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CAPÍTULO 04: HEGEL E A DIALÉTICA COMO RECUPERAÇÃO DA INTEGRIDADE

4.2. Fichte e o fim da natureza

De acordo com Filho (1980), a busca pela liberdade foi mais do que um interesse teórico de Fichte, foi também uma busca pessoal que direcionou sua vida privada. Desde muito cedo identificou-se com uma frase de Lessing que dizia: “Ser livre não é nada, tornar-se livre, eis o céu”. Desta forma, a liberdade propiciada pela teoria moral de Kant surtiu sobre Fichte um grande efeito. Fichte abraçou a ideia de que somente através da moral racional seria possível alcançar a mais plena liberdade.

Entretanto, como apontamos, o pensamento de Kant trazia consigo a completa falta de esperança quanto a possibilidade de reconciliação com a integridade humana perdida, na medida em que a saga humana em busca da liberdade seria eternamente marcada pela tensão existente entre a razão e a necessidade. Fichte, assim como os outros de sua geração não pôde se contentar com esta eterna separação, de forma que seu objetivo enquanto seguidor de Kant, foi tentar completar o sistema kantiano propondo solucionar suas dualidades. Fichte procurou resolver a duplicidade kantiana eliminando-a a partir da anulação da coisa-em-si do objeto externo, cuja origem seria o próprio sujeito (LUKACS, 1976).

De acordo com Filho (1980), é importante frisar que o sujeito postulado por Fichte não corresponde ao sujeito individual ou, tampouco, a um sujeito cósmico. O sujeito fichteano trata-se de um sujeito universal, assim como em Kant, este sujeito é um sujeito moral e racional. Este sujeito universal seria capaz de abarcar o objeto na medida em que Fichte defendeu que não existiria a coisa-em-si no mundo exterior. O mundo exterior seria apenas condição necessária para que o sujeito pudesse vivenciar o drama moral que o conduziria a liberdade almejada. Portanto, o sujeito em Fichte é ao mesmo tempo sujeito e objeto. Ou seja, a teoria da Egoidade em Fichte traz um Eu que corresponde à uma consciência transcendental que postula um não-Eu que, por sua vez, corresponde a todo o mundo exterior que é posto como elemento necessário da edificação da liberdade.

Como Fichte aceitou a Filosofia Moral de Kant, ele manteve em seu sistema que a tensão existente entre o homem e natureza seriam fundamentais para que se alcançar a liberdade. De acordo com Filho (1980), Fichte diz que o Eu determina o não-Eu através de um esforço constante. Este esforço não pode desaparecer, por isso trata-se de um esforço permanente, caso contrário desapareceria toda a contradição necessária ao drama da liberdade. O Eu só pode ser infinito na medida em que esta contradição e busca de superação do não-Eu permanece.

Esta posição do conflito permanente revela a ligação de Fichte com Kant, que postulou a existência de uma incongruência eterna entre a subjetividade humana e a natureza. Para Fichte, esta sensação de esforço de superação do não-Eu é fundamental para que se crie uma sensação de limite, pois somente o limite pode ser ultrapassado. Esta limitação é o que proporciona ao eu o desenvolvimento da consciência.

Mas, de acordo com Taylor (2014), apesar de Fichte basear-se no sujeito moral kantiano, em Fichte é fundamental que os desejos e as inclinações naturais do ser humano estejam de acordo com os desejos postulados pela liberdade moral como condição para que tanto a liberdade moral quanto a unidade expressiva da natureza sejam alcançadas. Para Fichte, uma vez que o ser humano faz parte de uma ordem mais ampla da natureza é necessário que todos os desejos e inclinações estejam voltados para objetivos espirituais. E este processo de espiritualização deve pressupor a comunhão com a natureza, a fim de que a busca espiritual não implique a ruptura com a natureza.

De acordo com Lukács (1976), Kant não aceitou a filosofia de Fichte como uma continuação ao seu sistema. Para Kant, a filosofia de Fichte tratava-se de uma filosofia completamente diferente da sua, já que ela negava a incognoscibilidade da coisa-em-si e buscava superar esta limitação da filosofia kantiana inserindo problemas de conteúdo na lógica transcendental.

A busca da cognoscibilidade da coisa-em-si é o que acaba levando Fichte para o caminho do total agnosticismo, já que uma vez que o mundo externo é criado pelo Eu nada pode existir fora deste mundo (LUKÁCS, 1976). Para Lukács (1976), o principal problema da filosofia de Fichte é que ao postular um não-Eu que o Eu anseia superar, a resolução deste dilema só poderia se dar a partir da anulação do próprio sujeito, de forma que o pensamento de Fichte conteria um problema lógico que não poderia ser ignorado e não poderia ser aceito.

Em todo caso, apesar da fragilidade da filosofia de Fichte, ela representou um passo importante para o desenvolvimento da dialética que foi imprescindível para Schelling e posteriormente para Hegel. Se em Kant o movimento dialético estaria ligado à uma força que é exterior à subjetividade, em Fichte ela aparece como uma relação de contradições dentro da unidade.

Desde seu período em Frankfurt, Hegel já vinha tecendo críticas aos aspectos morais e ao conjunto sistemático da teoria fichteana (LUKÁCS, 1976). Entretanto, Lukács (1976) nos diz que ainda que Hegel apontasse problemas na teoria de Fichte, ele sempre reconheceu que esta teoria apresentava avanços incontestáveis ao pensamento de sua época, precisamente por sua dialética. Nas obras Lógica e Enciclopédia, Hegel critica a pretensão do

Eu fichteano de dissolver o dualismo kantiano entre a consciência e a coisa em si, mesmo não sendo capaz de cumprir com esta pretensão. Para Hegel, a unidade entre sujeito e objeto, entre o Eu e a natureza no pensamento do Fichte acaba resultado em uma rígida duplicidade (LUKÁCS, 1976).