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Ficcional, imaginário e fantasmático

Torna-se cada vez mais difícil fazer o jogo do texto ficciona l quando a noção de real está fortemente abalada e a realidade é experimentada como ficção. Graças a esse posicionamento, cada representação parece sempre precisar denunciar a outra como falsa e ilusória, tornando mais evidente uma característica de todos os realismos. A questão aprofunda-se ainda mais porque os códigos de transparência já não são amplamente aceitos: a objetividade do realismo histórico tornou-se tão suspeita como a noção de objetividade científica em que ela se apoiava; a imagem técnica cada vez mais pode ser manipulada e corrigida revelando a ação mediadora envolvida no processo de representação visual e mesmo a estética amadora que traria uma nova forma de autenticidade calcada na subjetividade já foi absorvida e é emulada nas representações midiáticas. A paixão pelo real, no fim das contas, mina o poder mimético do texto ficcional, pois ao invés de abrir um diálogo entre os dois mundos, tenta cancelar enquanto produz.

Essa tentativa de captar o real pode indicar também uma recusa ao ficcional per si, um medo do poder da representação e do fingimento que data de Platão. O medo iconoclasta surge do temor que simulacros detenham todo o poder da representação para si, prescindam do objeto que fingem representar. No simulacro, ao invés da representação oferecer certo nível de transparência, ou seja, de deixar passar algo através de si e pressupor a existência de algo além dela, ela tornar-se-ia um biombo para o mundo48. Nessa situação, não haveria propriamente uma

representação, apenas uma simulação. Esse medo das imagens e da mímesis vai ser transposto para o discurso filosófico nos mesmos termos e a ficção surge no discurso filosófico como uma ameaça ao conhecimento, e ter de “questionar a ficção mesmo onde não se questiona o seu valor heurístico, mostra a preocupação em impedir que uma ficção, que não se evidencia por si mesmo, se qualifique como realidade.” (ISER, 1996, p.971). Esse caráter dúbio da ficção será o fundamento da crítica de Bacon, que mostrava o processo de conversão das ficções em ídolos

48 Flusser define o modo como as imagens técnicas tornaram -se biombos para o mundo em Filosofia

quando, dissimulando seu próprio caráter, elas começam a crer que possuem o caráter de objetos reais.

A desconfiança quanto ao poder do ficcional, longe de ser um empecilho, nos fornece um bom indicativo para a compreensão dos processos criadores e inventivos, aponta para uma questão chave, a inter-relação entre mundos. O mundo criado ou inventado, deste modo, apesar de ter vida própria, jamais será completamente autônomo, parte de sua vitalidade está nas constantes referências a outros mundos, sejam elas explícitas ou não. De acordo com Goodman (1984), quaisquer ficções, independentemente da forma em que se apresentam e do meio em que são veiculadas, não se aplicam verdadeiramente nem a diáfanos mundos possíveis nem ao nada, mas – ainda que metaforicamente – a mundos existentes. O meramente possível, por mais fantástico que seja, está contido no existente de modo que os chamados mundos possíveis da ficção vivem dentro dos mundos reais ou existentes.

A oposição entre o ficcional e o real, portanto, é falaciosa e desconsidera que a ficção cumpre uma função de apoio à realidade e, como tal, permitir enxergar outras facetas do real. Assim, o excesso do imaginário que inunda os sonhos e a imaginação pode ser compreendido e integrado pela ficção que vai abrir também um campo comum para que os imaginários individuais possam se identificar uns com os outros e possam experimentar a existência de outras imaginações e outros imaginários. Para Žižek (2008) “no nível mais radical, só podemos transmitir o Real da experiência subjetiva na forma de ficção.” (p. 8).

A retirada da condicionalidade do como se nos textos simulados ou que não se assumem como ficcionais pode minar o poder dialético da representação e frustrar as possibilidades levantadas pelo entrecruzar de fronteiras típico dos textos ficcionais. Deste modo, a busca pelo desvelamento do real desconsidera a importância do suporte fantasmático tanto para a vida “real” quanto para a ficção e nos promete um vislumbre bruto do Real não mediado, desconsiderando que a imaginação medeia o nosso acesso a vida. Destruir as fantasias é, de alguma forma, destruir o próprio objeto.

Žižek analisa as relações entre o processo de destruição da fantasia nas representações audiovisuais contemporâneas através da figura da femme fatale. Para ele, apesar de muitas vezes surgir na trama como um elemento exótico e destoante, a femme fatale tradicional não ameaça verdadeiramente o protagonista,

pois ela quase sempre é punida ao nível da linha narrativa explícita. A derrota da femme fatale no nível mais evidente da narrativa, entretanto, é contrabalanceada por sua vitória como imagem e entidade espectral que sobrevive no imaginário. Já a nova versão, exemplificada por Linda Fiorentino no filme A última sedução (John Dahl, 1994) ou ainda por Sharon Stone em Instinto Selvagem (Paul Verhoeven,1992), há uma subversão da fantasia masculina no processo de tornar mais concreta a figura algo fantasmática da mulher fatal dos filmes noir dando as personagens características mais “realistas”. Assim, aquilo que anteriormente era implícito ou sugerido, a sedução para um outro mundo de sexo e prazer, efetivamente se concretiza, em uma interpretação direta da fantasia geralmente regada por cenas altamente gráficas. Para o autor, contudo, a passagem do sugerido para o explícito esvazia o poder subversivo da femme fatale como entidade. Nos dois casos, parece haver uma desmesura e uma concepção errônea sobre o caráter da fantasia. No filme noir, a fantasia aparece como algo distinto e separado da realidade e nas versões pós-modernas, a fantasia é totalmente suprimida para dar lugar a um “real” que não comporta fantasia.

A chave para compreender essa concepção que separa em polos opostos realidade e fantasia, para Žižek, está no filme Estrada Perdida (1997), de David Lynch que leva ao extremo essas separações. No filme, além de outras subversões (uso da mesma atriz para dois personagens diferentes, quebra dos códigos de verossimilhança, etc.) percebe-se uma tentativa de mostrar como é artificial tanto a ideia de uma realidade desprovida de fantasia como a interpretação literal da fantasia. Lynch consegue esse efeito ao dividir o filme em duas partes. A primeira parte seria a realidade privada de fantasia, superficial, obscura e sem cor, e a segunda, a fantasia encenada, que curiosamente, teria um “sentido de realidade” muito mais forte e pleno, onde os sons e odores adquiririam profundidade e as pessoas se moveriam num mundo real. Unidas em um só filme, elas criam um estranho efeito de irrealidade.

A chave para este efeito de desrealização é que, como já vimos, Lynch põe lado a lado a realidade social asséptica quotidiana e o seu suplemento fantasmático, o universo obscuro dos prazeres masoquistas proibidos. Transpõe, por assim dizer, o vertical na horizontal, e coloca no mesmo plano as duas dimensões – a realidade e o seu suplemento fantasmático, a superfície e o seu “recalcado”. (ŽIŽEK , 2008, p. 262).

A grande conquista de Lynch, ainda seguindo com Žižek, seria mais do que apenas exibir de modo diacrônico aquilo que imaginariamente tendemos a juntar ou que costumeiramente nos é apresentado nas narrativas fílmicas amalgamado. Destacado da realidade e apresentado em sua forma mais pura, o suporte fantasmático mostra sua inconsistência, falta que aponta para uma característica, a “realidade” não se sustenta em uma única fantasia, mas numa multiplicidade inconsistentes de fantasias que, combinadas, vão gerar uma espécie de efeito de densidade impenetrável que podemos experimentar como “realidade”.

5 O IMAGINÁRIO DA VERDADE REVELADA NA TELA