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FEMINISMO E PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO A INFLUÊNCIA DO GÊNERO NAS PRÁTICAS DE INVESTIGAÇÂO

2 EPISTEMOLOGIA FEMINISTA NA PESQUISA AFETADA Resistiu a verdade e postou-se frente a mais uma

2.3 FEMINISMO E PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO A INFLUÊNCIA DO GÊNERO NAS PRÁTICAS DE INVESTIGAÇÂO

O que refletimos até o presente momento carrega consigo um entendimento da categoria gênero, cujo conceito questiona a naturalização da diferença sexual. É a partir deste questionamento profundo e desconstruído que a investigação feminista torna-se interdisciplinar; a perspectiva de gênero propõe um novo olhar para a construção do conhecimento, a partir da própria realidade social das mulheres, para as mulheres e com as mulheres. Desfaz a separação entre sujeito cognoscente e objeto cognoscível; o sujeito cognoscente é um sujeito “generizado”; e esta condição de gênero de quem investiga se converte em bagagem cultural e política que refletirá diretamente na produção do conhecimento científico.

Por sua vez, os estudos feministas não pretendem afirmar que “as mulheres vão fazer uma outra ciência”, mas sim defender que os indivíduos são sujeitos (pessoas) historicamente corporificados cuja

perspectiva é uma consequência daquilo que são e de como vivem – formação, valores, pontos de vista, entre outros.

Esse permanente processo de desconstruir-se e reconstruir-se tem sido marcado por intensos debates, tanto na militância feminista como na academia. Abrindo caminho, nas décadas de 1960-70 a categoria “mulher” ou “mulheres” foi trabalhada a fim de evidenciar os sistemas históricos de diferenciação entre os sexos, associada à leitura do patriarcado para compreender a origem da opressão masculina sobre o universo feminino, sendo as mulheres o sujeito principal do feminismo.

A categoria “mulher” foi questionada como essencialista, determinada pelo sexo biológico, e problematizada enquanto política identitária. Para Piscitelli, “O reconhecimento político das mulheres como coletividade ancora-se na ideia de que o que une as mulheres ultrapassa em muito as diferenças entre elas. Dessa maneira, a ‘identidade’ entre as mulheres tornava-se primária” (2002, p. 04).

Da mesma forma, a teoria do patriarcado foi sendo criticada pelas feministas, uma vez que não abarca outros contextos das relações que oprimem, discriminam e violentam, como é o caso do racismo e da homofobia. Além disso, há críticas de que seja essencializadora, uma vez que compreende como universal a dominação dos homens sobre as mulheres, baseando-se em aspectos físicos e fundados em um sistema político cujo propósito seria a manutenção do poder unicamente para os homens e a opressão exclusivamente para as mulheres. Apesar disso Adriana Piscitelli chama a atenção para o fato de que

é importante compreender que o patriarcado, assim como outras explicações da origem e causas da subordinação feminina, tinha o objetivo de demonstrar que a subordinação da mulher não é natural e que, portanto, é possível combatê-la. As hipóteses explicativas sobre as origens da opressão feminina foram sendo gradualmente questionadas e abandonadas na busca de ferramentas conceituais mais apropriadas para desnaturalizar essa opressão. Esse quadro de efervescência intelectual é o contexto no qual se desenvolve o conceito de gênero (PISCITELLI, 2002, p. 07).

Uma de nossas entrevistadas, Clair Castilhos, faz questão de utilizar a categoria patriarcado em suas palestras. Oportunamente, por ocasião da entrevista realizada para fins deste estudo, indagamos sobre sua compreensão em torno dessa expressão, ao que argumenta:

Em minha opinião dizer que a linha teórica do patriarcado está superada é o mesmo que dizer que a teoria do marxismo foi superada. O marxismo é a teoria da economia política da crítica ao capitalismo e o sistema capitalista não está superado, logo o marxismo não foi superado. O patriarcado moldou o comportamento e o pensamento da sociedade humana e se mantém no presente. O debate de gênero é mais uma forma de discutir a questão do patriarcado e buscar alternativas de superá-lo. Posso ser considerada atrasada, mas penso que gênero dilui a luta feminista, é uma categoria que começou com boa intenção e tem qualidade política, porém o central no feminismo é superar o patriarcado. Quando se usa a categoria gênero se relativiza as relações entre homens–mulheres, abre espaço para atenuar a luta feminista e surge o que agora falam de homens sensíveis, libertação do homem ou lutar por direitos específicos deles. Do ponto de vista tático e estratégico é mortal ao feminismo! Começamos a ter certa visibilidade, mas ainda somos discriminadas, sofremos violências e estamos excluídas de vários lugares. Por ter uma visibilidade parece que nos libertamos e então agora vamos cuidar dos homens de novo. E retomamos nossa situação de mães da humanidade! É uma armadilha. A radicalidade do feminismo está no enfrentamento ao patriarcado. E ninguém venha me dizer que o patriarcado está superado, veja o tratamento das mulheres na TV, rádio, jornal, até em campanha política a mídia elege a ‘candidata musa’, no Congresso Nacional ‘elegem’ a deputada musa, se tenta desqualificar as mulheres em todos os espaços. Circulamos nas ruas com cuidado, em determinados locais não andamos, em certas horas nos recolhemos, há muito de ‘perigoso’ a nós. Vão me dizer que o

patriarcado tá superado? É uma falácia! Temos que ter muito cuidado para não cair nessas armadilhas.

Constata-se no depoimento de Clair que, para ela, o enfrentamento ao patriarcado deve continuar sendo o eixo estruturante dos estudos feministas. Apesar de considerar que a categoria gênero “dilui a luta feminista” e “relativiza as relações”, enfatiza que a utilização da mesma é mais uma forma de enfrentar o patriarcado. A compreensão de Clair Castilhos aproxima-se do que Célia Amorós, subsidiando-se em Heidi Hartmann, entende por patriarcado: trata-se de um conjunto de relações sociais acordadas entre homens a partir de “uma base material e que, além de serem hierárquicas, estabelecem e criam uma interdependência e solidariedade entre os homens que lhes permitem dominar as mulheres” (Amorós, 2008, p.40).

Complementando essa linha de análise, Luisa Posada Kubissa (1995) assinala que o patriarcado pode ser definido como um emaranhado de pactos que põe o controle da sociedade nas mãos masculinas. Esse poder de controlar a sociedade localiza-se em núcleos que comandam as relações políticas e econômicas, de modo que, neste sistema patriarcal, as mulheres ficam excluídas dos âmbitos de decisões das sociedades em que elas também são parte. Tal exclusão não necessariamente ocorre de forma aberta, pois nenhum ordenamento jurídico impede as mulheres de ocuparem qualquer cargo, contudo os pactos sociais entre os homens, velada e estruturalmente constituídos, dificultam a entrada e permanência das mulheres nos espaços de poder. Este cenário é percebido facilmente no Brasil em relação à presença das mulheres na política formal, pois, apesar delas constituírem mais de 51% do eleitorado nacional, não ultrapassam os 10% na ocupação dos cargos eletivos.

Maria da Glória Gohn (2007) faz uma análise semelhante a de Clair Castilhos, avaliando que a categoria gênero trouxe ganhos qualitativos, mas também dificuldades para as mulheres:

Ganhos porque, de um lado, desnaturalizou o tema das diferenças, introduziu o masculino ao lado do feminino, para discutir as diferenças históricas e culturalmente construídas e ampliou o debate colocando novos sujeitos oprimidos em cena, igualmente ignorados e invisíveis até então

na sociedade – os gays, lésbicas, transexuais etc., apontado para as inúmeras formas de discriminação. (...) Dificuldades porque houve uma certa diluição das mulheres na temática de gênero e a invisibilidade da maioria delas continuou nos movimentos sociais não-feministas (GOHN, 2007, p. 55).

Concordamos com Saffioti (2004, p. 119) quando afirma que “o patriarcado é um caso específico das relações de gênero” e, neste sentido, consideramos importante que ambas categorias continuem estabelecendo um diálogo crítico, uma vez que o conceito de gênero aproxima-se do patriarcado, conforme esclarece Pinheiro:

Um aspecto remete à ideia de que o biológico não é capaz de explicar os diferentes comportamentos de homens e mulheres, que são produtos sociais, aprendidos, internalizados e reproduzidos. O outro aspecto refere-se à noção de um poder que é desigualmente distribuído entre os sexos. Se esse poder coloca as mulheres em posição de subalternidade, o conceito de gênero aproxima-se ao de patriarcado, pois acaba-se por constituir um sistema de dominação das mulheres pelos homens (PINHEIRO, 2007, p. 35).

Em complementação, para Joan Scott (1995) as relações entre homens e mulheres baseadas em uma hierarquia de poder provém de representações simbólicas sobre a diferença sexual e operam a partir de processos sociais elementares. Consequentemente, possíveis mudanças nas relações sociais estão associadas a mudanças também nas representações de poder. Diante disso a autora questiona a lógica das relações de gênero e a situação de subordinação das mulheres como sujeitos históricos e políticos.

Em relação à construção de sujeitos, Mary Garcia Castro (1992, p. 57) argumenta que nós mulheres, como sujeitos, possuímos identidades múltiplas, não fixas, que se entrelaçam num processo alquímico, onde os constructos vão se fazendo de um modo que não podem mais ser separados, moldados pelas relações sociais em sistemas estruturantes que determinam o comportamento humano. Nesse sentido,

a noção de gênero é parte da alquimia das categorias que compõem um entrelaçar das discriminações e opressões.

Portanto, no debate acadêmico, a emergência da categoria gênero possui um caminho repleto de tensões, o que não é propriamente uma situação estranha na epistemologia feminista, como esclarece Teresa Kleba Lisboa (2003, p. 20):

Gênero é mais que uma categoria, é uma teoria ampla que abrange hipóteses, interpretações, categorias e conhecimentos relativos ao conjunto de fenômenos históricos construídos em torno do sexo. (...) Por sua vez o sexo e o gênero não estão condicionados um ao outro de forma reducionista; a própria sexualidade é uma diferença construída social, histórica e culturalmente.

Reduzir o conceito de gênero tão somente a diferença sexual seria incorrer em limitações. Como explica Teresa de Lauretis (1994), esse reducionismo foi defendido por feministas nos anos de 1960 e 1970 e gerou espaços “gendrados” e marcados pelas especificidades de gênero, dificultando ou impossibilitando “articular as diferenças entre mulheres e Mulher, restringindo o pensamento feminista ao arcabouço conceitual de oposição universal ao sexo” (p. 207). Além disso, “tende a reacomodar ou recuperar o potencial epistemológico radical do pensamento feminista sem sair dos limites da casa patriarcal”. Para a autora, esse potencial epistemológico radical concebe

o sujeito social e as relações de subjetividade com a socialidade de uma outra forma: um sujeito construído no gênero, sem dúvida, mas não apenas pela diferença sexual; e sim por um meio de códigos linguísticos e representações culturais; um sujeito ‘engendrado’ não só na experiência de relações de sexo, mas também nas de raça e classe: um sujeito, portanto, múltiplo em vez de único, e contraditório em vez de simplesmente dividido (LAURETIS, 1994, p. 208).

Para Lauretis o gênero representa uma relação social e algo que não é restrito à diferença sexual; a autora conclui que masculino e

feminino em sua dualidade, são categorias que, ao mesmo tempo em que são complementares, também...

se excluem mutuamente, nas quais todos os seres humanos são classificados e formam, dentro de cada cultura, um sistema de gênero, um sistema simbólico ou um sistema de significações que relaciona o sexo a conteúdos culturais de acordo com valores e hierarquias sociais. Embora os significados possam variar de uma cultura para outra, qualquer sistema de sexo-gênero está sempre intimamente interligado a fatores políticos e econômicos em cada sociedade (idem, p. 211). Pode-se de fato perceber com nitidez o quão intenso tem sido, desde os anos de 1970, os debates em torno dos “estudos sobre mulher” e dos “estudos de gênero”. Há inclusive discussões contemporâneas em torno da ideia da volta ou “recriação da categoria mulher”, como defende Adriana Piscitelli (2002), que também crítica o uso da terminologia “gênero” se propagando como sinônimo de mulher, prevalecendo uma ótica binária.

Este movimento não se daria como um “retorno” à categoria “mulher” tal qual fundada nos preceitos biológicos ou do sexo, mas historicizada nos novos contextos e arranjos das experiências vividas e dos desafios ainda persistentes nos meios acadêmicos. Sobretudo, o próprio conceito de gênero, como vimos, tem sido reformulado, e ao mesmo tempo que forneceu “ferramentas substantivas para um dos objetivos centrais do pensamento feminista (desessencializar a subordinação da mulher), esse desenvolvimento e reformulação tiveram efeitos significativos na teoria social” (Piscitelli, 2002, p. 22).

Uma forte crítica a sobreposição do termo “gênero” ao “feminismo” no meio acadêmico é lançada por Ana Maria de la Escalera (2013), para a qual é estratégico continuar priorizando o feminismo enquanto categoria de análise, pois nomeia um fenômeno histórico de mobilização e organização das mulheres, além de evidenciar uma parcialidade e uma tomada de posição política e cultural a favor de uma das partes do tecido social considerada hierarquicamente inferior – as mulheres. Além disso, o uso do vocábulo feminismo posiciona os sujeitos no debate e torna visíveis os adversários (por vezes ocultados pelo discurso do gênero), cobrando desses um posicionamento explícito.

A autora ressalta que “o vocabulário estratégico do feminismo contém noções como contrarresistências estratégicas, ocasião e oportunidade ofensiva, micropolíticas e corporalidades solidárias, que refazem os debates contemporâneos sobre a experiência das mulheres em busca de justiça” (Escalera, 2013, s/p).

Ana Maria de la Escalera nos convoca a reconhecer que o feminismo tem despontado na cena política como um dever/denúncia: há uma crescente percepção, por parte do movimento de mulheres (Conferencias Mundiais, Marcha Mundial de Mulheres) sobre a incorporação da equidade de gênero nas políticas e a necessidade de transcender o modelo industrial orientado para o consumo; exige-se respeito ao corpo das mulheres (Marcha das Vadias); reivindica-se a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez; há indignação contra a impunidade em relação aos altos índices de violência e com a homofobia; exige-se a responsabilização por parte dos meios de comunicação ao difundirem imagens da mulher como objeto sexual, entre outras.

E como nos adverte Maria Luiza Femenías, nossos discursos alternativos – latino-americanas que somos - devem favorecer uma ruptura político-epistemológica dos contextos naturalizados, dar voz própria às múltiplas forças étnicas, sexuais econômicas e culturais. Nós, mulheres latino-americanas, somos “as outras” dos discursos hegemônicos; temos que trazer à tona nossa história de deslocamentos, reacomodações, resistências, traduções culturais, enunciação cultural, identidades mestiças (Femenías, 2007).

Em meio a este tenso e contínuo processo, inscrito no território de um permanente refazer-se, as pesquisas feministas bem como os estudos de gênero, contribuem e potencializam a visibilização da participação das mulheres nos mais diversos espaços. Por mais que persistam as discriminações, também encontramos a persistência de pesquisadoras/es feministas que consideram a subjetividade e as experiências vividas como campos de pesquisa e ação consistentes. Ressaltamos que “o campo da teoria feminista e dos estudos de gênero é, desde sua emergência, um campo híbrido de produção de conhecimento, que produz práticas políticas e que é por sua vez informado e transformado por essas práticas” (Mello, Fernandes, Grossi, 2013, p. 11).

Subsidiadas pelo arcabouço das espistemologias feministas, na sequência deste trabalho buscaremos fazer um resgate da reivindicação

das mulheres pelo direito ao sufrágio, passando pelas conquistas na Constituição Federal de 1988, chegando às mais recentes atualizações na legislação eleitoral. Refletiremos sobre as dificuldades enfrentadas pelas mulheres para participarem da política partidária e as interferências de uma cultura política que retém a participação feminina nos espaços de poder.

3 DÉFICIT DEMOCRÁTICO DE GÊNERO NA POLÍTICA –