• Nenhum resultado encontrado

Realismo e modernidade no cinema

As várias recentes vertentes do que se poderia chamar, grosso modo, de realismo cinematográfico atualizam o debate sobre o poder da representação realista no cinema. Os exemplos dessas novas vertentes abundam em diversas partes do mundo, do cinema iraniano à estética de choque de real no cinema brasileiro, incluindo também o recente boom dos documentários e dos registros de cunho autobiográfico. Especificamente no caso do cinema francês contemporâneo, podem-se observar novas variações do realismo em dois filmes recentes, A humanidade (Bruno Dumont, 1999) e Ser e Ter (Nicholas Philibert, 2002). O primeiro propõe um reencontro com técnicas e artifícios que marcaram a estética realista talvez mais bem sucedida do cinema, o neorrealismo italiano, e o segundo instiga ao se querer documentário, mas ao mesmo tempo apresentar uma realidade que nos parece curiosamente fabular. A riqueza da análise comparada dos dois filmes reside na possibilidade de avaliar amplamente os limites e extensões do realismo no cinema. Os dois filmes fornecem pistas sobre o estatuto da representação realística na contemporaneidade e permitem compreender qual a relação com outras estéticas realistas, em especial aquela agrupada sob o termo neorrealismo ou, para usar a expressão correlata de Bazin, a escola italiana da libertação. Para iluminar as características específicas desses novos realismos, vamos tentar primeiro estabelecer as relações entre o realismo cinematográfico e a modernidade, depois tentar mesurar as razões do sucesso do neorrealismo e, finalmente, tentar enxergar nos filmes em questão, novas direções e caminhos das representações realísticas na contemporaneidade.

O recrudescimento das estéticas realistas suscita diferentes questões. Se pensarmos em termos comparativos, o cinema parece solitário em sua insistência na transparência das representações em relação à literatura, à pintura e mesmo as novíssimas formas da arte contemporânea. Percebe-se nestas outras formas de manifestação cultural, pelo contrário, a presença cada vez mais marcante tanto da mediação do sujeito (vide a preferência por temas autobiográficos) quanto dos

experimentalismos estéticos ou tecnológicos. Fala-se até mesmo em hipermediação, afinal a cultura midiática é plena em sobreposições de janelas, de ambientes e estilos. Caminhando nesta direção, poderíamos concordar com Eagleton (2003) quando ele afirma que o realismo deve captar as mudanças operadas no senso de realidade e, portanto, o realismo contemporâneo passaria pela fidelidade a um mundo de superfícies, sensações aleatórias e assuntos humanos esquizóides típicos do pós-modernismo. Se estamos mesmo em plena era do pastiche, da colagem e da autorreferência, como localizar a tentativa de oferecer representações realísticas? Se optarmos por desviarmos a questão para o filme documentário, a resposta chega mais rápido, pois este tipo de registro, embora também sujeito a diversas atualizações e inovações, ainda baseia-se em larga escala em uma espécie de pacto documental, ou seja, ele ainda se abre como uma janela para um mundo, ele confia em sua capacidade de deixar-ver. Todavia, a questão do realismo talvez não passe diretamente pelo documentário, justamente porque ele se fia a esta asserção pressuposta, como assim define Nöel Carrol (2005) 34.

Segundo o teórico inglês, tanto os documentários como os filmes abertamente ficcionais compartilham estruturas como o flash back, a montagem paralela, o contra-campo, o plano ponto-de-vista e outros. Ademais, mesmo certos maneirismos típicos do documentário tais quais a fotografia granulada e a instabilidade da câmera já foram assimilados pelos filmes ficcionais com vistas principalmente a produzir efeitos de realidade e de autenticidade. Nesse ponto, uma recente produção americana, Cloverfield (Matt Reeves, 2008), facilmente enquadrada na categoria de blockbuster, é exemplar. Nele, o uso extensivo da fotografia granulada e a instabilidade da câmera são justificados a nível narrativo, como se as imagens fossem produtos das câmeras de celular que os personagens carregam durante o ataque de um monstro a cidade de Nova York. Essa estética do amadorismo visa justamente trazer autenticidade e provocar um efeito de real que contrabalança a inverossimilhança da trama (ou seja, um monstro gigante atacando Nova York). Apesar de claramente ficcional, o filme trabalha dentro de uma proposta um tanto naturalista, aquelas imagens supostamente seriam as conseguidas por pessoas

34 “Chamo esses filmes como de asserção pressuposta não apenas porque o público presume que

deve entreter o seu conteúdo proposicional como assertivo, mas porque podem, também, mentir. Ou seja, presumimos que envolvam asserções, mesmo nos casos em que o cineasta está intencionalmente dissimulando a intenção assertiva.” (CARROL, 2005, p. 89).

comuns se um monstro atacasse a cidade. Vê-se claramente a tentativa de apagar a marca da mediação do diretor e de todo aparato cinematográfico para deixar o espectador diante da ação em si através de perspectivas altamente subjetivas. Este exemplo serve para reforçar a posição de Carrol sobre a indistinção a nível formal entre o documentário e o filme abertamente ficcional.

A especificidade do documentário, desse modo, estaria intimamente ligada ao tipo de asserção sugerida pelo próprio filme, ao pacto proposto pelo realizador no qual ele compromete-se a falar o que acredita ser a verdade e o público parte do pressuposto que ele assim o faz. O realismo, no documentário, passa nem tanto pelas estratégias de representação, mas por um tipo de acordo estabelecido entre autor e público através de uma sinalização clara de intencionalidade por parte do primeiro.

Nesse caso, devemos seguir a trilha em outra direção e o filme A humanidade pode nos conduzir nesse percurso. Ali, vê-se o uso das várias ferramentas que moldaram o neorrealismo italiano: o uso de atores não-profissionais, o tema prosaico e cotidiano, o foco nas relações interpessoais, o uso extensivo de locações externas e o estilo discreto de filmar ou, para colocar de outro modo, a ausência de modernismos. Todas essas escolhas marcaram o neorrealismo italiano, embora o termo escolha talvez não seja o mais apropriado. Creio que é legítimo afirmar que parte da vitalidade e da autenticidade desse movimento vem do fato que essas opções não eram tanto escolhidas como contingências da situação política, econômica e social. A força do neorrealismo não estava somente no modo de apresentação, tampouco estava confinada aos temas e mesmo ao enredo – embora boa parte da força de, por exemplo, Ladrões de Bicicleta (Vittorio De Sica, 1948) talvez venha mesmo da impressionante simplicidade da história – mas no modo como parecia haver uma integração harmônica entre o contingente e o intencional de modo que o resultado final, ou seja, o filme, tanto mostrava quanto representava. Hoje em dia, pode-se afirmar mais ou menos seguramente que essas opções são escolhas estéticas que devem revelar algo sobre a intencionalidade da obra e do diretor. Foi a intencionalidade mais marcada de Rossellini, por exemplo, ao manter algumas de suas escolhas estéticas em seus filmes posteriores ao momento neorrealista (o uso de atores não-profissionais, o estilo contido, o anticlacissismo, entre outros) que o habilitou a ser considerado um arauto modernista, embora ele mesmo nunca tenha se visto nesse papel.

Pode-se tentar pensar também se esta visita ao neorrealismo não seja ela tipicamente pós-moderna em termos de periodização. Assim, se a exemplo de Jameson agruparmos os estágios culturais da modernidade em três grandes momentos ou blocos, a saber, realismo, modernismo e pós-modernismo, esse recrudescimento cheira a pastiche e inautenticidade ou, no melhor dos casos, a uma nostalgia pelo passado. A periodização, ela mesma fonte de constantes ataques na contemporaneidade, serve ao menos para mostrar um estranho descompasso entre o cinema e as outras artes. Enquanto o realismo já era algo caduco na pintura e superado pela literatura, o cinema ainda conseguia torná-lo absolutamente válido para expressar a condição moderna. Decerto, a objetividade aparentemente inapelável da câmera torna constrangedoras as pretensões de transparência dos escritores e pintores, contudo, quando o neorrealismo irrompe tanto a pintura quanto a literatura já haviam abandonado em larga escala o realismo. Jameson, entretanto, acha possível manter o paralelo com as outras artes partindo do pressuposto que o cinema (o cinema falado, pois ele acha que o cinema mudo nunca teve a oportunidade de desenvolver a sua suposta versão pós-moderna) reconstitui a trajetória realismo/modernismo/pós-modernismo em um ritmo mais comprimido, mesmo que sua análise desses três momentos seja inextricavelmente ligada aos três estágios do capitalismo (capitalismo de mercado, monopolista e transnacional) ao quais cada um dos três momentos corresponde. A solução para esse aparente paradoxo, para ele, está em concentrar-se nos termos sociais, assim, do mesmo modo que a literatura realista cumpriu o papel de prover uma espécie de instrução cultural, ideológica e narrativa para um novo grupo, a burguesia; o cinema realista executou essas mesmas funções ideológicas para a classe trabalhadora industrial.

O momento realista, em Jameson, é um momento de preparação, em que são construídos os conceitos, os temas como também as categorias de mundo e de realidade que serão então questionadas, reinventadas e reinterpretadas no estágio modernista. O público também cumpre um papel importante na sua definição, ele convive e se identifica no estágio realista com novos hábitos, funções e modos de fruição que deverão estar bem consolidados para que os autores modernistas possam, então, no momento subsequente, subvertê-los. Ainda nesta direção, pode- se considerar o neorrealismo italiano como auge do realismo cinematográfico e como todo cume, o começo da queda. O movimento neorrealista, como se sabe, foi vítima de seu próprio sucesso, e já nos anos 50, percebe-se um esgotamento;

esgotamento pela repetição e pela apropriação, antecipando aquela que seria uma característica marcante da cultura das mídias, a tentativa de copiar e replicar a exaustão um modelo de sucesso. Bazin, ainda em 1949, percebe esse movimento ao denunciar o surgimento de subgêneros do neorrealismo, alguns inofensivos e divertidos como comédias ligeiras e outros nem tanto como “o aparecimento de uma espécie de superprodução neorrealista em que a busca do cenário verdadeiro, da ação de costumes, da pintura do meio popular, das intenções 'sociais', tornava-se um estereótipo acadêmico.” (BAZIN, 1991, p. 265).

Pode-se até conjecturar-se que o neorrealismo foi um estágio por qual grandes autores modernistas, como Fellini, Antonioni, Visconti e Rossellini, passaram antes de atingir seu próprio modernismo. Levando um pouco mais além essa hipótese, um filme em especial, Rocco e seus irmãos (Luchino Visconti, 1960) ocupa um papel chave nessa transição, cumpre a função de encerramento do ciclo, como uma espécie de crítica retrospectiva ao movimento; um legítimo exercício iconoclasta tão típico das obras modernas. Neste filme de Visconti são várias as inversões propostas, a começar pela ambientação. Já não se trata de exibir nem um país destruído pela guerra nem as mazelas sociais e econômicas do sul empobrecido, o filme passa-se na próspera capital da Lombardia. Ali, chegam os pobres imigrantes do sul, mas ao invés da solidariedade e da organicidade de uma sociedade ou de uma comunidade, encontram o preconceito e a rejeição. Rocco e seus irmãos nunca conseguirão verdadeiramente se integrar, serão sempre a margem e é quase inevitável não ver a metáfora para a divisão do próprio país, o norte: próspero, urbano e desenvolvido e o sul: pobre, rural e místico. A denúncia social de Visconti não angaria simpatias facilmente, ela toca em uma ferida mais profunda e dolorida da sociedade italiana, evitando o humanitarismo e a ética da solidariedade que marcaram várias das produções do período neorrealista. Não há na história de Visconti antagonistas evidentes e facilmente condenáveis, papel ocupado no neorrealismo pelos nazistas, os fascistas ou a própria guerra. Para além da trama, percebe-se que Visconti não foge ao estilo pessoal e marcado, contrariando também a estética dominante do simples panorama. Rocco e seus irmãos vai ser um sucesso de público e de crítica, abrindo novos caminhos para o modernismo cinematográfico nas duas frentes. Nos anos 60, o cinema entraria de vez em sua modernidade, já maduro como expressão artística.

haja certo consenso que em algum momento no fim dos anos 50 e durante a maior parte dos anos 60 surgiu uma grande variedade de cineastas criativos e inventivos por todas as partes do mundo. Esse grupo heterogêneo carrega até hoje o carimbo de moderno e quando se fala em modernidade no cinema, não há como evitar os grandes auters35 dos anos 1960. Obviamente, até os anos 60 o cinema já tinha produzido grandes filmes, um deles inegavelmente paradigmático em termos de modernismos, Cidadão Kane (Orson Welles, 1939). Aumont (2008), no seu livro dedicado a questão do modernismo no cinema, destaca como o filme de Welles foi mesmo considerado como a entrada do cinema na modernidade por muitos críticos e teóricos do cinema, depois de Kane se abrirão novas possibilidades para a criação cinematográfica, tanto a nível narrativo como em termos de autoria.

Como afirma Aumont, o filme de Welles serviu para minimizar ou mesmo eliminar um sentimento de inferioridade do cinema em relação às outras artes, especialmente à literatura. Bazin não economizará palavras e hipérboles para declarar que, a partir deste filme, o cinema deixaria de ser um vassalo da literatura e poderia enfim ombrear-se com as outras artes. Contudo, pode se argumentar que Welles permanece um solitário artista modernista em seu próprio país, e os anos de 1930 e 1940 são o auge da diversão ligeira e do entretenimento, o auge dos grandes estúdios e do star system nos Estados Unidos. Ainda seguindo com Aumont, talvez Welles seja o cerne da questão da modernidade, e não seu filme. Ele encarou como poucos o papel de artista moderno, inovador, provocante e autoral, acima de tudo “um mestre na arte de se apresentar como mestre”.

Depois de Welles, especialmente para a crítica francesa, Rossellini surge como novo paradigma de modernidade no cinema, mas como bem destaca Aumont, talvez a modernidade do diretor italiano estivesse menos no seu estilo e nas suas escolhas estéticas do que na sua percepção sobre o papel do cinema na vida moderna. Se é possível enxergar na obra do diretor italiano a encarnação da concepção moderna de cinema, esta se relaciona mais a uma história das mídias

35 Jameson (1995) não deixa de notar o problema de se agrupar um produto coletivo e obras tão

diferentes do mesmo cineasta sob o termo. “O conceito de auteur é então um conceito heurístico ou uma ficção metodológica, que propõe tratar textos coletivos (...) como se fossem a obra de um único 'artista', compensar a diferença genérica com a unidade estilística e tratar as produções múltiplas de uma única assinatura como se fosse muitas expressões distintas de um único estilo, um conjunto único de preocupações temáticas e um 'mundo' único (no amplo sentindo fenomenológico como que esse termo passou para a crítica literária modernizadora).” (p. 204).

“na medida em que ele exalta a coincidência entre cinema (depois televisão) e a vida moderna.” (AUMONT, 2008, p. 43).

Levando um pouco mais além essa relação do cinema com a vida moderna, podemos chegar a conclusão que parte do sucesso do movimento neorrealista estava em sua sincronia histórica, ou seja, em sua capacidade de apresentar representações que refletiam uma relação estremecida com a modernidade e suas consequências. A sombra da Grande Guerra era um lembrete nefasto do lado mais cruel do projeto moderno e o humanitarismo dos filmes neorrealistas parecem reabilitar o homem frente a um período de excesso da técnica científica. Do mesmo modo, podemos localizar os experimentalismos e inovações dos anos 60 como uma forma de lidar com os sentimentos ambíguos em relação à modernidade. Como localizar então esse retorno ao realismo nas produções contemporâneas em plena era de pós-modernismos, especialmente depois de provar todo o potencial dos cineastas modernos nos 1960? Esse reencontro com estética neorrealista torna-se ainda mais idiossincrático se considerarmos, assim como Eagleton (2003), que o pós-modernismo torna-se bem sucedido quando percebemos que a realidade agora é uma espécie de ficção, torna-se uma questão de imagem, de riqueza virtual, povoada por personalidades fabricadas, plena em eventos orientados pela mídia na qual até a política tem ares de espetáculo.