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FEMINIZAÇÃO DO MERCADO DE TRABALHO E NOVOS ARRANJOS FAMILIARES NO BRASIL

política pública Para os autores, “A tentativa de sistematizar o debate da avaliação de políticas

A FAMÍLIA E A MULHER COMO INSTRUMENTOS DE PROTEÇÃO SOCIAL

4.1 FEMINIZAÇÃO DO MERCADO DE TRABALHO E NOVOS ARRANJOS FAMILIARES NO BRASIL

Dentre o conjunto de grandes transformações sociais que o século XX deixou como heranças, duas - que afetam diretamente o agir das famílias - merecem aqui particular atenção: a inserção crescente das mulheres no mercado de trabalho e o aumento de famílias chefiadas por mulheres. Compreender a dimensão dessas transformações pode auxiliar a entender os limites do chamado à co-responsabilidade feito pela ESF e, numa perspectiva mais ampla, a convocação para que as famílias assumam parte dos encargos nos sistemas contemporâneos de proteção social.

A partir de relatório do Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID (2003), Gelinski e Ramos (2010) mostram que na década de 1990 na América Latina as taxas de atividade (percentual das pessoas que podem ingressar no mercado que de fato o fazem) aumentaram em toda a região, principalmente devido ao trabalho da mulher. Enquanto a participação dos homens no mercado de trabalho oscilou entre 80 e 90% nos últimas cinco décadas, a taxa de participação das mulheres passou de 24%, nos anos 1950, para aproximadamente 33% nos anos 1980 e ao redor de 50% no final do século56.

No Brasil, de acordo com dados da Fundação Carlos Chagas (2005, citados por Gelinski e Ramos, 2010), entre 1976 e 2002, 25 milhões de mulheres se agregariam ao mercado de trabalho. Em termos quantitativos isso significa que se em 1976, 28 em cada 100 mulheres trabalhavam, o século XXI iniciaria com a metade das mulheres trabalhando ou procurando trabalho. A Tabela 1 mostra que de acordo com a PNAD, as mulheres representavam 28,8% da População Economicamente Ativa (PEA) em 1976, número que ascenderia para 43,1% em 2004. Em termos da taxas de atividade (ou a proporção de mulheres/homens economicamente ativos sobre o total de mulheres/homens) as mulheres apresentavam, uma taxa de 28,8% em 1976 e 51,6% em 2004. Enquanto isso, a taxa de atividade masculina (73,6% em 1976) permanecia em 2004 praticamente no mesmo nível da década de 70: 73,2%.

Para Lavinas (2001) e Nogueira (2004) o aumento da participação feminina no mercado de trabalho, desde meados dos anos

56 Ver também ao respeito Cerrutti e Binstock (2010).

http://www.eclac.cl/dds/noticias/paginas/0/37350/Ponencia- Marcelarrutti_GeorginaBinstockCe.pdf

80, pode ser explicado por três fatores. O primeiro se refere à reestruturação produtiva, que impactaria de maneira negativa no emprego industrial, tradicional reduto masculino até então. O segundo, diz respeito à expansão da economia dos serviços, com empregos majoritariamente femininos. E o terceiro, à flexibilização das relações trabalhistas, com a consequente precarização e aumento das ocupações por conta própria e da informalidade.

Tabela 1 - Estrutura da população economicamente ativa (PEA), por sexo, no Brasil, no período 1970-2002

ANOS HOMENS MULHERES Taxa Atividade (%) PEA Taxa Atividade (%) PEA 1970 71,9 18,2 1976 73,6 71,2 28,8 28,8 1980 74,6 68,6 32,9 31,3 1983 74,8 67,0 35,6 33,0 1985 76 66,5 36,9 33,5 1990 75,3 64,5 39,2 35,5 1993 76 60,4 47,0 39,6 1995 75,3 59,6 48,1 40,4 1997 73,9 59,6 47,2 40,4 1998 73,6 59,3 47,5 40,7 2002 73,2 57,6 50,3 42,5 2004 73,2 56,9 51,6 43,1

Fonte: elaborada por Gelinski e Ramos (20100 a partir de Fundação Carlos Chagas (2005)

Para Carnoy (1999) há ainda outro elemento, prévio ao processo de globalização: a inserção maciça das mulheres seria parte de um processo de mudanças que ocorrem no seio da família desde fins do século XIX.

As mulheres têm rejeitado progressivamente o papel de responsáveis únicas da coesão social e da educação da geração seguinte. O processo iniciou-se (...) quando começaram a reduzir o tamanho da família (…). Ter menos filhos facilitava a coesão social: as mulheres podiam dedicar mais tempo a atividades que reforçavam a comunidade ou criar uma vida própria fora da família, o que as levou, inclusive a incorporar-se ao trabalho. A última batalha da rebelião da mulher, que iniciou em vários países no fim dos anos sessenta, se travou contra as relações entre os sexos, que estão implícitas na família e no trabalho. As mulheres rejeitaram a identidade de donas-de-casa que lhes atribuía a sociedade industrial. Muitas mulheres se incorporaram ao mercado de trabalho, primeiro a tempo parcial e depois a tempo completo. Muitas acabaram sendo chefes do lar de família sem homens. E tudo isso ocorreu tanto antes, como independentemente da globalização e da chegada da nova tecnologia da informação (CARNOY, 1999, p.462,463).

Em suma, a entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho – ou a feminização do mercado de trabalho – se, por um lado, corresponderia aos anseios delas por mais espaço no âmbito público ou produtivo, por outro lado, também atenderia à necessidade crescente de força de trabalho dos setores produtivos, em condições muitas vezes mais precárias do que aquelas às quais a força de trabalho masculina estava submetida57.

Em termos de constituição das famílias, o destaque no Brasil fica por conta do crescente número de arranjos compostos por mulheres chefes de família com filhos e da redução de famílias formadas por casal e parentes ou família extensa (SORJ, 2004; 2007; GOLDANI, 1994).

Se, como já foi mostrado agora pouco, houve no Brasil um acréscimo significativo de mulheres no mercado de trabalho, o aumento de famílias chefiadas por mulheres foi ainda mais significativo. Santos (2006), com dados da Pesquisa Mensal de Emprego (PME) do IBGE,

57 De acordo com Nogueira (2004, p.83) “a flexibilização e a desregulamentação do mundo do trabalho vêm atingindo de maneira mais acentuada toda a classe trabalhadora, mas de maneira muito mais intensa e particular quando se trata da mulher trabalhadora”

mostra que enquanto a população feminina empregada aumentou 17,5%, entre 2002 e 2006, o número de mulheres chefes do lar teve um crescimento de 20,9% nesses quatro anos. Com isso, a participação das chefes de família no total de mulheres ocupadas passou de 28,7% para 29,6%. Dados mais recentes da PNAD de 2009, desta vez com famílias que residem em domicílios particulares revelam que 35,2% delas são chefiadas por mulheres, contra 27,3% em 2001 (Tabela2). Fontoura, Pedrosa e Diniz (2010) dão uma dimensão do crescimento do universo de famílias chefiadas por mulheres: em termos absolutos em 2009 são quase 22 milhões de famílias as que identificam como principal responsável uma mulher. Cabe destacar que embora a PNAD e a PME sejam pesquisas com bases e periodicidade diferentes, ambas apontam para o significativo aumento de famílias chefiadas por mulheres.

Tabela 2. Brasil: Famílias residentes em domicílios particulares por sexo da pessoa de referência da família (%)

Sexo

Ano

2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

Homem 72,7 71,6 71,2 70,6 69,4 68,6 67,0 65,1 64,8

Mulher 27,3 28,4 28,8 29,4 30,6 31,4 33,0 34,9 35,2

FONTE: elaboração própria a partir de dados da PNAD

As mudanças nas famílias têm sido acompanhadas de alterações conceituais na coleta de dados populacionais. Alterações que, sem dúvida têm a ver com as relações/representações de gênero. A mais notória delas, se refere à substituição do termo “chefe de” família/domicílio para “responsável por” família/domicílio. Para entender esses conceitos, duas observações são importantes: a primeira, diz respeito à distinção entre família e domicílio e a segunda, se refere aos termos “chefe de” ou “responsável por”. Em primeiro lugar, família e domicílio são categorias diferentes. Como já foi apontado por Lima (2006) a família é um tipo de agrupamento social ligado por laços de parentesco, enquanto o domicílio é a estrutura física, que serve de abrigo às pessoas ou famílias que moram nele. Várias famílias podem morar no mesmo domicílio. Em segundo lugar, a situação de “chefia” ou “responsabilidade” pela família ou pelo domicílio implica em

atribuições e deveres diferenciados em relação às pessoas que convivem uns com os outros. O que cabe destacar é que o uso do termo “chefe” (de família ou domicílio) esteve associado, desde o Censo de 1920, à autoridade de um dos membros, sobre os outros, e à sua condição de provedor. A acepção “chefe de” (família ou domicílio) seria a forma usada até 1991. A partir do Censo de 2000 a denominação “responsável por” passaria a ser oficialmente usada pelo IBGE, embora muitos textos ainda usem ambos os termos como sinônimos, ou usem o termo “chefe de” com bastante freqüência.

O crescimento do número de mulheres, com cônjuge, que se declaram responsáveis pelo domicilio pode estar ligado - na interpretação de Oliveira, Sabóia e Soares (2002) - à insuficiência (ou ausência) de renda do cônjuge, o que as leva a assumir o sustento do lar de forma cada vez mais visível. Ou, ainda, ao auto-reconhecimento da sua responsabilidade nas decisões e na manutenção da sobrevivência da família e do domicílio. Para as autoras “esta [última] hipótese trabalha com a possibilidade de um processo de alteração da compreensão dos papéis socialmente reservados à condição feminina, por muitos ainda considerada sócia menor, na constituição da família e da sociedade conjugal” (p.19, grifo nosso).

Qual o retrato dessas mulheres responsáveis pelas famílias? Dados do Censo de 2000 mostram que: (1) se concentram no espaço urbano (27,3% contra 12,8% no meio rural). (2) A proporção de mulheres responsáveis é maior entre as mais jovens. (3) Elas se encontram em maior proporção que os homens no grupo dos que têm menor escolaridade (sem instrução ou com menos de um ano de estudo). (4) Nos domicílios mais pobres, a proporção dos que estão sob chefia feminina é de 34%, contra 24,9% na média nacional. (5) As mulheres responsáveis se concentram nas faixas mais baixas de rendimento: 33,3% contra 21,4% dos homens. E, por último, (6) os rendimentos são inferiores entre as famílias com chefia feminina e sem cônjuge. Tudo isso, indica a maior fragilidade econômica dos domicílios sob responsabilidade das mulheres.

Duas questões foram levantadas até aqui, que sinalizam uma mudança no universo feminino. De um lado, a feminização do mercado de trabalho e, de outro, o aumento dos lares com chefia (ou responsabilidade) feminina. Interessa agora explorar se isso tem sido acompanhado de um processo de alteração dos papéis socialmente reservados às mulheres e se têm se refletido em mudanças significativas nas relações de gênero, em aspectos concretos como a divisão de tarefas

no espaço privado. Essa discussão é fundamental para entender se há condições para que as famílias (tanto as mono quanto as bi parentais) assumam parte dos cuidados impostos pela nova configuração dos sistemas de proteção.

4.2 PAPÉIS SOCIAIS NA FAMÍLIA E RESPONSABILIDADE