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FEMINISMO(S) NA AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVA PÓS-

Após esse olhar mais geral para as contribuições e os entraves oferecidos pelo pós-modernismo, pós-colonialismo e feminismo, abordamos a seguir, de forma mais pontual, a crítica feminista pós- colonial, especialmente no que se refere ao feminismo do Terceiro Mundo no contexto latino-americano. Justificamos essa discussão na medida em que, conforme os diferentes estudiosos dessa perspectiva, a compreensão da “Mulher do Terceiro Mundo”24 se distancia do imaginário que atravessa o feminismo ocidental e que engloba os contextos marginalizados como desvios da “normatividade”. A partir do diálogo com as considerações acerca do feminismo pós-colonial, buscamos entender como os movimentos feministas se encaminham na América Latina.

Sobre as feministas pós-coloniais, Weedon (2007) discute o questionamento levantado por elas acerca da tendência homogeneizadora ocidental, que oblitera diferenças de classe, raça, sexualidade e localização geográfica, pois, a partir desses apagamentos, é criada uma imagem homogênea e monolítica de mulher do Terceiro Mundo, a qual compartilharia dos mesmos problemas em qualquer localidade e contexto social que não fosse o Ocidente. Costa (2013) explica que, frente ao caráter polissêmico do termo “pós-colonial”, é necessário levarmos em conta as condições do contexto latino- americano e as especificidades que marcam o avanço dos estudos feministas nesse espaço. Segundo a autora, as teorias feministas, especialmente no que se refere às latino-americanas, se distanciam do modelo que subjaz as relações entre centro e periferia, entre a tradição e o novo: “Produto da transculturação e da diasporização que criam disjunturas entre tempo e espaço, o cronotopo desses feminismos é o interstício e sua prática, a tradução, buscando abertura para outras formas de conhecimento e humanidade” (COSTA, 2013, p. 655).

Nesse contexto de expressão de hierarquias econômicas e políticas, tal como a questão da representação25 da mulher, Mohanty

24 O termo “Mulher do Terceiro Mundo”, de acordo com as discussões de

Weedon (2007), seria uma espécie de agrupamento de todas as mulheres não brancas, não ocidentais, pobres e que precisariam ser salvas de sua “condição precária de vida”.

25 Bahri (2013) explica que o termo “representação” traz diferentes e confusas

(1984) argumenta que há também a produção de discursos particulares e consequentes generalizações que desconsideram a multiplicidade de movimentos feministas nas próprias pesquisas. Em linhas gerais, a pesquisadora mostra como determinados princípios analíticos se mostram reducionistas ao empregarem, até implicitamente, relações hierárquicas na medida em que esses princípios retomam um referente primário quando as pesquisadoras escrevem sobre suas próprias culturas. Esses estudos, por sua vez, não são apolíticos ou apenas propõem o conhecimento objetivo de certo assunto; são melhor vistos, segundo a autora, como modelos de intervenção.

Em sua pesquisa, Mohanty (1984) propõe que os estudos feministas por ela analisados26 colonizam discursivamente as heterogeneidades das mulheres do Terceiro Mundo e constroem uma imagem monolítica e homogeneizadora, problemática já levantada anteriormente. Os discursos estudados se mostram geralmente reducionistas ao passo que englobam as mulheres em grupos homogêneos enquanto vitimadas por questões religiosas, culturais, etc., sem considerar as peculiaridades de cada contexto. Destarte, a mulher como categoria de análise e o feminismo Ocidental como referente normativo produzem diferentes efeitos na representação da mulher no

estudos feministas, Shohat (1995, p. 166 apud Bahri, 2013) sintetiza o termo no contexto da teoria pós-colonial e/ou feminista da seguinte forma: “o que todas essas ocorrências têm em comum é o princípio semiótico de que algo está ‘passando por’ outra coisa, ou que uma pessoa ou grupo está falando em nome de outras pessoas ou grupo”. Segundo Bahri (2013), não há garantia de que nem no próprio discurso feminista a perspectiva da Mulher do Terceiro Mundo será respeitada ou representada, daí a importância, além do próprio lugar de fala da mulher, a leitura crítica de discursos outros, já que “muitos críticos compartilham o preceito de que a representação possa conter o potencial para a interpretação equivocada mesmo quando as intenções são benévolas ou supostamente para o benefício daqueles que, finalmente, podem representar-se.” (BAHRI, 2013, p. 668). Ainda sobre o referido termo, Stuart Hall (1997) reitera o seu caráter polissêmico e procura problematizá-lo de acordo com diferentes perspectivas teóricas, seja pelo viés construtivista, seja por uma perspectiva discursiva.

26 A autora estuda a produção discursiva da Mulher do Terceiro Mundo a partir

da análise de diferentes categorias analíticas e como estas se apropriaram e codificaram estudos e conhecimento sobre as Mulheres no Terceiro Mundo tanto a partir do discurso feminista ocidental quanto às pesquisadoras do Terceiro Mundo que também usam esses princípios analíticos para falarem sobre suas culturas.

Terceiro Mundo, o que é constatado pela autora a partir do estudo do discurso Ocidental feminista. Assim explica a autora:

[…] it is in the production of this "Third World Difference" that Western feminisms appropriate and "colonize" the fundamental complexities and conflicts which characterize the lives of women of different classes, religions, cultures, races and castes in these countries. It is in this process of homogenization and systematization of the oppression of women in the third world that power is exercised in much of recent Western feminist discourse, and this power needs to be defined and named. (MOHANTY, 1984, p. 335, grifos da autora)27.

Especificamente no que diz respeito a esses estudos empreendidos na América do Sul, Alvarez (2014) compreende o feminismo como campo(s) discursivo(s) de ação, e não como movimento. Enquanto conjunto de ideias, pressupostos, temas e interpretações, os discursos feministas constroem um universo de significados não estanques, os quais se traduzem ou (re)constroem ao percorrer diversas teias político-comunicativas, norteando as estratégias e identidades das/dos atoras/es que se coligam nesse campo. Para Alvarez (2014), essa abordagem possibilita avanços nos principais momentos dos feminismos na América do Sul, pois tem implicações no repensar da homogeneidade do movimento feminista, o que a autora chama de “feminismo singular”.

O primeiro momento discutido pode ser caracterizado em relação ao seu exterior constitutivo, isto é, se diferencia de outros movimentos tidos como não feministas, ou movimentos feministas distintos. Apesar de esse movimento ter como consequência o apagamento da heterogeneidade no seu interior, Alvarez (2014, p.11, grifo da autora)

27 [...] é na produção desta “Diferença de Terceiro Mundo” que os feminismos

Ocidentais se apropriam e “colonizam” os conflitos e complexidades fundamentais que caracterizam as vidas de mulheres de diferentes classes, religiões, culturas, raças e castas nestes países. É neste processo de homogeneização e sistematização da opressão da mulher no terceiro mundo que o poder é exercido na maior parte do discurso feminista Ocidental, e este poder precisa ser definido e nomeado. (MOHANTY, 1984, p. 335, grifos da autora, tradução nossa).

propõe que o caráter heterogêneo do feminismo antecede essa tentativa de silenciamento: “apesar de essa hegemonia discursiva ter delimitado estreitamente o que e quem compunha ‘o’ movimento feminista, o campo feminista contemporâneo no Brasil e em muito da América Latina de fato já nasceu plural e heterogêneo”.

O segundo momento do feminismo latino-americano é marcado pelo descentramento e pluralização dos feminismos, fato esse que já se desenhava desde o primeiro momento, mas que foi apagado pela singularização presente no discurso oficial. Em adição, há forte institucionalização dos movimentos e aproximação com o Estado, sendo que os setores mais institucionalizados se tornam proeminentes e hegemônicos, e, consequentemente, privilegiados em relação à tomada da palavra e acesso aos recursos econômicos e culturais.

Por fim, Alvarez (2014) delimita um terceiro período, no qual ocorre aumento nas diferentes vertentes feministas e reações aos silenciamos do neoliberalismo a partir de mobilizações não institucionalizadas. Em vista disso, esse momento histórico é caracterizado pela autora como marcado pelo surgimento cada vez maior de campos discursivos em ação, “contagiados por e intersectados com feminismos cada vez mais heterogêneos entre si e em si mesmos [...]” (ALVAREZ, 2014, p. 36).

Além das considerações de Alvarez (2014) e frente a esse contexto de constantes ressignificações e questionamentos de discursos oficiais homogeneizadores, Femenías (2007) ressalta a existência do feminismo latino-americano, necessário por causa do caráter excludente desse contexto e do reducionismo ao sexismo, que acaba por apagar outras questões importantes, como gênero, classe social, raça, etc. Segundo a autora, o feminismo na América Latina está localizado entre o feminismo ocidental e o pensamento pós-colonial, sendo que ambos veem o latino-americano como o “Outro” sob um olhar homogeneizador e generalista. Nessa medida, o feminismo localizado se mostra relevante a partir da necessidade de repensar/desconstruir postulados universais e se observar o contexto de inclusão e exclusão latino-americano a partir de suas particularidades, e não com base nos países hegemônicos.

Um dos caminhos possíveis para ressignificar discursos hegemônicos consiste na tomada da palavra pela própria mulher latino- americana e de construção de sua identidade cultural. Esse movimento possibilita lançar olhares críticos para discursos excludentes e reducionistas; as mulheres ocupam, portanto, o lugar de leitoras ativas e questionadoras, o que é possível a partir da (re)construção e reconhecimento da identidade:

Como mera ficção política, a construção de uma identidade feminista mestiça provisoriamente possibilitará nossa autoafirmação, na medida em que na América Latina a variação étnica opera tanto como fator de coesão e de reconhecimento como de quebra e exclusão. (FEMENÍAS, 2007, p. 23, grifos da autora).

Além disso, Cypriano (2013) explica que, no contexto latino- americano, a eclosão de movimentos de conscientização e reivindicação feministas se deu a partir do questionamento da evidente subordinação da mulher a uma sociedade patriarcal e esse deslocamento refletiu em diferentes movimentos, sejam eles políticos, partidários, em centros de estudo e organizações não governamentais, na tentativa de questionar a condição política, religiosa, cultural e econômica vigente de submissão da mulher. Portanto, são discussões retomadas nos diferentes espaços sociais e que mostram a (res)significação e fortalecimento do feminismo latino-americano.