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Apesar de não negar a importância da materialização linguística do discurso, o Círculo propõe que a linguagem, enquanto mediadora das relações intersubjetivas, transcende os limites da materialidade da língua e se situa no domínio do extraverbal. Com isso, Bakhtin (2010 [1929]) argumenta que a Linguística do século XX não dá conta dos estudos da linguagem que passam a ganhar mais espaço dentre as teorizações sobre a língua e propõe a metalinguística14 como campo de estudos no que concerne à análise e compreensão das relações semântico-valorativas. É

14 Em Problemas da poética de Dostoiévski, Bakhtin (2010 [1929]) propõe que

um novo campo de estudos deve ser fundado para a compreensão da língua em uma dimensão social e discursiva. Trouxemos essa discussão para situar temporalmente a perspectiva do Círculo, uma vez que, na contemporaneidade, há diversos campos de pesquisa que tomam como subsídio a perspectiva dialógica da linguagem e reenunciam as discussões do Círculo empreendidas no século XX.

a partir da proposição desse campo de estudos em um contexto no qual dominavam teorias estruturalistas que são possíveis olhares outros para os fenômenos da língua.

Bakhtin (2010 [1929]) afirma que o estudo das relações estabelecidas na língua, sem qualquer referência à dimensão social do material estudado, não é suficiente para a compreensão do dialogismo em seu sentido mais amplo. O autor explica que, no estudo da língua, a linguística abstrai elementos da vida concreta do discurso, o que não basta para a análise das relações de sentido que se entrecruzam no enunciado concreto. Isso ocorre porque, segundo o autor, as relações de sentido não existem na relação entre os elementos do sistema da língua, pois as relações semântico-valorativas ultrapassam os limites da linguística e se concretizam na comunicação discursiva.

Assim, acerca das relações semântico-valorativas, Bakhtin (2010 [1929]) explica que as relações de sentido não são possíveis entre elementos do sistema da língua, ou seja, entre as unidades da língua compreendidas em um viés linguístico. Em vez disso, Faraco (2009) explica que, para haver relações dialógicas, qualquer material linguístico deve ter entrado na esfera do discurso, ou seja, deve ter se transformado em um enunciado e que “tenha fixado a posição de um sujeito social” (FARACO, 2009, p. 66).

É necessário afirmar que Bakhtin (2010 [1929]) não exclui o estudo da língua em sua materialidade, mas que a perspectiva dialógica de estudo da linguagem vai além dessa dimensão, pois é o estudo do discurso concreto que de fato lhe interessa. Brait (2014a) explica que Bakhtin não busca a exclusão da Linguística no estudo da linguagem em uso, mas que considera tanto a dimensão interna do discurso quanto a externa. Bakhtin (2010 [1929]) não busca estabelecer uma contraposição entre o ponto de vista interno e o externo da língua, e sim uma nova forma de enfrentar o objeto de estudo.

Bakhtin (2011 [1979]) esclarece a índole das relações semântico- valorativas, a fim de se distanciar de uma concepção de relações estritamente semânticas e objetivas: “As relações dialógicas são de índole específica: não podem ser reduzidas a relações meramente lógicas (ainda que dialéticas) nem meramente linguísticas (sintático- composicionais). Elas só são possíveis entre enunciados integrais de diferentes sujeitos do discurso” (BAKHTIN, 2011 [1979], p. 323, grifos do autor). Para Bakhtin (2010 [1929]), ao considerarmos a natureza social dessas relações de sentido, o princípio estruturador das relações dialógicas reside na interação verbal.

Acosta Pereira (2012) discute que é na interação verbal que o diálogo em seu sentido mais amplo toma forma, sendo que é justamente nessas relações intersubjetivas que se concretizam as relações dialógicas. Conforme discutido nas seções anteriores, o enunciado se orienta para a situação social que o envolve, seja a situação imediata, seja o contexto mais amplo. Em face disso, entendemos que todo enunciado é atravessado por valores, pontos de vista, enfim, por tons valorativos que expressam a tomada de posição em um dado horizonte social.

Por conseguinte, ao assumirmos os tons dialógicos que se entrecruzam no enunciado, concordamos com Bakhtin quando o autor afirma que “[...] o discurso se converte em palco de lutas entre duas vozes” (BAKHTIN, 2010 [1929], p. 221). Para que haja relações dialógicas, o discurso deve estar em contato com a realidade e deve expressar, portanto, posições socialmente constituídas. No momento em que entra em contato com a realidade, a palavra não pertence somente a mim, pois é atravessada por tons dialógicos, por apreciações alheias e que determinam seu sentido.

Além disso, se é na interação verbal que se concretizam as relações dialógicas, não se pode entender o enfrentamento de diferentes vozes como encontro fortuito, mas como enfrentamento de valores, de posições sociais, de pontos de vista, que atravessam o enunciado. Ao enunciarmos, não construímos nossa posição paralelamente aos tons valorativos que a atravessam, nem enunciamos pela primeira vez como um “Adão mítico”, como discute Bakhtin (2011 [1979]), pois respondemos aos enunciados já-ditos, isto é, levamos em conta os enunciados já proferidos em dada esfera da interação humana, ao mesmo tempo em que consideramos as possíveis atitudes responsivas frente ao nosso discurso, ou seja, projetamos a possível apreciação valorativa do outro acerca de nossa palavra. Ademais,

As relações dialógicas são irredutíveis às relações lógicas ou às concreto-semânticas, que por si mesmas carecem de momento dialógico. Devem personificar-se na linguagem, tornar-se enunciados, converter-se em posições de diferentes sujeitos expressas na linguagem para que entre eles possam surgir relações dialógicas. (BAKHTIN, 2010 [1929], p. 209, grifo do autor).

Na verdade, há relações semântico-axiológicas no confronto de pontos de vista, julgamentos e apreciações, entre estilos de linguagem, entre dialetos sociais, desde que, expressem posições. O enfrentamento dialógico é possível não só entre enunciações completas, mas em qualquer parte significante, desde que ela expresse uma posição semântica, ou seja, “se ouvimos nela a voz do outro” (BAKHTIN, 2010 [1929], p. 210). É possível, também, a existência de relações dialógicas na própria enunciação de um sujeito, até mesmo em uma palavra, se de algum modo nos separamos dessas relações, se nos distanciamos dela.

Vale ressaltar que as relações de sentido aqui discutidas não se resumem ao diálogo face a face, isto é, na alternância das vozes dos sujeitos do discurso marcadas no diálogo, embora tenha nesse caso sua representação mais evidente (conforme seção sobre enunciados e gêneros do discurso). As tonalidades dialógicas, segundo Bakhtin (2010 [1929]), permeiam não só a comunicação imediata, mas também uma obra situada em determinado período de tempo, por exemplo. Também estão presentes na apreciação interior, mesmo que não seja explicitada, ou no dialogismo entre vozes sociais e históricas, desde que nesse enfrentamento haja relações semântico-valorativas.

Bakhtin (2011 [1979]) explica que o confronto de dois enunciados, mesmo que tenham sido produzidos em diferentes épocas e lugares, entram em relação dialógica quando confrontados em um plano de sentido. Mesmo que não se conheçam, dois enunciados alheios que toquem o mesmo tema entram em relações dialógicas entre si. Bakhtin (2011 [1979], p. 323) explica que “dois enunciados, quaisquer que sejam, se confrontados em um plano de sentido (não como objeto e não como exemplos linguísticos), acabam em relação dialógica [...]”.

Dada a natureza das relações semântico-valorativas, o Círculo alerta para a possibilidade de serem reduzidas às suas formas mais evidentes, isto é, às discussões, polêmica ou à paródia. Conforme Bakhtin (2011 [1979]), essas formas são as mais evidentes de dialogismo, sendo a concordância é uma das formas mais ricas de relações dialógicas, pois é rica em variedades e matizes de valoração. Além dessas possibilidades, as relações de sentido se concretizam também na confiança em relação à palavra do outro, na aceitação da palavra autoritária, no aprendizado, na combinação de muitas vozes, enfim, existe dialogismo nas diferentes situações em que se assuma a concretude das relações dialógicas e que representem posições integrais (BAKHTIN, 2011 [1979], p. 327).

Em síntese, as relações semântico-valorativas só existem no âmbito do discurso, isto é, na vida concreta da língua, pois são relações

de sentido possíveis somente no enfrentamento de vozes sociais, pertencentes a diferentes sujeitos. Após as discussões acerca das relações dialógicas, direcionamo-nos para nossas reflexões em torno do conceito de cronotopo.