobretudo o gênio dos outros.‖ (Suzuki, 1998. p. 216). Assim, o literato que movimenta pela crítica bem-humorada é o que, antes de tudo, conhece a alma humana e pretende despertá-la.

O cômico, então, acaba gerando a reflexão filosófica, ontológica, incentiva o exame do sujeito, do ser. Nesse sentido, o diálogo intertextual colabora como duplo. Eleger Camilo, reconhecido intérprete da alma humana e do povo português e reavivar seu texto promove um questionamento em torno de ―Quem sou eu?‖, já que o encontro com o duplo gera autoconsciência.

Reconhecer a diferença entre o paradigma e o intertexto promove a capacidade de perceber os vários pontos de vista sobre um tema.A simultaneidade de cenas, ou as cenas que são narradas por várias personagens diferentes – a multivocalização – são uma sugestão de que o mesmo episódio pode ser visto de vários ângulos.

Revisitar o texto camiliano e acrescentar cores ao que parecia desbotado pode ser um meio de reavaliação do ser humano enquanto fragmento de uma realidade. Refletido no texto, o homem se revê, reconhece-se e amplia-se. O comum e conhecido adquire aspecto

misterioso, intenso, mítico. Dessa forma, o sujeito se encontra. A arte eleva o homem por representar seus anseios e potencializá-los.

A consciência que cada um tem de si e dos objetos que o cercam realiza-se e concretiza-se no texto. Enquanto diálogo, a intertextualidade possibilita a organização do ser, a exploração da densidade da vida que se recria e se renova. Idealismo e realismo unificam-se, o caráter ideal, ideológico, original, transcendental e eterno do pensamento humano presentifica-se, realiza-se no objeto - texto – tornando-se real.

O texto proporciona o encontro entre o que há de transcendental e de concreto no homem, por ele, o homem observa-se e compreende-se. ―A individualidade construída pelo romancista [ e pelo literato, em geral] não é uma pálida imagem do criador, mas a coesão orgânica interna de um caráter plural.‖ (Suzuki, 1998, p. 114). O texto torna-se a efetivação de um saber transcendental e, por siso, a cada escritura novos conhecimentos são revelados. A importância da decodificação de conceitos gera o dialogismo e a participação efetiva do leitor / espectador. Frente ao desconhecido, devem-se procurar alternativas de autogerenciamento. O duplo – mesmo outro texto - é um meio de conquistar o autoconhecimento. Diante da acomodação, é necessário movimento, resta, portanto, rir e fazer rir.

No documento O riso em movimento (páginas 194-200)

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