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VIA CRUCIS

No documento O riso em movimento (páginas 159-194)

V.1 Sob a cruz social

Muito antes de Drummond proclamar: ―Meu Deus, por que me abandonaste / se sabias que eu não era Deus / se sabias que eu era fraco‖, Camilo já revelava a vida como uma via crucis protagonizada por homens débeis. Conhecedor da alma humana, o novelista sabe que, insignificante diante de seus desejos, assolado por injustiças e desconcertos, o homem encontra-se desamparado. O novelista compreende o amor sensual, a paixão, o amor filial, a fraternidade, o desejo de vingança como forças que tornam o homem mero títere de seus impulsos incontroláveis. Percebe, sobretudo, a dificuldade da entrega à compaixão, quando a culpa e a autocondenação dominam o ser.

Em Coisas Espantosas, o enfoque é dado ao sofrimento e à autocondenação. Uma paráfrase explicativa faz-se necessária à interpretação do texto. A narrativa inicia-se com a morte de Inácio Botelho ―solitário, abandonado, sem amor, sem família, sem lágrimas, sem mão amiga que lhe enxugasse da fronte o derradeiro suor.‖ (Branco, 1984, p. 568). Esse final trágico parece consistir numa (auto?) punição às escolhas feitas em vida pela personagem. Quando jovem, Inácio arrebatara de sua família Balbina, a qual, por amor, se resigna a tornar-se sua amante e, com o passar do tempo, apenas amiga. A visão amarga a respeito da união de um casal, que, nas narrativas camilianas sempre desembocam no tédio e aborrecimento, reitera-se e é acrescido, como de outras vezes, do tema do filho natural.

Balbina, no final da vida, implora que o amante perfilhe seu filho. Depois de ela morrer, Botelho não só esquece o perfilhamento como também seduz outra vítima de seus desejos. Encantado com a beleza da filha de sua engomadeira, contrata a moça para mestre de Augusto, a fim de seduzi-la e não contrair com ela nenhum compromisso pessoal. Para amenizar o peso de sua culpa, submete os criados às ordens de Carlota e paga-lhe bem.

A jovem cuida de Augusto, mas sacrifica não só a criança como a si mesma para atender aos desejos do ―primeiro homem que a encarou significativamente‖ (Branco, 1984, p. 554). Vítima de uma grande carência afetiva, a moça deixa-se seduzir e dominar por Manuel de Castro, moço sem profissão, vadio, viciado em jogo, infame, fraco e quase um homicida.

Somente no leito de morte, Inácio escreve um documento reconhecendo Augusto como filho, mas como não tem tempo de registrar sua intenção, entrega ao menino o papel, pedindo-lhe que o dê a determinados amigos. A criança dorme e Carlota rouba o papel com o testamento para dar o dinheiro a seu amante.

Contratando com a indignidade dessas personagens, Gregório, fiel criado da casa, tenta impedir que Augusto seja lesado em seu patrimônio e é ferido de morte por Manuel.

Como se pode verificar, as quinze primeiras páginas da novela trazem o tom exacerbadamente sentimental e trágico do melodrama. As desgraças oriundas da entrega às paixões dão azo a discursos melancólicos e a atitudes impetuosas, extraordinárias e inverossímeis. As confissões e revelações surpreendentes impedidas por golpes ou problemas na garganta. No entanto, o encaminhamento dado ao tema amoroso destoa do modo como o melodrama o conduz. Não se trata do embate entre heróis e vilões, ou da virtude e do vício, mas os opostos conjugam-se, fundem-se a ponto de perderem seu caráter original. Isso porque o intuito do novelista é estudar o comportamento humano e não ocultar conflitos sociais para alienar o espectador e levá-lo a crer na força redentora da virtude.

O leitor camiliano atento não terá deixado de notar que o sobrenome Botelho é também o do escritor. A biografia de Camilo torna-se recorrentemente motivo de sua ficção, assim ele preserva acontecimentos efêmeros, medita sobre eles, vingando-se do que não poderia tirar desforra na vida real. O duplo se refaz, o espelho realidade / ficção volta a ser um meio de compreender a si e ao ser humano. Botelho é, então, retratado como um homem vil e desprezível. Na mesma linha autobiográfica, páginas adiante, uma senhora piedosa e maternal receberá o nome de Rosa, como (homenagem a?) a mãe do escritor. Cabe enfatizar, no entanto, que a menção biográfica é mais um viés da ampla visão de Camilo acerca do ser humano. Ele revela-se, assim, crítico sagaz não apenas do outro, mas de si mesmo.

Também como Camilo, o órfão Augusto é entregue aos cuidados de uma tia, esta, entretanto, acolhe a herança de seu irmão, mas rejeita o menino por ser filho de uma mulher sem nome de prestígio. O escritor, tendo vivido com uma tia, após a morte do pai, teve como tutor o amante dessa mulher, mas deixa-lhes para ir morar com sua própria irmã quando esta se casa. A vida adquire novas nuances: a dor sentida, a dor fingida e a dor lida

giram ―a entreter a razão,/ Esse comboio de corda/ Que se chama coração.‖50

O escritor re- inventa seu sofrimento pela literatura, estudando sua dor e refletindo sobre os interesses que movem o ser humano.

O destino de Carlota é cruel. Enlouquecida pela culpa, ela é internada em uma instituição de onde sai para mendigar com sua mãe e, em seguida, sozinha, pois Carolina morre pouco tempo depois. Não se constrói, então, uma personagem livre de defeitos. A moça inicia sua trajetória como pobre jovem, destituída de privilégios e seduzida por um homem rico. Torna-se maliciosa, consegue um amante e engana patrão e empregados para sustentar os vícios deste homem. Vítima de sua própria carência, é conivente com este homem que a leva a roubar e a assistir ao suposto assassinato de Gregório. Arrependida, torna-se dócil e religiosa: digna de piedade.

Antípoda de Castro, o galego de baixa extração Gregório de Redondela é descrito como fiel empregado de Inácio, cujo ímpeto de dedicação é abrandado pela paixão que nutre à cozinheira da casa. Em busca de angariar os recursos prometidos por Carlota para casar-se com Joana, o pobre homem resigna-se a levar e trazer cartas da mestra de Augusto a Manuel. Mais ainda, concede não contar a Botelho ter flagrado o casal à noite no pátio da casa. Sua dignidade é ainda mais aviltada quando aceita dinheiro de Carlota para calar-se, já que o vínculo com a cozinheira se rompe no momento em que ela se casa com outro homem e o abandona. O rebaixamento da personagem é censurado e justificado pelo narrador:

Esta terceira queda de Gregório é menos desculpável que as outras: atendendo, porém, a que o coração humano, despojado das galas do amor, se veste de preto, repele o doce alimento das sensações generosas, e ama nutrir-se de vícios e indignidades, tem desculpa o coração de Gregório como o de tantos Manfredos, que o leitor festeja e imita, porque não nasceram em Santiago de Compostela. Sempre injustos e inconsequentes, olhamos com certa seriedade e acatamento para o homem bem nascido e educado, que sofreu reveses na luta do coração com a sociedade, ou tragou o fel da perfídia, e protestou vingar-se da espécie humana [...]

Isto compreendemos e admiramos.

Que Gregório, porém, desiludido e cético, misantropo, arado de fogo infernal na alma, estanque de lágrimas, estéril de aspirações ao ideal em que devaneava, outrora, sentado no barril; que Gregório, enfim, descrido de quimeras, golpeado o coração de afrontosas dores, se aturda no tráfego delicioso duma taverna, seu segundo, e já agora único sonho de ouro realizável; disso, que tão triste é, rimos nós, Balzacs pífios, que não sabemos trabalhar com o escalpelo observador no coração do nosso irmão da Galiza, mais nosso irmão por sangue, que nenhum

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outro desses que andamos sempre a pintar nos nossos romances, remendados por capa de pedinte. (Branco, 1984, p. 560)

A comparação com ―Manfredos‖ remete ao rei da Sicília que promulgou o combate já travado por seu pai contra o papa. Ele foi, por isso, colocado sob interdição papal. Afinal os ―Manfredos‖ não nasceram em ―Santiago de Compostela‖, isto é, não são galegos. A ironia torna-se fina e aguda. Os galegos eram desdenhados pelos portugueses que, no entanto, consideravam a cidade de Santiago santa por abrigar o manto de Sant‘Iago, apóstolo de Jesus. A hipocrisia é flagrada e censurada. No Romantismo, o ―humor destrutivo não se dirige contra fenômenos negativos isolados da realidade, mas contra toda a realidade, contra o mundo perfeito e acabado. O perfeito é aniquilado como tal pelo humor‖ (Bakhtin, 2010, p. 37)

A crítica direciona-se para o ponto fundamental do comportamento social rechaçado por Camilo: a valorização da reputação em detrimento da essência do homem. Nesse sentido, considera seus leitores ―Balzacs pífios‖, já que na obra do autor francês as roupas, a aparência, as atitudes, um tipo de vida, uma profissão, o nome revelam o caráter, definem as personagens, condicionadas pelo meio.

O novelista português sugere o desprezo pela valorização dos endinheirados em detrimento dos pobres. Segue Gregório, sublimando sua dor pelo trabalho, mas, como sua taverna dá prejuízos, o galego vai confessar-se em busca de salvação para sua alma e seus negócios. O confessor impõe-lhe que relate tudo ao patrão, pois na visão do frade, Carlota era um meio que o Demônio usara para perder a alma de Inácio Botelho. Somente expulsando a amante, o fidalgo se salvaria. Gregório propõe-se a obedecer ao ―santo conselho‖, mas encontra seu amo no leito, acometido pelo cólera. Daí sua atitude heróica em colocar a vida em risco para salvar a fortuna de Augusto.

Manuel de Castro golpeia o galego para salvar o dinheiro e atinge a garganta de Gregório. Ferido na garganta, bem ao gosto melodramático, ele é impedido de apontar o nome do ladrão aos policiais. Sai do hospital com a reputação de galego honrado, o que lhe granjeia doações para estabelecer um armazém e uma pousada. Seus estabelecimentos prosperam e ele, além disso, ganha na loteria. Investe em uma grande casa, armazéns e uma padaria. Desiludido com o casamento da mulher amada, enamora-se de uma pobre viúva com quem se casa. São muito felizes, mas não podem ter filhos. Ricos, vão viajar pelo país. Assim encontram e salvam Augusto, empobrecido e abandonado. O galego

emprega bem seu dinheiro e torna-se opulento capitalista, credor do governo de Portugal. A ironia crítica, ácida, de Camilo Castelo Branco verifica-se aqui em relação à personagem galego. Vítima de preconceitos quando pobre, torna-se prestigiado pela alta roda e requisitado pelo Estado, ao tornar-se rico. Subjacente à melancolia predominante, insinua- se o humor amargo, cínico que castiga a hipocrisia social. Como se vê, a personagem transita pelo ilícito, mas rapidamente encaminha-se para a ordem e destaca-se como homem de bem.

A benevolência de Gregório prospera em Augusto. Depois de formado na faculdade, o filho bastardo de Botelho procura Carlota e, com o auxílio de seus novos pais, resgata a moça que pede para ser enclausurada em um convento. Gregório levanta-se de suas quedas com maestria e dignidade. Como se vê, Camilo não desdenha a realidade da época, mas apresenta-a de forma sarcástica ao afrontar os preconceitos criando um galego credor do Estado português e o filho de um oficial general e neto de outro como um homem viciado, ladrão e com ímpetos homicidas.

No entanto, também Manuel de Castro não é retratado de maneira maniqueísta. Aquele que ―negou três vezes‖ ter qualquer relação com Carlota e com Gregório Redondela tem final feliz e reconhecimento social. Quando descobre que o galego não morrera, ingressa no exército, muda de partido e foge do país. Multiplica o dinheiro roubado por meio do jogo, e é enfocado novamente, cortejado em Paris como Dom Álvaro Barrada, nobre espanhol. Neste momento da narrativa, ele se encanta por uma moça da aristocracia decadente, tenta seduzi-la a fugir com ele e é rechaçado pelo pai aviltado. Esta recusa leva a uma revisão de atitudes. O rapaz retrata-se e o pai da donzela acaba consentindo o casamento. O destino do rapaz sugere uma recusa à narrativa moralizante e uma releitura crítica das ideias cristalizadas. O filho de um bom cidadão nem sempre é correto. Ao passo que um simples galego pode ser virtuoso.

Não há um embate entre o vício e a virtude, há a regeneração pelo amor e compaixão. O casal parte para Suíça e constitui uma família serena e virtuosa. Novamente, o mal se dilui e desvanece. A ênfase é dada ao dinheiro como motivo de aceitação social em oposição ao amor compassivo de Matilde que dá origem à virtude. O narrador crítico comenta o episódio comparando-o ao caso de Fausto e Margarida.

O diálogo intertextual estabelece-se em vários sentidos. Um deles, mais imediato, refere-se à semelhança entre a riqueza e prodigalidade de Manuel e do protagonista da peça que não é a mola propulsora do interesse de Matilde. Recusam-se novamente as ideias instituídas e preconceituosas.

Outra associação possível tange a relação entre Manuel e Carlota. O par parece configurar uma paródia ao caso de Fausto e Margarida. Em Goethe, Fausto é um jovem irreverente, ávido por conhecimento e reconhecimento. Desiludido por não progredir, faz um pacto com Mefistófeles, o demônio, dando-lhe sua alma em troca de opulência. A ambição do protagonista goethiano lembra a da personagem camiliana. Contudo, Fausto realmente se apaixona por uma moça simples e ingênua. Para conquistá-la, segue conselhos de Mefistófeles e passa a presenteá-la com joias. A moça deixa-se seduzir pelos presentes e entrega-se, no entanto, dessas atitudes decorrem severos castigos. O moço sofre impotente diante da dor da amante. Margarida aflige-se diante da morte de mãe e do irmão e de uma gravidez indesejada que lhe ampliam o sentimento de culpa e a levam à prostração e à loucura. Aterrada, ela se entrega à justiça divina e é perdoada. Ele, por outro lado, não tem direito à salvação e é levado por Mefistófeles. O moralismo é patente, a virtude é recompensada e o pecado, castigado.

Diferente do texto alemão, na novela camiliana, Manuel seduz e abandona Carlota, mas não se sente culpado por isso, nem quer salvá-la. Somente quando quer refazer sua vida com Matilde é levado a um exame de consciência. Reflete, então, acerca dos métodos empregados para conseguir ascensão social e financeira, mas não se ocupa de Carlota. Re- ergue-se moralmente pela influência do amor. Diante da súbita aceitação social deste homem o narrador clama: ―Santo Deus! por que é que ninguém odiava Manuel de Castro? Donde procedia o compadecerem-se todos dele, e andarem como a esconder de si mesmos o afeto que lhe tinham?‖ (Branco, 1984, p. 642) A opinião do narrador diante da impostura da personagem sugere uma visão diferente da socialmente aceita; no entnato, o destino opulento de Manuel revela a recusa ao moralismo. Parece-lhe impróprio acolher um homem para quem remorsos eram ―inquietação de ânimos fracos‖ (Branco, 1984, p. 572). A compaixão do narrador evidencia-se, contudo, quando trata de personagens arrependidas e injustiçadas.

A inquietação do narrador torna-se mais patente no momento em que revela a inverossimilhança da atitude de Francisco Valdez perdoar o futuro genro por este ter restituído à tia de Augusto o dinheiro roubado, como prova de sua benevolência e regeneração. O narrador deixa claro que a quantia restituída é irrisória quando comparada À fortuna que Castro lucrou nos jogos, e sugere a leitura do capítulo ―Dos ladrões, que furtando muito, nada ficam a dever na sua opinião‖, da Arte de Furtar. O excerto destina-se a evidenciar como não se sentem culpados os que lucram pela especulação.

E a desgraça de tantas desgraças é que os autores destas empresas [especulação], depois de roubarem com elas a el-rei, aos soldados e a todo o reino, porque a todo abrangem tantas perdas, ficam-se saboreando da destreza com que fizeram seu ofício. E, se a consciência os pica [...], limpam o bico à mesma consciência: que a ninguém puseram o punhal nos peitos, nem venderam nada às escondidas; e o que se faz na bochecha do sol, com aceitação das partes, vai livre de coimas e de escrúpulos. Parece que ainda não leram, nem ouviram, que há vontades coatas e forçadas sem punhais nos peitos. (Arte de furtar, 2006, p. 90)

Consideram-se apropriadas atividades ilícitas, desde que elas sejam feitas com aval e conhecimento do grupo. O lucro obtido pelo jogo é aceito pela sociedade, embora condene os perdedores à miséria. A crítica opõe-se ao perdão e reconhecimento social de Manuel, o que revela o desejo de tratar do caso de forma mais realista. A divergência sugere não haver um juízo moral definitivo.

A reputação angariada à base do dinheiro desvanece o crime e a culpa. Castro usa o dinheiro roubado para jogar e ter mulheres, permanece, pois, no vício. Mas a sociedade o acolhe sem reservas. Mesmo o nobre Valdez pede empréstimo a Barrada, sem conhecer por que meios este era rico, somente quando sua filha é requestada para amante deste senhor, ele devolve-lhe a quantia emprestada com fumos de nobreza aviltada.

Manuel escarnece desta sociedade, sob a figura do nobre Álvaro Barrada, zomba de um grupo que lhe acolhe por seu dinheiro. Sua conduta depravada somente se altera pelo amor e pelo olhar compassivo de Matilde. Destoando dos demais que condenam Castro ao ouvirem sua história, sem saber que se trata do pretenso nobre que têm à frente, a moça escuta-lhe a história e se apieda dele, não o reprova, apenas mostra ―compaixão‖ (Branco, 1984, p. 629). Modificado pelo amor e pela caridade, Manuel escreve à filha de Valdez revelando-lhe o desejo por regenerar-se e confessando orar constantemente para conseguir de Deus forças para alcançar seu intento.

Nesta carta, a associação entre Castro e Fausto torna-se mais nítida, já que ele declara ter a seu lado um demônio que lhe provê a boa sorte no jogo ao mesmo tempo em que concede a consciência de que o sucesso advém da ruína de muitas famílias. ―O mundo aplaudia-me os triunfos, e as almas aviltadas à protérvia feliz – tantas, meu Deus – rodeavam-me devoradas de inveja umas, e outras devoradas de amor. Mulheres e homens todos de rastos na trilha do ouro que eu deixava após de mim!‖ (Branco, 1984, p. 636). O desprezo pelo sucesso financeiro e o reconhecimento social associados à influência demoníaca sugere uma revisão crítica do próprio Manuel acerca de sua conduta. A consciência de ter errado, pelo menos enquanto jogador, é o primeiro passo para a regeneração.

Para alterar o curso de sua vida, Manuel vende seus pertences e compra um chalé na Suíça, onde vai morar com sua família, ―na obscuridade e esquecimento do mundo‖ (Branco, 1984, p. 643). A ironia cresce quando se leva em consideração o destino escolhido por Castro para seu refúgio, Manuel parte com sua nova família para Genebra e vive em paz, na pátria de Rousseau.

Ácida é a crítica à visão rousseauniana de que em meio à natureza o homem se regenera, quando se leva em consideração que nas novelas camilianas o refúgio de um casal no campo gera tédio e aborrecimento. Camilo parece flagrar o contrassenso de que o homem primitivo seria amigo incondicional de seus semelhantes (Rousseau, 2009, p. 100) e somente a sociedade gera o desejo de tirar vantagens do prejuízo de seus semelhantes. (Rousseau, 2009, p. 99). A concepção de Rousseau desconsidera que o progresso material e a vida em sociedade surgem em decorrência das necessidades do homem, que quer sempre ser o líder, o mais forte.

O leitor camiliano sabe que o destino do casamento nas novelas do escritor português é triste. No caso de Castro, no entanto, o narrador limita-se a declarar: ―Como temo de ouvir argumentar que a felicidade absoluta neste mundo é uma paradoxal visão dos poetas, por isso me reprimo de dizer que Matilde e Manuel de Castro tinham sido absolutamente felizes nos oito anos que haviam vivido à margem do lago de Genebra.‖ (Branco, 1984, p. 643)

A felicidade do casal não decorre, portanto, do contato com a natureza. É recorrente nas narrativas camilianas a concepção de que o dinheiro traz a felicidade. Doze casamentos

felizes e Onde está a felicidade? corroboram a assertiva. Assim, ingênua é a visão de que ―o homem selvagem só deseja as coisas que conhece e como só conhece aquelas cuja posse está a seu alcance [...] nada deve ser tão tranquilo como sua alma e nada tão limitado como o seu espírito.‖ (Rousseau, 2009, p. 113)

O filósofo suíço idealiza o selvagem e o homem distante da sociedade como um ser refratário ao ódio ou à vingança, Camilo, por outro lado, retrata esses sentimentos como inerentes ao ser humano. Rousseau não parece levar em consideração que a sociedade se estabeleceu como um meio de o homem solucionar problemas de segurança e de alimentação que se apresentavam, pois o amor-próprio e o desejo de autoconservação imperam na natureza humana. O novelista mostra que o amor próprio é qualidade fulcral do

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