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Diferentemente da literatura, na qual a construção da personagem exige um esforço contínuo para lhe conferir autenticidade através do uso de variados recursos linguísticos, no cinema parte desse esforço já é dado pelo fato do ator trazer consigo o signo da referência a uma pessoa real. Essa identificação mais imediata da personagem do cinema abre também espaço para construções imaginárias que entrelaçam ator e personagem de modo peculiar. Abundam exemplos de atores que se identificaram a tal ponto com determinada personagem que seria muito difícil desassociar um do outro. Por outro lado, certos atores ultrapassam seus personagens e tornam-se eles mesmos entidades fictícias que emprestam sua

62 Com Luhmannn (2005) concordamos que o engajamento nas narrativas do entretenimento é

possível graças a um processo de identificação do observador (a audiência) com o destino dos personagens (nos filmes e programas televisivos) através da apresentação de histórias de vida que possibilitam uma autoinserção no mundo representado.

imagem para diversos papéis. Essa relação imaginária peculiar indica, para Cavell (1980), uma característica específica da personagem cinematográfica, sua incapacidade de manter consistência para além do ator. Se no teatro são atores que encarnam personagens que possuem vida própria, no cinema essa relação se altera de modo que um ator, quando bem sucedido, impõe a sua caracterização a personagem que, deste modo, torna-se subordinada a ele. Para Cavell, isso se deve também à ausência mecânica do público no cinema, diferentemente do teatro em que as pessoas de fato presenciam a ação e veem o ator projetar-se no personagem, no cinema nunca vemos, de fato, o ator, somente a sua imagem.

Se seguirmos com Cavell teríamos que repensar a unicidade da personagem Grace que é representada por atrizes diferentes. No sentido mais estrito, elas não são duas personagens, mas um só, fato comprovado não só porque são homônimas como pela sugestão de continuidade claramente expressa em Manderlay, a Grace que chega ali é a mesma que havia saído de Dogville. Cabe, entretanto, uma pequena digressão sobre a diferença entre elas no que tange a construção imaginária relacionada às imagens das atrizes escolhidas. No primeiro filme, quem empresta a sua imagem é Nicole Kidman, conhecida atriz de grandes produções hollywoodianas, associada ao mais alto escalão de estrelas. Esta escolha deve revelar algo sobre o tipo de relação de identificação pretendida por von Trier, afinal quem vemos sofrer toda a sorte de abusos é a própria Nicole Kidman, obviamente interpretando Grace, mas ainda assim a imagem que nos chega é da atriz e ela carrega toda um feixe de significações imaginárias atrelada à sua carreira prévia. Ao pesarmos essa escolha considerando certa estética do choque que perpassa o filme, fica ainda mais claro como essa escolha reforça todo o conjunto de artifícios que visa atingir fortemente o espectador. A própria fama que carrega o diretor, injustificada ou não, de terrorista emocional63 ajuda a aproximar ainda mais o

martírio da personagem com a atriz. Desse modo, a troca de atrizes64 implica. em certo grau, na troca de personagem. A Grace de Manderlay, interpretada pela à época relativamente desconhecida Bryce Howard Dallas tem novas expressões, novos trejeitos, nova entonação e, definitivamente, uma nova imagem. Cabe até

63 Um dos fatos que alimentam esta fama foi a declaração da cantora Bjork, protagonista de

Dançando no escuro (2000), que jamais retornaria a atuar.

64 A despeito de ter revelado em entrevista no Festival de Cannes que desejaria reprisar o papel,

aqui certa especulação sobre o grau de desnudamento a que se submetem as duas, não por acaso a desconhecida Howard Dallas aparece para a câmera desnuda e protagoniza uma cena de sexo bem mais gráfica que os estupros algo pudicos do filme anterior.

Olhadas pela semelhança, as personagens dos dois filmes induzem outros questionamentos. A começar pelo nome Grace que remete ao substantivo homônimo relacionado tanto à suavidade no caminhar quanto a um comportamento polido e agradável, passando também pela óbvia referência divina, ainda mais marcada no imaginário cinematográfico americano graças ao abundante say grace, a oração proferida antes das refeições. Mais uma vez, devemos correr o risco da especulação, balizado pela confiança na intencionalidade destacada no cinema de von Trier, e descartar a coincidência entre o nome da personagem e seu comportamento, suas boas intenções e tentativa de agir correto. Também não parece acidental o fato dessa força do “bem” ser constantemente perseguida e explorada, como se ela cumprisse uma função metonímica e deste modo servisse a toda uma reflexão do diretor sobre o tema da exploração e da hospitalidade. Essa, por exemplo, é a interpretação de Bradatan (2009), para ele Grace é uma espécie de entidade divina enviada a Terra para julgar os homens como parte de um jogo cruel do criador, um ente que aparece totalmente indefeso, como um ser humano carente de atenção, estadia ou dinheiro. A carência absoluta de Grace, entretanto, refere-se à carência do próprio ser humano por hospitalidade, ser acolhida significa, em parte, partilhar do pressuposto que o enraizamento na terra é uma forma primordial de nos estabelecermos como ser humanos. Nesta mesma linha, a escolha por fazer a protagonista – aquela personagem destinada a conduzir todo o enredo e uma das fontes principais da identificação dos espectadores – ser tão maltratada não parece ser inocente, agredindo a protagonista somos todos espectadores também um pouco agredidos.

A agressão sofrida por Grace nos filmes conversa com o voyeurismo e o sadismo do espectador e nesse processo dialoga com os critérios de representação visual da violência. O impacto das imagens da violência tem um percurso histórico nas sociedades modernas, como atesta Sontag (2003), e o voyeurismo da fotografia que primeiro espiou a nudez do corpo humano não demorou a mirar as imagens chocantes oferecidas pela guerra. Protegidas por toda a sorte de explicações, especialmente por seu pretenso potencial didático, as imagens de violência foram

abundando-se ao longo do século XX. Difundidas ad nauseam pelos meios de comunicação, embora não sem certos peculiares critérios, as imagens cada vez mais explícitas das marcas da violência no corpo certamente foram, pelos menos um pouco, neutralizadas em relação ao seu poder de chocar. Volta então novamente o questionamento sobre a estratégia adotada nos filmes, ao preferir a violência psicológica, interna e reiterada, von Trier abre um diálogo sobre o poder de atingir o espectador através de representações gráficas.

O choque causado pela estratégia dos filmes de colocar como alvo preferencial da violência – incluindo também a submissão sexual – a branca, rica e americana Grace também deixa entrever alguns critérios midiáticos que balizam a exibição de cenas violentas. O exemplo mais marcante dos pesos e medidas diferentes, não poderia deixar de ser, é o atentado de 11 de setembro, a mordida do real que tomou de assalto os americanos. Sim, repetiram-se muitas e muitas vezes as imagens do choque nas torres (talvez também numa tentativa de irrealizá -las pela exaustão), da fumaça e das cinzas, mas onde estavam os corpos, o sangue, o horror? Foram cuidadosamente escondidos, evitados, afinal, na era da guerra eletrônica, nada mais arcaico que um simples corpo desmembrado. Como bem observa Žižek (2003), a abstração inscrita na ideologia da guerra sem baixas (a mais irônica, mas não a única das coisas sem substâncias que nos são apresentadas) esconde uma situação muito “real” que apenas tenta-se apagar do repertório de imagens midiáticas, a irrealização passa pela apresentação de imagens assépticas e eletrônicas, as mesmas que fascinaram e provocaram Baudrillard a afirmar que a primeira Guerra do Golfo não existiu. Como afirma Sontag (2003) aquilo que os media chamam de mundo é um lugar muito pequeno, geográfica e tematicamente e “o que se julga digno de conhecer a seu respeito deve ser transmitido de forma compacta e enfática.” (p. 21). Obviamente, os corpos de americanos mortos não fazem parte desse mundo, ocupado pelas imagens de terceiro-mundistas em geral e africanos em específico (nesse caso, nem mesmo as imagens de crianças com

membros decepados parece demais65). Essas constatações indicam para algo como

um critério de sadismo incrustado nos imaginários, critério frontalmente atacado por von Trier. A violência representada (apesar de cada vez mais presente e tolerada nas diversas mídias) dói mais quando o focalizado não é o outro, mas “um de nós”, na era do outro sem alteridade, este “mesmo quando não se trata de um inimigo, só é visto como alguém para ser visto, e não como alguém (como nós) que também vê.” (SONTAG, 2003, p. 63). É no nível imaginário, então, que a violência de von Trier mais dói. A protagonista Grace nos conduz como coadjuvantes a uma jornada de confrontação com significações que estavam enraizadas mais ou menos profundamente em nossos imaginários. Reverter as expectativas torna-se um dos modos mais eficazes de trazer à tona aquilo que se ocultava por trás da familiarização produzida pelo entretenimento midiático.