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CAPÍTULO 2: FAMÍLIAS ANAPARENTAIS, MICROPOLÍTICAS DO AFETO

2.1 Panorama: o Brasil e a família nuclear burguesa

A história do romance A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha, é mais uma narrativa sobre a tradicional família nuclear burguesa brasileira. Ambientado a partir da década de 40 do século XX, esse texto de Batalha faz uma representação da família carioca de classe média muito próxima das delineadas por Clarice Lispector, por exemplo, na coletânea de contos Laços de Família, cujos textos, segundo a pesquisadora Lúcia Helena (1997, p. 43), insistem em delinear um determinado perfil de mulher, que está quase sempre retida num espaço de ruminação interior, a remoer uma vida vazia, nas estreitas dimensões de um quarto ou de uma casa. Por exemplo, assim como a personagem Eurídice quando jovem, Ana, do conto “Amor”58, é alguém que, embora insista em se

58 De acordo com a biografia da autora Clarice Lispector, organizada por Nádia Battella Gotlib e disponível na página dedicada à autora no sítio do Instituto Moreira Salles, o conto “Amor” foi escrito em 1951.

convencer de que deve viver como uma mulher cujo destino inato é o casamento e a maternidade, nessa narrativa ela não consegue escapar ao momento de crise pessoal que, desencadeado por um acontecimento aparentemente desimportante — o encontro com um cego —, a faz questionar os valores que a mantém presa à sociedade conjugal. Ana é, portanto, mais uma personagem que representa as tantas mulheres, sobretudo as burguesas, engendradas pelo dispositivo da escolha, um dos aparatos discursivos de regulação social que foram desenvolvidos para sustentar, a partir do século XIX, o novo ideal de família e de conjugalidade moderna instituído pela burguesia, o qual exigia a adoção de discursos e de práticas que servissem para estimular os futuros nubentes a constituir verdadeiras e “higienizadas” famílias burguesas. Esse dispositivo retirou dos pais o direito de escolher os futuros cônjuges dos filhos e delegou aos noivos a responsabilidade de escolher seus próprios maridos e suas próprias esposas.

Por isso que, nesse conto, em várias passagens a voz da narrativa faz questão, por exemplo, de enfatizar que Ana aceitava as obrigações impostas pela sua condição de mulher casada dependente do marido, devido ao fato de conhecer o peso da responsabilidade que recaía sobre si em razão de ter optado por ingressar no contrato conjugal, em conformidade com a lógica segundo a qual, de acordo com Cláudia Maia, em seu livro A invenção da solteirona, era necessário, para o sucesso do projeto burguês de família, que recaísse sobre as mulheres “que exerceram seu suposto direito de escolher um marido a ‘culpa’ pelos casamentos malsucedidos, pelos fracassos e infelicidades conjugais” (MAIA, 2011, p. 142). Segundo Maia, essa lógica era motivada pelo fato de ter surgido no mesmo campo discursivo “dois dispositivos conflitantes como parte do discurso: o da liberdade e da coerção” (MAIA, 2011, p. 141), este último, fundado nos interesses econômicos dos pais dos futuros nubentes, cedeu lugar ao dispositivo de livre escolha, fundado nas ideias de amor romântico. O dispositivo de livre escolha funcionou, então, como um mecanismo que tanto ironizava as mulheres mais exigentes quanto atribuía a responsabilidade dos fracassos conjugais ao fato de essas mulheres não terem sabido escolher o cônjuge ou simplesmente por terem exercido o direito de escolha.

A partir dessas considerações, é possível relacionar, portanto, o comportamento adotado pela personagem Ana ao longo da narrativa ao mecanismo de coação operado pelo dispositivo da escolha. Passagens do conto deixam explícito que, como a maioria das mulheres de seu tempo, a personagem via o casamento como sua condição inata e estava condicionada a saber seu lugar na sociedade, ou seja, tornar-se uma boa mãe e

esposa, ainda que em detrimento da sua felicidade e da sua realização pessoal. Assim, a personagem inquieta, cheia de angústias e que vive com a sensação de infelicidade mostra-se constantemente consciente sobre a responsabilidade em relação à escolha que fizera e, por isso, sufoca esses sentimentos com afazeres domésticos. O senso de responsabilidade e a culpa, sentidos usados no processo de assujeitamento das mulheres, são valores que estão tão impregnados e latentes na personagem que a voz da narrativa faz questão de enfatizar, em mais de uma passagem do conto, que aquela era a condição que Ana quisera e escolhera:

Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranquila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera. (LISPECTOR, 2009, p. 20-21, grifo nosso)

Ana sente-se responsável pela vida insossa que leva simplesmente por ter exercido o seu direito de escolha e, por sua livre vontade, ter ingressado na sociedade conjugal. A acomodação e o silenciamento de Ana, que sucumbe às obrigações a que ficou relegada na vida privada e que ironicamente é reafirmada pela voz da narrativa por meio da sentença “assim ela o quisera e escolhera”, contrasta com a parodoxal (in)visibilidade de Eurídice cuja história, conforme enfatizado pela voz da narrativa logo no início do texto, é a “de uma mulher brilhante”. Eurídice, segundo a voz da narrativa, era uma mulher que

[...] se lhe desses cálculos elaborados ela projetaria pontes. Se lhe dessem um laboratório ela inventaria vacinas. Se lhe dessem páginas brancas ela escreveria clássicos. Mas o que lhe deram foram cuecas sujas, que Eurídice lavou muito rápido e muito bem, sentando-se em seguida no sofá, olhando as unhas e pensando no que deveria pensar. E foi assim que concluiu que não deveria pensar. Que para não pensar deveria se manter ocupada todas as horas do dia, e que a única atividade caseira que oferecia tal benefício era aquela que apresentava o dom de ser quase infinita em suas demandas diárias: a culinária. Eurídice jamais seria uma engenheira, nunca poria os pés em um laboratório e não ousaria escrever versos, mas essa mulher se dedicou à única atividade permitida que tinha um certo quê de engenharia, ciência e poesia. (BATALHA, 2016, p. 12)

É um romance cujo foco é a história de mulher impossibilitada de gerir a própria autonomia, uma mulher cujas potencialidades foram insistentemente limitadas pela

família e pelo casamento. No entanto, assim como o perfil de personagem feminina de classe média clariceana, no caso de Eurídice, é também a situação de confinamento que, ainda nos termos de Helena, a movimenta e a faz “simbolicamente questionar o mundo patriarcal tematizado, em que os limites do mundo (de dentro e de fora) estão culturalizados e genderizados, cabendo, por tradição, à mulher o espaço interno, e ao homem o espaço público” (HELENA, 1997, p. 43). Nesse sentido, tanto em A vida invisível de Eurídice Gusmão quanto em “Amor”59, há várias passagens que deixam explícito que, como a maioria das mulheres, essas personagens — acomodadas, silenciadas, brilhantes — viam o casamento como sua condição inata e estavam condicionadas, mesmo à própria revelia, a saber seu lugar na sociedade, ou seja, tornar- se uma boa mãe e esposa, ainda que em detrimento da sua felicidade e da sua realização pessoal.

Se Eurídice queria casar? Talvez. Para ela o casamento era algo endêmico, algo que acometia homens e mulheres entre dezoito e vinte e cinco anos. Tipo surto de gripe, só que um pouquinho melhor. O que Eurídice realmente queria era viajar o mundo tocando sua flauta. Queria fazer faculdade de engenharia e manter-se fiel aos números [...] Mas ela não sabia que queria tanto [...] Eurídice tinha abafado os desejos, deixando na superfície apenas a menina exemplar. Aquela que não levantava a voz ou o comprimento da saia. Aquela que não tinha sonhos que não fossem os sonhos dos pais. [...] Ela estava nesse estado catatônico quando conheceu Antenor. (BATALHA, 2016, p. 83)

Ana e Eurídice são engendradas como mulheres que são impelidas a se adequarem ao modelo de feminilidade preconizado pelo ideal de família burguesa que, segundo Maria Ângela D’Incao (2004, p. 130), em seu artigo “Mulher e família burguesa”, surgiu no Brasil reforçado por aparatos discursivos desenvolvidos para inculcar no imaginário a importância do amor filial e do cuidado com o marido e com os filhos e redefinir o papel das mulheres nas relações familiares, reservando para elas o espaço privado e o trabalho reprodutivo: “percebe-se o endosso [...] de uma série de propostas que visavam “educar” a mulher para o seu papel de guardiã do lar e da família — a medicina, por exemplo, combatia severamente o ócio e sugeria que as mulheres se ocupassem ao máximo dos afazeres domésticos” (D'INCAO, 2004, p. 230). E assim se encontram limitadas ao espaço privado e condenadas a se dedicarem ao incessante trabalho reprodutivo não

59 Muitas dessas questões sobre a constituição da família burguesa e sobre os dispositivos legais de regulação da família e da conjugalidade foram discutidas na dissertação de mestrado defendida por mim, na Universidade de Brasília, em 2015, e estão sendo ampliadas nesta tese.

remunerado essas mulheres ficcionais inquietas, cheias de angústias e que vivem com a sensação de infelicidade porque, entre outras questões, estão constantemente conscientes sobre a responsabilidade em relação à escolha que fizeram e, por isso, ambas sufocam seus sentimentos se ocupando, ao máximo, de afazeres domésticos.

Nesse sentido, as famílias nucleares burguesas de Eurídice e Ana, cujos pilares são essas mulheres impossibilitadas de gerir própria autonomia, são exemplares para pensar o ideal de família burguesa que surge acompanhado por diferentes dispositivos, como o ideal de amor romântico e o dispositivo da escolha, e, ainda, os dispositivos discursivos de desqualificação e desvalorização do trabalho das mulheres, cultivados a partir da Idade Média, para limitar sua autonomia. As vidas conjugais de mulheres ficcionais como Ana e Eurídice evidenciam as consequências de um projeto político, econômico e social diretamente ligado ao nascimento da burguesia e do capitalismo, cujo sucesso deveu-se, em grande parte, aos mecanismos de espoliação dos poderes das mulheres a partir da Idade Média, momento em que, conforme argumenta a pesquisadora Sílvia Federeci, em seu livro Calibã e a bruxa, elas passaram a ser excluídas dos negócios familiares e confinadas a supervisionar os cuidados domésticos. Nesse sentido, o trabalho de Federici (2017, p. 26) é relevante para essa discussão porque, na perspectiva da pesquisadora, a história da burguesia é a história do capitalismo, e a história do capitalismo é a história do empobrecimento e da intensificação da violência contra as mulheres e outras minorias, já que o capitalismo foi, conforme elenca, o responsável pelo desenvolvimento de uma nova divisão sexual do trabalho; pela construção de uma nova ordem patriarcal, baseada na exclusão das mulheres do trabalho assalariado e em sua subordinação aos homens; pela mecanização do corpo proletário e sua transformação, no caso das mulheres, em uma máquina de produção de novos trabalhadores.

Com base nessas premissas, a pesquisadora se propõe a repensar o desenvolvimento do capitalismo a partir da perspectiva feminista sem, no entanto, focar em uma possível história das mulheres separada do que ela chama de setor masculino da classe trabalhadora. Temporalmente, ela informa que, na Europa, a privatização da terra inicia-se exatamente pouco tempo depois em que se dá a expansão colonial, ou seja, no final do século XV. Nesse sentido, segundo ela, o capitalismo, pai da burguesia, recorreu à destruição de sujeitos femininos, como, por exemplo, “a herege, a curandeira, a esposa desobediente, a mulher que ousa viver só, a mulher obeah que envenenava a comida do senhor e incitava os escravos à rebelião” (FEDERICI, 2017, p. 24), porque as mulheres

eram a principal ameaça à imposição do referido sistema. Assim, a partir de indagações que esbaram diretamente nas condições de vida das mulheres no século XX, ela analisa o que em seu texto denomina como a “transição do feudalismo para o capitalismo a partir do ponto de vista das mulheres, do corpo e da acumulação primitiva” (FEDERICI, 2017, p. 25). Ao investigar a atuação do capital na posição social das mulheres e na produção da força de trabalho, ela argumenta que a perseguição às bruxas, como um dos mecanismos de demonização e enfraquecimento do senso de coletividade feminino, foi tão importante para o sucesso do capitalismo quanto a colonização e a expropriação do campesinato europeu de suas terras. Sílvia Federici se ocupa em examinar o desdobramento capitalista em uma perspectiva feminista.

Contrariando as perspectivas de Karl Marx — segundo o qual acumulação primitiva caracteriza, nos termos da pesquisadora, o processo político no qual se sustenta o desenvolvimento das relações capitalistas —, ela analisa o referido processo considerando as mudanças que ele provocou na posição social das mulheres e na produção da força de trabalho. Para ela, cada momento da globalização capitalista, inclusive a atual, se dá acompanhada do retorno aos aspectos mais violentos da acumulação primitiva, o que denota que a incansável expulsão dos camponeses da terra, a guerra e o saque em escala global e, o que mais interessa neste capítulo da tese, a degradação das mulheres consistem em elementos que são, nos seus termos, condições necessárias para a existência do capitalismo em qualquer época. Em seu livro, ela explica que a questão histórica mais importante é compreender/explicar as motivações para “a execução de centenas de milhares de ‘bruxas’ no começo da Era Moderna e por que o surgimento do capitalismo coincide com essa guerra contra as mulheres” (FEDERICI, 2017, p. 29-30), partindo do pressuposto de que é necessário primeiro entender as circunstâncias históricas específicas em que a perseguição das bruxas se desenvolveu e as razões pelas quais o surgimento do capitalismo exigiu um ataque genocida contra as mulheres. Na construção da sua tese sobre as razões para a omissão, sobretudo da historiografia sociológica, política e econômica, da execução em massa de mulheres na Idade Média, ela apresenta a seguinte questão:

se na sociedade capitalista a ‘feminilidade’ foi construída como uma função-trabalho que oculta a produção da força de trabalho sob o disfarce de um destino biológico, a história das mulheres é a história das classes, e a pergunta que devemos fazer é se foi transcendida a divisão sexual do trabalho que produziu esse conceito em particular. (FEDERICI, 2017, p. 31)

A partir dessa questão, cuja resposta é não, ela considera que “mulher” é uma categoria de análise legítima, e as atividades associadas à reprodução seguem sendo um terreno de luta fundamental para as mulheres e um nexo de união com a história das bruxas. Ela busca esclarecer a relação entre a caça às bruxas e o desenvolvimento contemporâneo de uma nova divisão sexual do trabalho que confina as mulheres ao trabalho reprodutivo. Nesse sentido, surgem alguns pontos: a transição para o capitalismo é uma questão primordial para a teoria feminista; e a redefinição das tarefas produtivas e reprodutivas e as relações homem-mulher, nesse período, realizadas com violências institucionalizadas, deixam claro o caráter construído dos papéis sexuais na sociedade capitalista. Para a pesquisadora, “a acumulação primitiva foi um processo universal em cada fase do desenvolvimento capitalista” (FEDERICI, 2017, p. 36) e, em cada crise capitalista, foram adotadas diferentes estratégias para baratear o custo do trabalho e esconder a exploração das mulheres e dos sujeitos coloniais, exemplificando seu ponto de vista com fatos do século XIX, momento em que, na sua perspectiva, em resposta ao “surgimento do socialismo, à Comuna de Paris e à crise de acumulação de 1873, houve a ‘Partilha da África’ e a invenção da família nuclear na Europa, centrada na dependência econômica das mulheres aos homens — seguida da expulsão das mulheres dos postos de trabalhos remunerados” (FEDERICI, 2017, p. 36). No contexto dessa discussão e considerando-se que o objetivo deste tópico é pensar a família nuclear burguesa e o lugar da mulher nesse modelo de família, seria possível conjecturar, na perspectiva de Federici, que foi a família nuclear burguesa, depois do genocídio das mulheres nos séculos de caça às bruxas, a instituição moderna legitimada a limitar a autonomia e as potencialidades das mulheres e, por conseguinte, autorizada, por meio de diferentes tipos de violências literais e simbólicas, a dispor, sobretudo em países como o Brasil, da vida e dos corpos das mulheres? Se cada momento da globalização capitalista se dá acompanhada do retorno aos aspectos mais violentos da acumulação primitiva, o modelo de família nuclear que impera atualmente como legítimo é a instituição cujos membros estão autorizados a continuar levando a cabo esse atentado contra a vida das mulheres?

Considerando-se que, no Brasil, a maior quantidade de assassinato de mulheres ocorre, desde o período colonial, no asilo do lar — isto é, são cometidos pelos

patriarcas/maridos/companheiros que, incialmente sob a previsão do Código Filipino60, vêm sendo protegidos, primeiro juridicamente e ainda, em certa medida, tolerado culturalmente pela ideia que ainda impera de legítima defesa da honra —, os feminicídios podem ser pensados também como uma das condições para a existência do capitalismo do século XXI, tendo em vista que, nos termos da pesquisadora, a degradação das mulheres por meio de diversos mecanismos, como a violência literal e simbólica, tem sido condição necessária para a existência do capitalismo em qualquer época? Para pensar essas proposições, recorrerei, mais uma vez, ao texto Necropolítica, de Achile Mbembe, porque se, conforme salientado no capítulo anterior, para esse pesquisador qualquer relato histórico do surgimento do terror moderno precisa abordar a escravização — entendida como uma das primeiras instâncias da experimentação biopolítica — e o espaço da institucionalização de sua violência, que foi a fazenda, o lócus onde o soberano, o senhor de engenho, controlou a mortalidade e concebeu a vida como a implantação e a manifestação de poder, então qualquer relato histórico do surgimento do terror moderno precisaria também abordar a história da família nuclear burguesa — pensada como uma possível segunda instância da experimentação biopolítica — e o espaço da institucionalização de sua violência, a casa da família patriarcal, que foi o lócus onde o soberano, o marido, foi legitimado, por dispositivos jurídicos-discursivos, a controlar e conceber a vida das mulheres e das crianças como a implantação e a manifestação de poder.

Na lógica do necropoder, o soberano da casa da família nuclear patriarcal, assim como ocorria na casa-grande em relação aos escravizados, utilizava com relação à família métodos muito próximos daqueles empregados nas senzalas para manter o controle sobre a vida e os corpos das mulheres e dos seus filhos, como a violência física. Por isso, ainda na perspectiva de Mbembe (2016, p. 130-131), é possível pensar também que se a

60Sobre as Ordenações Filipinas, Cléber Gomes Ribeiro, em seu trabalho Legítima defesa da honra nos

crimes passionais, argumenta: “[...] naquela época, havia uma preocupação em tutelar a honra. O referido

dispositivo legal permitia ao marido traído, em nome da sua honra conjugal, por fim a vida da esposa e de seu amante, quando flagrados em atos de libidinagem. No entanto, estabelecia algumas exceções, pois não havia, ainda, sido difundida naquela época uma ideologia de igualdade jurídica e social. Destacamos o que relatava o Código Filipino: ‘Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assi a ella, como o adultero, salvo se o marido for peão, e o adultero Fidalgo, ou nosso Dezembargador, ou pessoa de maior qualidade. Porém, quando matasse alguma das sobreditas pessoas, achando-a com sua mulher em adulterio, não morrerá por isso mas será degradado para Africa com pregão na audiencia pelo tempo, que aos Julgadores bem parecer, segundo a pessoa, que matar, não passando de tres anno.’” (Ribeiro, 2008, p. 15).

estrutura do sistema de colonização e seus mecanismos devem ser compreendidos como um tipo de estado de exceção, na medida em que, no contexto da colonização, a existência do escravizado seria a figura de uma sombra personificada, também a mulher, no contexto dos modelos de família nuclear patriarcal e de família nuclear burguesa ela, assume, guardadas as proporções lógicas, a condição de sombra personificada, na medida em que, por exemplo, em todas as leis que regeram o Brasil, desde o período colonial até o século XX, o aparato jurídico transformou a mulher em um ser cuja vida passou legalmente a