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4.4 O processo de Entrar, Ficar e Sair do Campo

4.4.2 Ficando no Campo: levantamento, registro e análise dos dados

Antes de descrever a maneira pela qual os dados foram levantados, registrados e analisados, é importante lembrar que as etapas de trabalho, na abordagem qualitativa de pesquisa, não são estanques, nem são seguidas numa seqüência rígida. Nas palavras de Triviños (1987), “a Coleta de Dados num instante deixa de ser tal e é Análise de Dados, e esta, em seguida, é veículo para nova busca de informações” (p. 137). Pode-se dizer, portanto, que ocorre uma interatividade entre essas etapas, e que elas se alimentam de modo interdependente.

A etapa Ficar no Campo, em que se desenvolveu o estudo empírico propriamente dito, mediante a aplicação dos instrumentos de pesquisa, foi uma experiência muito gratificante, sobretudo pela qualidade dos contatos estabelecidos com os trabalhadores psicólogos, mas também pela receptividade sentida desde o contato telefônico, quando da formulação do convite para participação no estudo.

O principal instrumento de levantamento de dados utilizado foi a Entrevista Semi- Estruturada, entendida como um encontro de diálogo reflexivo que permitiu aos trabalhadores externar suas vivências através de falas, as quais, embora expressas individualmente, são construídas socialmente, uma vez que as relações do cotidiano de trabalho são, em essência, intersubjetivas.

Diversos autores desenvolvem uma compreensão da entrevista como modalidade fundamental de coleta de dados em pesquisa qualitativa. Nessa perspectiva, a entrevista é

concebida como um processo de interação social entre duas pessoas (HAGUETTE, 1997), ou ainda como uma técnica que permite um maior aprofundamento das informações obtidas, com a grande vantagem de permitir a captação imediata e corrente da informação desejada (LÜDKE; ANDRÉ, 1986).

Para Martins e Bicudo (1989),

sempre que se desejar desocultar a visão que uma pessoa possui sobre uma determinada situação, é preciso que se lance mão do recurso que a entrevista fornece. Ela é a única possibilidade que se tem de obter dados relevantes sobre o mundo-vida dos respondentes (p. 54).

Biasoli-Alves (1998), por sua vez, acrescenta ser essa estratégia de investigação caracterizada pela elaboração de questões que

seguem uma formulação flexível e a seqüência e minuciosidade ficam por conta do discurso dos sujeitos e da dinâmica que acontece naturalmente. As questões nesse caso são abertas e devem evocar ou suscitar uma verbalização que expresse o modo de pensar ou de agir das pessoas face aos temas focalizados; freqüentemente elas dizem respeito a uma avaliação de crenças, sentimentos, valores, atitudes, razões e motivos acompanhados de fatos e comportamentos (p. 145, grifo da autora). Em Zago (2003), encontram-se referências aos aspectos compreensivos da entrevista, que definem os seus contornos; sem a pretensão de se chegar a um modelo pronto a ser utilizado, as questões previamente definidas podem sofrer alterações conforme os direcionamentos a serem dados à investigação.

À luz das perspectivas apresentadas por esses autores, o Formulário da Entrevista (Apêndice C), aperfeiçoado a partir do estudo piloto, conforme já explanado, foi proposto como um esquema básico para a sua condução, porém não foi aplicado rigidamente, sendo flexibilizado e adaptado sempre que necessário, servindo mais como ponto de partida e de orientação para o diálogo que caracterizou os encontros de levantamento de dados, de maneira informal e descontraída.

Patrício (1999a) assinala que a entrevista pode ser subsidiada por instrumentos específicos à situação estudada, tais como filmes, desenhos, músicas ou outros recursos que auxiliem no levantamento dos dados. Segundo a autora, esses recursos possibilitam levantar profundamente expressões verbais e não verbais do sujeito, identificando seus significados e podendo chegar mais próximo da realidade que se quer compreender.

Complementou a entrevista a técnica “Linha da Vida”7, exercício que consiste em traçar no papel uma linha representativa da trajetória cronológica da existência, destacando nessa cronologia os fatos e os momentos mais importantes. Utilizou-se a consigna segundo preconizado por Fritzen (1994), focada em uma determinada dimensão das experiências vividas, qual seja, a trajetória profissional dos sujeitos.

Esse recurso foi buscado pautando-se na crença de que poderia facilitar aos trabalhadores o resgate de vivências ou de momentos significativos em sua trajetória profissional. Extrapolando a expressão verbal e registrando por escrito os principais fatos vivenciados, poderiam dar-se conta ou mesmo lembrar-se de vivências marcantes, com a riqueza de conseguirem situá-las no contexto e nas circunstâncias, favorecendo a atribuição de significados aos fatos vividos. “O contexto no qual os indivíduos realizam suas ações e desenvolvem seus modos de vida fundamentais, têm um valor essencial para alcançar das pessoas uma compreensão mais clara de suas atividades” (TRIVIÑOS, 1987, p. 122).

Nas primeiras aplicações dessa técnica, os psicólogos foram convidados a registrar os fatos que desejassem ao longo de uma linha traçada em papel pardo ou cartolina, utilizando canetas hidrocor, giz de cera ou pincéis atômicos de cores variadas que lhes foram disponibilizados, em presença da pesquisadora, podendo expressar-se através de palavras, números, desenhos, símbolos, imagens ou outros recursos. Conforme já exposto, o estudo piloto possibilitou avaliar vários aspectos acerca da utilização dessa técnica associada à entrevista, como o momento de sua aplicação e a própria consigna apresentada.

A aplicação das técnicas de investigação acima descritas permitiu aproximações à história de vida dos trabalhadores participantes do estudo, na perspectiva de que o indivíduo só pode ser realmente compreendido em sua singularidade quando inserido na totalidade social e histórica que o determina e dá sentido a essa singularidade.

Minayo (1992) refere a história de vida como uma estratégia de compreensão da realidade, cuja função principal é retratar as experiências vivenciadas. Segundo essa autora, ela é instrumento privilegiado para se interpretar o processo social a partir das

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Essa técnica, também referida como Linha do Tempo, traz outras variações em sua denominação e em seus objetivos de aplicação. Fritzen (1994, edição original de 1981) a apresenta com o nome de “Gráfico da Minha Vida”, em duas versões, com o objetivo de trabalhar em grupo a representação gráfica dos fatos mais importantes da vida de indivíduos, ou de fazer feedback. Já Pabst (1999) a traz com o nome de “Linha da Vida”, e a utiliza com o propósito de trabalhar questões vocacionais e de reorientação profissional, referindo- se ao exercício como uma variação entre outras possibilidades de examinar a trajetória de vida, numa perspectiva corporal, através de reflexões suscitadas ao se caminhar sobre uma linha traçada no chão. Em Soares encontramos referências a essa técnica igualmente como “Linha da Vida” (2002a), mas também como “Gráfico da Vida Profissional” (2002b), consistindo a tarefa em construir, de maneira livre e espontânea, a linha da vida, marcando nela os acontecimentos e os momentos mais marcantes, ou representar, através de um gráfico, tais acontecimentos.

pessoas envolvidas, na medida em que se consideram as experiências subjetivas como dados importantes que falam além e através delas (MINAYO, 1992, p. 127). Em suma, trata-se de um recurso que acrescenta dados pessoais e visões subjetivas a partir de determinado lugar social onde os sujeitos estão interagindo.

Cruz Neto (2000), por sua vez, afirma que a história de vida “permite ao informante retomar sua vivência de forma retrospectiva”, constituindo-se em “um olhar cuidadoso sobre a própria vivência ou sobre determinado fato” (p. 59).

Bogdan e Biklen (1994) referem a possibilidade da abordagem da história de vida limitar-se a um período específico ou a um aspecto particular da vida da pessoa, o que também traz Minayo (2000), ao distinguir entre a história de vida completa, que retrata todo o conjunto da experiência vivida, e a história de vida tópica, que focaliza uma etapa ou um determinado setor da experiência em questão.

As aproximações à história de vida desenvolvidas neste estudo focalizaram-se na história de vida tópica dos participantes, dirigida especificamente à sua experiência laboral, embora, considerando a complexa trama que caracteriza a existência humana, nem sempre tenha sido possível separar as vivências relacionadas ao trabalho do conjunto mais amplo do processo de viver.

As informações oriundas da Linha da Vida e das Entrevistas foram reunidas, para que pudessem ser mutuamente complementares. Para tanto, o registro dos dados foi um procedimento que requereu especial atenção, pelo seu volume e, principalmente, pela sua diversidade, pois dele dependeria uma análise consistente. A esse respeito, Triviños (1987) ressalta que,

na pesquisa qualitativa, o registro das informações representa um processo complexo, não exclusivamente pela importância que nesse tipo de investigação adquirem o sujeito e o investigador, mas também pelas dimensões explicativas que os dados podem exigir (p. 154).

Os dados das entrevistas foram registrados no seu próprio formulário, no caso das informações da sua primeira parte, e através de gravações em fita cassete, na segunda parte. Essas gravações, devidamente autorizadas pelos sujeitos, totalizaram aproximadamente 35 horas, e foram posteriormente transcritas uma a uma, pela pesquisadora e por duas auxiliares de pesquisa, contratadas especialmente para essa finalidade. Cabe ressaltar que todas as gravações transcritas pelas auxiliares foram revisadas minuciosamente pela pesquisadora.

Mesmo que o trabalho de transcrição seja dividido com terceiros, como ocorreu nesta pesquisa, é muito importante que o pesquisador proceda a essa revisão, pois durante

o trabalho de transcrição e/ou revisão ocorrem insights ou reflexões que auxiliam no processo de análise dos dados. Esse momento configura-se, de certo modo, como um “estar de novo” com os sujeitos da pesquisa, na medida em que se rememoram o momento e o contexto de realização do levantamento de dados; é ainda uma oportunidade ímpar de estar em contato com os dados, de deixar-se impregnar por eles; como se se estivesse assistindo a um filme pela segunda ou terceira vez, os sucessivos contatos com o material permitem captar informações não percebidas num primeiro momento.

Ainda, a fidelidade àquilo que foi trazido, mesmo quando se fazia necessário “voltar a fita” por diversas vezes, para captar expressões nem sempre muito claras, ou para apreender detalhes que permitissem entender exatamente o que estava sendo dito, configurou-se como uma atitude ética de respeito aos sujeitos que se dispuseram a dividir com a pesquisadora passagens de suas histórias de vida.

Cada entrevista transcrita resultou em volume que variou de sete a 18 páginas (média de 12 páginas). Essa variação no volume de dados obtido mostra novamente quão peculiar é cada momento de entrevista, em termos não apenas do material colhido, mas também do modo como se processou a interação pesquisadora–pesquisados. Todo o material transcrito das entrevistas foi impresso, totalizando 195 páginas de registro.

O processo de coleta e registro de dados foi subsidiado pela utilização de um Formulário para Registros da Pesquisadora (Apêndice E), conforme descrito por Patrício (1999a). Para fazer esses registros baseou-se nas observações de Lüdke e André (1986), que enfatizam a importância de se distinguir claramente, nessa etapa, as informações essencialmente descritivas, as falas, as citações e as observações pessoais do pesquisador.

Esse formulário, anexo ao da entrevista, foi utilizado para registros de elementos considerados relevantes, surgidos antes, durante ou após os encontros de entrevistas, bem como de insights ocorridos e de sentimentos vividos no processo de colher os dados. Tal instrumento mostrou-se particularmente útil durante a aplicação da Linha da Vida, uma vez que, enquanto elaboravam seus registros, os profissionais iam explicando ou fazendo comentários a respeito do que estavam produzindo. Como nesse momento não se recorreu ao gravador, as informações consideradas importantes foram registradas no aludido formulário.

Tais registros auxiliaram a reunir as idéias que surgiram e a organizá-las preliminarmente e, para tanto, esse formulário contemplou espaço para a análise do que ia sendo registrado. Essa análise pode ser complementada por registros de notas teóricas, que são especificamente análises e inferências teóricas realizadas nesse momento, com o

objetivo de ir construindo concepções teóricas da realidade em estudo, e de notas metodológicas, que se referem a questionamentos, alterações e adaptações nos procedimentos metodológicos adotados na pesquisa (BONAZINA, 1999).

Nas vivências desse processo de pesquisa, foi particularmente significativa a riqueza da interação com o campo, possibilitada pela abordagem qualitativa: como se não houvessem amarras, tem-se liberdade para alterar o transcurso da coleta, a ordem de apresentação das questões, o momento de inserção de uma técnica complementar, o número de encontros com os trabalhadores. Sem contar a emoção, de entrar em consonância com a profundidade dos relatos e se permitir emocionar-se com eles, viver essa emoção e em seguida voltar ao papel de pesquisador e continuar o processo.

Esse é um “mergulho”, no entanto, que exige maturidade do pesquisador para transitar no vai-e-vem de seu estudo, estando simultaneamente dentro e fora da relação estabelecida com cada participante, sem perder de vista os objetivos que o trouxeram ali.

Alguns procedimentos utilizados no trabalho de campo claramente surpreenderam os trabalhadores, como o fato de ter sido mostrado o projeto da pesquisa, a entrega dos documentos que resguardam os aspectos éticos, deixar-lhes a Carta de Apresentação, informar-lhes da possibilidade de retorno para validar e devolver os dados. Pela sua reação, no entanto, essa pode ser considerada uma surpresa boa, pois ficaram interessados, forneceram e-mails, telefone, enfim, fizeram um movimento que demonstra o interesse e o desejo de serem mais que meros respondentes de uma pesquisa, e sim efetivos participantes de um processo de construção de conhecimento que a eles também interessa, em última instância, pois diz respeito à sua classe profissional.

Em vista da grande importância atribuída ao processo da pesquisa, o qual pode trazer benefícios ao campo pesquisado desde o seu início, mesmo que o estudo não tenha o propósito de pesquisa-ação, são apresentados alguns elementos a respeito do significado da participação no estudo, explicitados espontaneamente pelos psicólogos ao final da entrevista.

Fiquei orgulhosa de estar contribuindo em um assunto que para mim é apaixonante (Sara).

A experiência de participar da pesquisa foi avaliada também como oportunidade de reflexão e de recuperar “coisas já esquecidas”.

Poder recuperar algumas coisas que eu já tinha esquecido, considerá-las de outra maneira, isso aí foi bastante interessante, foi uma reflexão que foi bastante interessante... é uma intervenção da própria pesquisa no seu campo (Guilherme).

Outras manifestações enfatizaram a oportunidade de entrar em contato com sentimentos, fazendo uma avaliação retrospectiva e traçando perspectivas para o futuro.

Gostei muito de falar sobre a minha relação com o meu trabalho, de me emocionar novamente (olhos marejados). Desde a primeira ver que tu estivestes aqui me convidando para participar desse trabalho, já na hora eu fiquei bem emocionada... Poder estar falando sobre isso, rememorando também, avaliar o que faço, pensar sobre, recordar, sentir saudades, rememorar os obstáculos e o que foi vencido, o que ainda tem para vencer, o que que vem aí pela frente, foi ótimo, obrigada, eu fiquei contente de ter sido sorteada... de falar do meu trabalho (Ana).

Foi assim bem interessante essa coisa de resgatar, falar sobre, porque às vezes a gente fala, mas fala de um aspecto, de uma forma, e desse olhar, assim, fazendo mesmo uma avaliação, até. Foi muito agradável, muito gostoso, resgatar essas coisas da memória, tanto o lado bom quando do lado um pouquinho mais difícil... Foi muito agradável para parar e pensar daqui para frente agora (Carla).

O prazer de falar da sua história, para poder ser comparada à de outros, e para mostrar a outros como é que o percurso profissional se desenvolve, também emergiu.

Essa experiência aqui, acho muito interessante... Eu não sei até que ponto a minha história se parece com as outras... para mim foi interessante, gostei... foi bem ao ponto... Estar aqui falando agora é bom, para mostrar aos outros psicólogos de certa forma assim o que eles podem esperar, porque vai acontecer com eles o mesmo que aconteceu comigo... porque a mesma coisa que aconteceu comigo aconteceu antes com outros... não somos os únicos, claro que as histórias são singulares, mas... (Carlos).

Coerentemente com a proposta de uma investigação de natureza qualitativa, durante a etapa de levantamento e registro dos dados, já se desencadeou uma primeira análise desses dados, num processo dinâmico de realimentação das informações e da própria pesquisa.

Bogdan e Biklen (1994) definem a análise de dados como

o processo de busca e de organização sistemático de transcrições de entrevistas, de notas de campo e de outros materiais que foram sendo acumulados, com o objetivo de aumentar a sua própria compreensão desses mesmos materiais e de lhe permitir apresentar aos outros aquilo que encontrou. A análise envolve o trabalho com os dados, a sua organização, divisão em unidades manipuláveis, síntese, procura de padrões, descoberta dos aspectos importantes e do que deve ser aprendido e a decisão sobre o que vai ser transmitido aos outros (p. 205).

Conforme mencionado anteriormente, os métodos qualitativos preconizam que a análise dos dados seja realizada simultaneamente à sua coleta, de modo “que um dado oriente a interpretação e compreensão de outros dados, além de, em muitos casos, conduzir para outros levantamentos” (PATRÍCIO, 1999a, p. 72).

A partir dos primeiros registros dos dados, iniciou-se o seu processo de análise, através de um maior detalhamento das descrições feitas, quando se buscou identificar e categorizar, numa perspectiva classificatória, as questões até então levantadas, conduzindo, de certo modo, à passagem de dados brutos a dados organizados.