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CAPÍTULO 2: FAMÍLIAS ANAPARENTAIS, MICROPOLÍTICAS DO AFETO

2.4 Feminismos: as histórias das mulheres

Conforme discutido anteriormente, no ocidente, mas, nesse caso específico, no Brasil, o casamento legitimado, primeiramente, pela religião e, posteriormente, pelas leis civis do Estado passou a ser, desde o século XIX, estabelecido como uma das instituições mais importantes para veiculação da moralidade burguesa. De acordo com Cláudia Maia, durante o processo de disseminação de família legalmente constituída, foram criadas medidas de incentivo ao casamento legítimo, monogâmico e indissolúvel, como, por

exemplo, a elaboração do Código Civil, de 1916, o qual “definiu juridicamente a família conjugal como modelo oficial, reconhecida pelo Estado, e o casamento como um contrato, feito entre ‘indivíduos livres’ e sem nenhuma forma de coerção e, sobretudo, os termos deste contrato e da sua dissolução” (MAIA, 2011, p. 108). Esse aparato discursivo, fundado na ideologia da simetria das trocas de serviços entre os cônjuges, foi um dos responsáveis por produzir o desejo de casar como uma vocação inata de todos, especialmente das mulheres. Nesse contexto, conforme explica Pedro Paulo de Oliveira, o casamento passou a ser visto como consequência natural da vida do cidadão comum ao mesmo tempo que atuava como uma barreira contra os vícios e a degeneração, já que, conforme explica o autor, a contenção, a moderação e o autocontrole burguês eram considerados elementos essenciais tanto para a vida familiar quanto para os futuros chefes de família. Por isso, com o novo ideal de família burguês, o amor, a sexualidade e a maternidade, em tese, só deveriam ser possíveis dentro do casamento. Essas ideias, amplamente difundidas, reorganizaram as relações familiares e domésticas, reforçando a supremacia da figura paterna no seio familiar, bem como estabeleceram novos modelos de comportamento feminino, que reforçavam a dominação masculina em detrimento da subalternidade feminina, conforme explicitados em muitas passagens que integram o enredo do romance de A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha.

Então eu me mato de trabalhar naquele banco para você ter do bom e do melhor e descubro essa feira aqui em casa? Mas Antenor, eu

também gosto de trabalhar. O seu trabalho é cuidar da casa e das

crianças. Mas isso eu já faço, Antenor. [...] Eu preciso de uma mulher dedicada ao lar. É sua responsabilidade me dar paz de espírito pra eu sair e trazer o salário pra casa. [...] Não me olhe assim, Antenor, eu

sou uma boa esposa. Uma boa esposa não arranja projetos paralelos.

Uma boa esposa só tem olhos para o marido e os filhos. Eu tenho que ter tranquilidade para trabalhar, você tem que cuidar das crianças.

(BATALHA, 2016, p. 53)

Considerando-se que esse enredo traz, em uma perspectiva feminista, a representação e o questionamento de valores que regem a família nuclear que seguem o padrão burguês de família, as questões centrais a serem pensadas nessa discussão são: nessa narrativa, qual a relação entre valor social da família e sistemas/discursos simbólicos? Em que medida há o descentramento da exigência da adequação às perspectivas do ideal burguês de família para a realização pessoal? Como as resistências cotidianas praticadas por essas mulheres ficcionais, como Eurídice, são diminuídas por esses sistemas/discursos simbólicos dominantes? O enredo desse romance centra na história de Eurídice, uma mulher de classe média, e a das suas famílias, a que nasce e a

que constitui depois de casada. Filha de uma tradicional família de imigrantes portugueses, ela é, inicialmente, apresentada aos leitores como a esposa de Antenor, homem conservador de classe média, com quem ela havia se casado muito jovem. A família que eles constroem juntos se adéqua ao modelo de família nuclear burguês dos anos 1950, década em que é ambientado os primeiros anos de casamento da personagem. Segundo Carla Bassanezi, em seu artigo “Mulheres dos anos dourados”, no modelo de família nuclear que imperava nessa década “os homens tinham autoridade e poder sobre as mulheres e eram os responsáveis pelo sustento da esposa e dos filhos” (Bassanezi, 2004, p. 608) e, no que se refere às esposas, “a mulher ideal era definida a partir dos papéis femininos tradicionais — ocupações domésticas e o cuidado dos filhos e do marido — e das características próprias da feminilidade, como instinto materno, pureza, resignação e doçura” (BASSANEZI, 2004, p. 608-609).

Assim, Antenor, representado como um homem cuja vida era orientada pelos valores da tradicional família nuclear burguesa, havia sido criado para se tornar um verdadeiro chefe de família e a ele caberia ter um bom emprego, escolher uma “moça de família” para se casar, ter filhos e prover a casa. Filho de Maria Rita, uma poeta, e Feliciano, um funcionário público, Antenor — que havia sido criado pela tia Dalva que se ocupou exclusivamente dos sobrinhos após o suicídio da cunhada, a “poeta incompreendida que se matou com formicida” (BATALHA, 2016, p. 78) — nunca havia esquecido a “vida desregrada” da mãe, os seus “rompantes apaixonados e infecundos” e, por isso, havia decidido que a vida que de casado que ele teria seria com uma mulher cuja personalidade fosse oposta à de Maria Rita. Casou-se então com Eurídice, filha caçula de Manuel e Ana, a quem caberia, como a personificação de todos os valores que, à época, deveriam caber à “moça de família”, gerar os filhos, consolar o marido das chateações cotidianas e se ocupar somente da casa e dos afazeres domésticos. E Eurídice foi impelida a se casar com Antenor não porque necessariamente achasse que seu destino inato era o casamento, talvez até fosse, mas, sobretudo, porque havia sido criada para obedecer e se adequar ao modelo de mulher burguesa definido por Virgínia Woolf, em seu artigo “Profissões para mulheres”, como o Anjo do Lar. Nos termos de Woolf, o Anjo do Lar seria um fantasma de uma mulher simpática, encantadora, altruísta, pura e sem opinião própria que, em outro tempo, existiu na vida de praticamente todas as mulheres para cercear-lhes as liberdades por meio do extremo convencionalismo do outro sexo. Ao

conjecturar sobre a possibilidade de as novas gerações de mulheres não conhecerem o Anjo do Lar, Virgínia Woolf faz questão de descrevê-la:

Ela era extremamente simpática. Imensamente encantadora. Totalmente altruísta. Excelente nas difíceis artes do convívio familiar. Sacrificava-se todos os dias. Se o almoço era frango, ela ficava com o pé; se havia ar encanado, era ali que ia se sentar — em suma, seu feitio era nunca ter opinião ou vontade própria, e preferia sempre concordar com as opiniões e vontades dos outros. E acima de tudo — nem preciso dizer — ela era pura. Sua pureza era tida como sua maior beleza — enrubescer era seu grande encanto. Naqueles dias — os últimos da rainha Vitória — toda casa tinha seu Anjo. (WOOLF, 2013, p. 12)

Virgínia Woolf (2013, p. 12) prossegue seu texto argumentando que os conselhos do fantasma do Anjo do Lar são orientados no sentido de que a mulher “seja afável; seja meiga; lisonjeie; engane; use todas as artes e manhas do nosso sexo. Nunca deixe ninguém perceber que você tem opinião própria. E principalmente seja pura” (Woolf, 2013, p. 12). Na perspectiva da argumentação da escritora, Eurídice — que fingia não ter opinião própria, já que, como filha e esposa, havia sido e continuava sendo limitada em suas potencialidades — passou a vida lidando com a luta que nela internamente havia se travado, desde a infância, entre a mulher que havia sido criada para ser e a “Parte de Eurídice Que não Queria Que Eurídice Fosse Eurídice” (BATALHA, 2016, p. 55). A voz da narrativa faz questão de explicitar, nas passagens em que explica o porquê de existir uma parte de Eurídice que não queria ser Eurídice, o quanto a personagem sente-se infeliz com a sua condição de mulher que havia sido criada para se portar como Anjo do Lar e o quanto era difícil lidar com as limitações dessa sua condição.

Como mencionado anteriormente, Eurídice, filha resignada e obediente, representa a personificação de tudo o que, na década de 1950, agregava a denominação “moça de família”. Bassanezi explica que as próprias revistas dessa época se ocupavam em classificar as moças como “de família” ou “levianas”. O primeiro grupo, ao qual pertencia Eurídice, era aquele em as meninas “se portavam corretamente, de modo a não ficarem mal faladas. Tinham gestos contidos, respeitavam os pais, preparavam-se adequadamente para o casamento, conservavam sua inocência sexual e não se deixavam levar por intimidades físicas com os rapazes” (Bassanezi, 2004, p. 610). Nesse sentido, ser considerada uma “moça de família” estava intrinsecamente relacionado, principalmente, ao fato de a família nuclear ser entendida como único lugar legítimo para a vivência da sexualidade, por isso, nos moldes como a sexualidade foi concebida pelo padrão burguês de família, as mulheres pertencentes a essa classe social deveriam ser

vigiadas pelas famílias para manterem-se castas e poderem constituir uma verdadeira família burguesa. Para o ideal burguês, “a virgindade era uma prescrição a ser seguida até o casamento; máxima que exprimia a unidade entre amor, matrimônio e relação sexual” (OLIVEIRA, 2004, p. 52).

Como, nos termos de Bassanezi, as moças deveriam se comportar de acordo com os princípios morais aceitos pela sociedade, o que implicava manter-se virgens até o matrimônio, é exatamente a questão da virgindade que irá determinar, nessa narrativa, a posição a que Eurídice, logo no seu primeiro dia de casada, na sua noite de núpcias, irá ser relegada na sociedade conjugal. No início da narrativa, a violência simbólica que marcará a trajetória conjugal da personagem é explicitada com a inquisição de Eurídice, por parte do marido, sobre o fato de, na lua de mel, ela não ter sangrado porque, conforme é esclarecido na narrativa, era uma condição biológica que afetava as mulheres da sua família e as impedia de sangrarem em sua primeira relação sexual. Nesse sentido, como era entendida como a base moral da sociedade, mesmo após o casamento, “a mulher de elite, a esposa e mãe da família burguesa, deveria adotar regras castas no encontro sexual com o marido, vigiar a castidade das filhas, constituir uma descendência saudável e cuidar do comportamento da prole” (D'INCAO, 2004, p. 230). Por isso, no discurso ideologicamente elaborado para sustentar esse ideal, o sexo deveria estar restrito ao casamento, base fundamental da família, e as mulheres deveriam permanecer virgens até a celebração da sociedade conjugal, já que “a virgindade funcionava como um dispositivo para manter o status da noiva como objeto de valor econômico e político” (D'INCAO, 2004, p. 235).

Sozinha na cama, corpo escondido sob o cobertor, Eurídice chorava baixinho pelos vagabundas que ouviu, pelos vagabundas que a rua inteira ouviu. E porque tinha doído, primeiro entre as pernas e depois no coração. Nas semanas seguintes a coisa acalmou, e Antenor achou que não precisava mais devolver a mulher. Ela sabia desaparecer com os pedaços de cebola, lavava e passava muito bem, falava pouco e tinha um traseiro bonito. Além do mais, o incidente da noite de núpcias serviu para deixá-lo mais alto, fazendo com que precisasse baixar a cabeça ao se dirigir à esposa. Lá de baixo, Eurídice aceitava. Ela sempre achou que não valia muito. Ninguém vale muito quando diz ao moço do censo que no campo profissão ele deve escrever as palavras “Do lar”. (BATALHA, 2016, p. 11)

Na narrativa, Antenor, presumindo que ela não era mais virgem, se ocupou em, a partir daquele momento, lembrar Eurídice da sua condição de “vagabunda”, o que fez questão de reiterar várias vezes ao longo da vida. Havia as noites de choro e uísque, que

eram as noites em que Antenor seviciava mentalmente a esposa porque ele, homem sério e trabalhador, não merecia ter casado com uma “vagabunda” e que, se quisesse, poderia tê-la devolvido aos pais. De acordo com lei vigente na época, o Código Civil de 1916, Antenor poderia ter devolvido a esposa para a sua família, já que “o defloramento da mulher, ignorado pelo marido” era, de acordo com o referido código, “erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge”77 e, por isso, motivo para anular casamento. No entanto, conforme informa a voz da narrativa, o fato da noite de núpcias serviu apenas para deixar, conforme enfatiza a voz da narrativa, Antenor “mais alto”, ou seja, a personagem que, na perspectiva do marido deveria, principalmente a partir do ocorrido, se portar como uma mulher submissa, deveria figurar no universo daquela família, sobretudo a partir daquele incidente, como o “espelho” de Antenor. Essa ideia de a mulher figurar como espelho do homem também foi cunhada por Virgínia Woolf que, em seu ensaio Um teto todo seu, desenvolveu a ideia da metáfora do espelho:

Em todos esses séculos, as mulheres têm servido de espelhos dotados do mágico e delicioso poder de refletir a figura do homem com o dobro de seu tamanho natural. Sem esse poder, a Terra provavelmente ainda seria pântano e selva. […] Eis por que tanto Napoleão quanto Mussolini insistem tão enfaticamente na inferioridade das mulheres, pois, não fossem elas inferiores, eles deixariam de engrandecer-se. Isso serve para explicar, em parte, a indispensável necessidade que as mulheres tão frequentemente representam para os homens. [...] É que, quando ela começa a falar a verdade, o vulto no espelho encolhe, sua aptidão para a vida diminui. Como pode ele continuar a proferir julgamentos, civilizar nativos, fazer leis, escrever livros, arrumar-se todo e deitar falação nos banquetes, se não puder se ver no café da manhã e ao jantar com pelo menos o dobro do seu tamanho real? (WOOLF, 1985, p.45- 46)

Essa metáfora do espelho se adéqua bem à condição a que Antenor deseja relegar à esposa na sociedade conjugal, mas Eurídice não sucumbe às pressões psicológicas do marido e busca resistir, por meio de mecanismos diversos, às limitações que os valores que, em tese, deveriam reger a sua tradicional família burguesa impunham a sua vida. Eurídice, lutando contra o fantasma do Anjo do Lar, insiste em denotar que não se contenta simplesmente com a condição de dependência e submissão a que estavam condenadas a maioria das mulheres casadas da sua geração. Essa personagem, que na infância, havia sido impedida pelos pais de expressar suas potencialidades artísticas

quando foi proibida de ingressar no conservatório de música, passa a vida procurando meios para expressar essas mesmas potencialidades, mesmo que limitadas aos muros da sua casa. Capaz de exercer certo controle sobre seu corpo, Eurídice decide que não terá mais filhos e não desiste de arrumar um propósito maior do que o casamento e a maternidade para dar sentido a sua vida.

Reiteradas vezes, a narrativa opera com o descentramento da exigência da adequação às perspectivas do ideal burguês de família para a realização pessoal. Eurídice questiona o status quo de mulher destinada a ser “do lar” quando tenta exercer algum tipo de autonomia na sociedade conjugal. Na primeira vez, consciente do seu status legal de sujeito relativamente incapaz, apresenta ao marido o caderno com as receitas que ela havia elaborado e que desejava publicar, mas, desdenhada pelo cônjuge, a quem atribui a sua ação da esposa a uma atitude inócua, já que ninguém “compraria um livro feito por uma dona de casa” (BATALHA, 2016, p. 32), a personagem, por uns momentos, até cogita acreditar que o marido poderia ter razão. No entanto, mulher brilhante que carrega a sensação de que está sendo limitada em suas potencialidades, Eurídice tenta se dedicar a um segundo projeto, que é o de se tornar uma grande costureira, mas, ao se inteirar da atividade paralela da esposa, mais uma vez Antenor, além de proibi-la, ainda faz questão de enfatizar sua necessidade, como chefe de família, de ter uma esposa dedicada ao lar, que tenha olhos somente para os maridos e os filhos: “Antenor não conseguia de parar de repetir as mesmas frases. ‘Ouviu bem, Eurídice, ouviu? Eu saio para trabalhar, você cuida das crianças. Ouviu, Eurídice, ouviu? [..] E nem esperava a mulher dizer se tinha ouvido. Emendava a frase de novo, e de novo. ‘Eu saio para trabalhar, você cuida das crianças’” (BATALHA, 2016, p. 53).

A família como valor social é representada como inteligível apenas se estiver seguindo as prescrições do sistema de organização social cujos valores estão pautados no encerramento da mulher no espaço doméstico e na sua submissão à dominação masculina, a limitação da sua agência como sujeito mãe e esposa, dedicada ao lar e aos afazeres domésticos. Discursos simbólicos, como o casamento como vocação inata de todos, mas principalmente das mulheres, a maternidade como uma condição para inteligibilidade social da mulher e a necessidade de dedicação exclusiva aos afazeres domésticos, perpassam toda a obra.

Agora [...] dá para entender por que essa moça vai e volta. Por que inventa projetos e não consegue enfrentar o marido. Por que não mandou Antenor catar coquinhos depois da gargalhada da Noite do Grande Banquete. E por que, no dia da Grande Briga Por Causa do

Ateliê de Costura, depois da Grande Gripe, Eurídice não levantou a voz, dizendo as mãos são minhas e com elas faço o que bem entendo, e

entendo que devo usá-las para costurar e para te apontar o indicador, e dizer que as mãos são minhas e com elas faço o que bem entendo.

Eurídice não usou suas mãos para proclamar a independência, mas para cobrir o rosto cabisbaixo. Ela sabia que o marido tinha razão, dentro de tudo aquilo que parecia razoável, e de acordo com a pessoa razoável que prometeu ser após a fuga de Guida. (BATALHA, 2016, p. 74)

No extremo oposto da postura paradoxal de Eurídice, está a da sua irmã Guida, que é apresentada como uma moça moderna, leitora ávida de revistas e frequentadora assídua dos cafés e dos cinemas do Rio de Janeiro. Diferentemente de Eurídice, Guida, movida pelos ideais de amor romântico, desafia o pátrio poder e foge de casa para casar com o homem que ama. Se Eurídice é representada como a personificação da “moça de família”, Guida é representada como a personificação da “moça leviana”, aquela que transgride os padrões estabelecidos, “uma dessas moças que já nascem sabendo de tudo” (BATALHA, 2016, p. 66) e que dominam desde a arte de fazer penteados nos cabelos até a audácia de circular por cafés e cinemas estimuladas pelas tendências estrangeiras absorvida por meio da leitura de revistas femininas. De acordo com a voz da narrativa, Guida, sabia, inclusive, o que fazer em situação de flerte e ainda tinha um namorado, Marcos: “num domingo de abril, pouco antes dos embates da flauta, comunicou aos pais que um rapaz por quem tinha grande estima viria vê-la depois do almoço” (BATALHA, 2016, p. 66). Essa personagem, ainda virgem, foge de casa para se casar com Marcos e viver seu romance. Carla Bassanezi explica, ainda, que, no caso de moças como Guida, a

vontade e a coragem de transgredir iam de fumar, ler coisas proibidas, explorar a sensualidade das roupas e penteados, investir no futuro profissional, discordar dos pais, a contestar secreta ou abertamente a moral sexual, chegando a abrir mão da virgindade — e, por vezes, do casamento — para viver prazeres eróticos muito além dos limites definidos. Algumas conseguiram escapar à pecha de leviana ou mal falada. Mesmo ousando em termos de sexualidade, mantiveram as aparências de moças respeitáveis. Algumas dessas “rebeldes” foram felizes em seus amores. Outras, não tiveram tanto sucesso e sofreram — estigmatizadas, discriminadas ou até abandonadas — as consequências de seus comportamentos desviantes, inconsequentes, indevidos ou ilícitos. De qualquer forma, seus questionamentos e contestações colocaram em perigo as normas de comportamento e contribuíram para a ampliação dos limites estabelecidos para o feminino. (BASSANEZI, 2004, p. 622)

No entanto, o casamento dura o tempo em que o jovem, nascido em berço de ouro, descobre que não tinha talento para nada além da sua condição de herdeiro e abandona a

moça sozinha e grávida. Rejeitada pela família, Guida se vê obrigada a começar a trabalhar para se manter e, depois do nascimento do filho, mesmo com a ajuda solidária dos vizinhos, ela precisa, em determinados momentos, a recorrer a diferentes recursos, como se deixar assediar e se submeter a abusos em troca, por exemplo, de medicamentos