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Três décadas após ter sido consagrado rei de Portugal e do Algarve, nas cortes de Coimbra de 6 de Abril de 1385, D. João I (1357-1433) acrescentou ao seu título o de “Senhor de Ceuta”.24 Os documentos do século XV que abordam a tomada de Ceuta (1415), embora com enfoques diferentes, atribuem a articulação e condução do feito ao rei D. João I, ora exaltando as qualidades do monarca, ora apenas descrevendo o evento. Além disso, a tomada de Ceuta tem sido considerada o último grande ato público do rei D. João I em vida e o ato que teria fechado com prestígio seu reinado.25 Neste percurso pelas formas como um certo passado foi sendo fixado, duas memórias principais, escritas no século XV, podem ser tomadas como as sínteses fundadoras do que veio a se configurar como os parâmetros essenciais do evento conquistador: a Crónica da Tomada de Ceuta, de Gomes Eanes de Zurara (iniciada entre 1449 e 1450) e a sua versão latina, o Livro da Guerra de Ceuta, de Mateus de Pisano (de 1460). A essas duas narrativas vem se juntar outras em que, porém, o ataque português a Marrocos encontra-se diluído entre outros feitos e temáticas, como é o caso do Livro de Arautos (de 1416 ) e da Crónica do Condestável Nuno Álvares Pereira (escrita em data não posterior a 1440)26, ambos anônimos; da Crónica de Juan II de Castilla,

23 Cf. DANTO, Arthur C. Historia y narración: Ensayos de filosofia analítica de la historia. Introducción de Fina Birulés. Barcelona-Buenos Aires-México: Ediciones Paidós, 1989, p. 24-25.

24 Data de 08 de Fevereiro de 1416 o primeiro documento conhecido com a nova titulação, ou seja, apenas 6 meses após a Tomada de Ceuta de 21 de Agosto de 1415. Ver: BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond; BRAGA, Paulo Drumond. Ceuta portuguesa (1415-1656). Ceuta: Instituto de Estudios Ceutíes, 1998, p. 23. 25 Cf. DUARTE, Luís Miguel. D. Duarte: Riquem por um rei triste. Lisboa: Temas e Debates, 2007, p. 55. 26

AMADO, Teresa. Crónica do Condestabre. In: LANCIANI, Giulia; TAVANI, Giuseppe. Dicionário da

do judeu converso Álvar Garcia de Santa Maria (provavelmente composta em 1419)27 e das

Consolações de Catarina de Neufville: Senhora de Fresne, elaboradas entre 1457 e 1459,28

pelo francês Antoine de La Salle, única testemunha ocular conhecida que legou-nos um escrito sobre o cerco.

No ano de 1415, D. João I era um homem de idade madura e convicto de que sua honra já havia sido atestada anteriormente, como na vitória contra os castelhanos na batalha de Aljubarrota, em 1385 – batalha celebrizada como consolidadora da independência portuguesa. Dessa maneira, os cronistas que abordaram a tomada de Ceuta não justificam a participação do mestre de Avis para adquirir honra cavaleiresca. Zurara aponta que a grande vontade do monarca, ao atacar os mouros da Mauritânia, era de redimir-se perante Deus, por ter guerreado contra cristãos: “[...] todo o seu principal movimento foi por serviço de Deus e grande desejo que tinha de emendar alguma coisa, se contra a vontade de Deus fizera, no tempo da guerra passada”.29 A melhor forma de redenção, segundo Zurara, era “[...] lavando suas mãos no sangue dos infiéis”,30 discurso que coadunava com a ideia de que à margem da Cristandade, dos herdeiros da lei romana, estavam os desconhecedores de Cristo, absorvidos pelo pecado e, portanto, inimigos. As circunstâncias faziam com que estes fossem os sarracenos, que, segundo os discursos dos cristãos ibéricos, usurparam as terras de seus ancestrais e, portanto, mereciam que se lhes fizesse guerra justa.31 Álvaro Pais (1275? – 1349), em seu Espelho de Reis, tratado de pedagogia política, escrito entre 1341 e 1344, cujo gênero era bastante comum na Idade Média, por exemplo, descreve os inimigos mouros de forma bastante negativa: “soberbos, vândalos, filhos da carne [...] maligníssimos e sagacíssimos sarracenos”32 e considera que combatê-los era justo e honrado, pois os mouros perturbavam a paz da Igreja.33 Dito isso, é preciso ressaltar que, embora D. João I não seja abordado nas crônicas de Zurara e Pisano como um rei em busca de honra, as descrições do monarca são compostas a partir de elementos típicos da honra cavaleiresca dos tempos medievais, que consistia na proteção das igrejas, dos fracos e dos desarmados no interior da

27 CARRIAZO, Juan de Mata. La conquista de Ceuta em la "Crónica de Juan II de Castilla" de Alvar Garcia de Santa Maria, Separata dos "Anais", série II, vol. 27, Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1982, pp. 281- 295.

28 Cf. BARCELO, José Luís Gómez. Tarifa en las crónicas lusas referidas a la costa africana del Estrecho. Al

Qantir, nº 11, 2011, pp. 136-163.

29 ZURARA, Gomes Eanes de. Crónica da Tomada de Ceuta, p. 9. 30 Ibid., p. 9-10.

31 ANTUNES, Luísa Marinho. Espelho dos reis e cartas. In: AMADO, Teresa. (Org.) A guerra até 1450. Lisboa: Quimera, 1994, p. 198.

32 PAIS, ÁLVARO. Espelho de Reis. Livro I. Trad. Miguel Pinto de Meneses. Lisboa: Centro de Estudos de Psicologia e de História da Filosofia, vol I, 1955, p. 7-9.

Cristandade, bem como na luta contra os infiéis, no exterior.34

O rei D. João I é definido, assim, por Zurara, como um “grandioso homem”,35 que teria alcançado a sensatez proveniente da idade. Se a Crónica da Tomada de Ceuta ou

Terceira Parte da Crónica de D. João I for analisada em conjunto com a Primeira e a

Segunda Parte da Crónica de D. João I, compostas por Fernão Lopes, a trajetória do

monarca, de descendência bastarda, cumpre um papel que vai da sua ascensão e de sua aprovação popular, passando pela afirmação do rei e de Portugal nas guerras com Castela, até chegar ao estabelecimento do reino através de acordos de paz com o reino vizinho, Castela, na

Crónica da Tomada de Ceuta. Em outras palavras, de rei guerreiro em Fernão Lopes, D. João

I passa a ser um rei conciliador em Zurara, sem, contudo, perder a bravura cavaleiresca. Preponderam, desse modo, nas narrativas de Zurara e de Pisano, as descrições do rei como um homem prudente, que consulta o conselho e analisa várias opiniões antes de tomar decisões importantes. A consulta ao conselho era, para D. Duarte, uma das oito partes da prudência, virtude que, como ensinavam pensadores de reconhecida capacidade de síntese, como Tomás de Aquino,36 cabia aos governantes: “[...] convém a todo senhor que benignamente ouça os conselhos dos sabedores e dos barões, dos fidalgos e dos antigos e daqueles que amam o rei e o senhorio”.37 Na verdade, os elementos destacados no conselho eram topoi da composição dos reis sábios e justos.38 Assim, o rei aparece, em várias passagens, das crônicas de Zurara e Pisano, consultando seus conselheiros sobre pontos como: a melhor forma de armar cavaleiros os infantes D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique, a justeza em tomar Ceuta, a arrecadação de fundos para a guerra, as formas de como atacar a praça estrangeira e, por fim os meios para manter a cidade sob seu poder.39

Embora os textos de Zurara e Pisano dediquem mais espaço à narrativa da preparação para a guerra em Ceuta do que à batalha em si, nos momentos em que o ataque a Ceuta é abordado, D. João I aparece como um experiente cavaleiro, que comanda sabiamente as ações dos cristãos e discursa aos seus para encorajá-los e para ressaltar as honras decorrentes da guerra. Zurara conta que o rei não participou diretamente do combate, pois, ao entrar em uma galé, “[...] se feriu em uma perna”, mas, mesmo ferido, ele “com uma cota e com um barrete na cabeça e sua espada cinta, andou por todos aqueles navios, dando aviso a cada um da

34 Ver: DUBY, Georges. A sociedade cavaleiresca. São Paulo: Martins Fontes, 1989, passim. 35ZURARA, Gomes Eanes de. Crónica da Tomada de Ceuta, p. 9-10.

36 Cf. AQUINO, Santo Tomás de. Suma de Teologia, II, parte I-II. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1989, p. 439.

37DOM DUARTE. Leal Conselheiro, p. 209-210.

38 Cf. COELHO, Maria Helena da Cruz. D. João I: o que re-colheu Boa Memória, p.229.

39 Para saber mais sobre o papel dos reis na articulação das guerrras ver: DUBY, Georges. O Domingo de

maneira como deveriam agir”.40 O monarca, apesar do ferimento, portanto, executa seu papel de cavaleiro perfeito, que se preocupa, aconselha e comanda os seus.41

Mateus de Pisano, em sua versão mais resumida do ataque a Ceuta, não justifica a ausência de D. João I no combate frontal por conta de um ferimento, mas constrói a imagem de um rei sereno e de um comandante eficaz que, de sua galé, toma as decisões estratégicas mais importantes para obter a vitória. D. João I aparece na pena de Pisano como um rei sábio e experiente na arte da guerra e que discursa aos principais nobres do reino para incentivar o ataque, argumentando acerca da glória decorrente da guerra contra o infiel no território dele, como um serviço prestado a Deus:

É, pois, bastante que conosco mesmo considereis que não é nas lutas por nós até aqui sustentadas em defesa de nossos domínios que está nossa glória, mas na tomada desta cidade, sobre a qual resolvemos vir fazer serviço de Deus [...]. Se não se tratasse do serviço de Deus, nem eu lançaria à conta de glória para vós a tomada de tal cidade; que bem sei vamos combater gente imbele e sem nome [...].42

Em suma, para esses cronistas de meados do século XV, D. João I é o verdadeiro obreiro, apesar de não combatente na tomada de Ceuta, pois é um obreiro predestinado: “[...] el-Rei nosso senhor é um daqueles obreiros, que o Senhor convida no Evangelho, ajuntou aqui este seu povo para fazer seu santo serviço”.43 Tal imagem messiânica de D. João I é uma construção que começou a ser fabricada logo a após sua ascensão ao trono e está dispersa em escritos de várias naturezas, como crônicas, tratados e cantigas. Essa afirmação de Zurara remete diretamente ao cronista Fernão Lopes que, sem dúvida, possui um papel fundamental nessa construção, pois, a partir da função de cronista mor do reino e de seu acesso privilegiado a uma série de documentos, foi ele quem elaborou, primeiramente em crônica, a trajetória do monarca através da teoria que reporta à escolha de D. João pela fonte que emana todo o poder: Deus.44

D. João I, em Consolações dirigidas a Catharina de Neufville, um dos textos que participou na arquitetura da tomada como evento fundador, é, a propósito, descrito como um rei com muitos atributos. Nesse texto composto na segunda metade do século XV por Antonie de la Salle, escritor de algum renome em seu tempo, a destinatária é a Senhora de Fresne, a

40ZURARA, Gomes Eanes de. Crónica da Tomada de Ceuta, p. 195.

41 Para saber mais das posturas consideradas adequadar ao cavaleiro ideial, ver: BLOCH, MARC. A Sociedade

Feudal. Lisboa: Edições 70, 1982. p. 326.

42PISANO, Mateus de. Livro da Guerra de Ceuta. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1915, 43ZURARA, Gomes Eanes de. Op. cit., p. 199-200..

quem são apresentados os exemplos de duas mães que perderam seus filhos em batalhas mas se conformaram com tal destino, pois a morte deles teria sido em função de uma causa maior. La Salle apela para um caso ocorrido na Bretanha e outro em Portugal, justamente durante a tomada de Ceuta e, quando introduz o caso português, mesmo que seu objetivo seja moralizador e consolador, não deixa de destacar quem moveu a ação. Conta que, no ano de 1415, “[...] o muito excelente príncipe D. João, o Bom, primeiro deste nome, Rei de Portugal […] foi, pela graça de Nosso Senhor, de Nossa Senhora e dos senhores São Thiago e São Jorge, chamado a empreender a santa e nobre conquista da cidade de Ceuta, nas partes das África e dos Sarracenos”.45 Do mesmo modo que as crônicas de Zurara e Pisano, La Salle aponta como motivador da empreitada de Ceuta o serviço religioso prestado a Deus na guerra contra o infiel, reafirmando assim a necessidade de os cristãos combaterem o infiel e aditando mais uma peça no discurso, bastante difundido entre os cristãos da Península Ibérica, de que os mouros eram invasores. Foi com essa finalidade que o francês e outros recuperaram e construíram narrativas para justificar e legitimar o combate ao infiel. Entretanto, quando se comparam essas narrativas de meados e segunda metade do século XV com os textos escritos poucos anos após a tomada de Ceuta, principalmente com o texto castelhano do judeu converso Álvar Garcia de Santa Maria, algumas considerações em relação à figura do monarca merecem ser evidenciadas.

Até onde se tem notícia, o primeiro relato que menciona a tomada de Ceuta é o anônimo Livro de Arautos, um guia prático da descrição dos principais territórios de que os arautos deveriam ter informações e que, provavelmente, foi escrito por alguém que conhecia bem a função e as necessidades dos seus destinatários. Na descrição do reino de Portugal e do Algarve, o escritor anônimo apresenta detalhadamente as regiões pertencentes a esses reinos e menciona que “[...] o atual príncipe destes reinos é o sereníssimo e invictíssimo Senhor D. João, rei de Portugal e do Algarve. É o primeiro destes reinos com o nome de João e é o décimo desde que o reino ficou a pertencer aos cristãos. Este rei D. João é […] chamado de Boa Memória”.46 O grande mérito desse monarca teria sido a recuperação de territórios ocupados pelos castelhanos, pois o rei “[...] libertou com assinalável êxito e milagrosamente, pela força das armas, quase três quartas partes dos seus reinos ocupados antes do seu reinado pelos seus vizinhos”.47 Após assinar a paz com Castela, em 1411, o rei “[...] armou uma

45 LA SALLE, Antoine de. Consolações dirigidas a Catharina de Neufville, Senhora de Fresne. General Carlos Du Bocage (Ed.). Lisboa/Coimbra: Academia de Ciências/Imprensa da Universidade, 1933, p. 23.

46LIVRO DE ARAUTOS. Lisboa: Academia portuguesa de História, 1977, p. 262. 47 Ibid., p. 262

destemida e poderosíssima frota para atacar Ceuta”,48 com o intuito de defender o reino dos ataques de infiéis provenientes da África. Para o cronista anônimo, tomar Ceuta seria uma forma de revidar esses ataques de forma estratégica, pois a cidade era considerada a principal entrada para as demais regiões africanas. Os argumentos do escritor anônimo para ressaltar as qualidades do rei se relacionam, nesse sentido, muito mais com a guerra contra Castela do que com a tomada de Ceuta, que não aparece como um feito cavaleiresco nem como um serviço prestado a Deus, mas sim como uma necessidade estratégica de proteção ao reino português e do Algarve. O mesmo é perceptível na Crónica do Condestável Nuno Alvares Pereira, na qual a relação do monarca com a tomada de Ceuta é de estrategista e comandante. O cronista não tem a preocupação de exaltar as qualidades do monarca em relação à conquista da praça marroquina, assim, apenas menciona que “[...] El rei, por serviço de Deus e seu, ordenou de ir tomar a cidade de Ceuta”.49 É, contudo, na Crónica de Juan II de Castilla, de Álvar Garcia de Santa Maria, que o feito é narrado sem a menor intenção de enaltecer e adjetivar os “obreiros” portugueses. O judeu converso descreve apenas que “[...] o rei de Portugal havia mais de dois anos que tinha se apoderado de uma grande armada”,50 e detém-se em contar sobre a armada de Ceuta, focando o grande dispêndio financeiro causado aos homens do reino português para financiar o ataque. Na crônica castelhana, como se nota, não era interessante ressaltar as glórias de um adversário e inimigo de guerra de longa data, ou melhor, o valor atribuído à tomada de Ceuta não podia ser em Castela nem de longe semelhante ao alcançado em Portugal.

Da mesma forma, no que diz respeito à participação dos infantes portugueses – D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique – na tomada de Ceuta, o único texto, dos acima citados, que não chega sequer a mencioná-la é o de Álvar Garcia de Santa Maria; o qual limita-se a apontar D. João I como o mentor e o executor da ação. Já o Livro de Arautos relata que D. João I armou uma poderosa frota para atacar a cidade marroquina com o auxílio de “[...] seus quatro filhos mais velhos”,51 ou seja, os três legítimos supracitados, mais o bastardo D. Afonso, conde de Barcelos. Além de não mencionar o nome dos filhos de D. João I, o Livro

de Arautos não faz qualquer distinção entre eles no que diz respeito à maior ou menor

participação no ataque, nem apresenta predicados para eles. Na Crónica do Condestável Nuno

Alvares Pereira, aparece a indicação de que o rei D. João I tomou a cidade de Ceuta

48 LIVRO DE ARAUTOS, p. 262

49D. NUNO ÁLVARES PEREIDA. CRÓNICA DO CONDESTÁVEL DE PORTUGAL. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 2001. p. 234.

50 CARRIAZO, Juan de Mata. La conquista de Ceuta em la "Crónica de Juan II de Castilla" de Alvar Garcia de Santa Maria, Separata dos "Anais", série II, vol. 27, Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1982. p. 284. 51 LIVRO DE ARAUTOS, p. 262.

acompanhado pelo “[...] infante Duarte, seu primogênito, o infante D. Pedro e o infante D. Henrique e o conde de Barcelos, seu filho bastardo”,52 já os infantes D. João e D. Fernando “[...] eram tão pequenos que não foram lá”.53 Os dois infantes destacados pelo cronista são: o Infante D. Duarte, futuro rei, e o conde de Barcelos, por não ser filho legítimo do monarca. É notório que os filhos de D. João I são mencionados em ordem hierárquica de nascimento e legitimidade. Nessa crônica, portanto, não há a preocupação em descrever suas virtudes, mas apenas privilegiar o nascimento. Era uma tópica recorrente do período descrever os filhos pela ordem de nascimento e privilégio – filhos legítimos e bastardos –, pois, para os medievais, como expõe uma das mais completas compilações de direito do século XV, as Ordenações

Afonsinas, Deus “[...] não quis que todas [as criaturas] fossem iguais”,54 então ordenou cada

uma em sua virtude separadas, em grau hierárquico.55

A situação é completamente outra quando se observam as crônicas de meados do século XV. Zurara, seguido por Pisano, é o grande responsável por destacar a participação dos filhos de D. João I no ataque a Ceuta, com claro realce para o infante D. Henrique. Alguns historiadores têm considerado até mesmo que a Crónica da Tomada de Ceuta seria uma importante biografia dos primeiros anos do infante D. Henrique como figura pública, sendo considerada até mesmo um panegírico do infante.56 O envolvimento dos infantes no feito aparece na narrativa de Zurara como decorrente da vontade do próprio rei D. João I, que sonhava “[...] fazer seus filhos cavaleiros o mais honradamente que se bem pudesse fazer”.57 Em um primeiro momento, segundo o cronista, D. João I pensou em “[...] ordenar umas festas reais que durassem todo um ano”, nas quais haveria “[...] notáveis justas e grandes torneios […] danças e outros jogos”58 e, no final delas, seus filhos seriam armados cavaleiros. Entretanto, festas e torneios acabaram por não se mostrar à altura do sonho, pois a “[...] memória as prescreve com pequeno louvor”, como teria argumentado aos infantes o Vedor da Fazenda, João Afonso de Alenquer. Receber a ordem de cavalaria em festas palacianas era coisa de burgueses ricos que mediam a honra pela fartura de seus gastos e não de príncipes bem nascidos.59 Desse modo, filhar a cidade de Ceuta foi proposto pelo Vedor – que tomara conhecimento dessa “grande e nobre” cidade por informações de um criado que lá mandara

52 D. NUNO ÁLVARES PEREIDA. CRÓNICA DO CONDESTÁVEL DE PORTUGAL, p. 234. 53Ibid., p. 234.

54 ORDENAÇÕES AFONSINAS, 5 vols. Reprodução “fac-simile” da edição da Real Imprensa da Universidade de Coimbra, 1792. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Livro II, til. XL, p. 293.

55 Ibid., p. 293.

56Cf. RUSSEL, Peter. Henrique, O Navegador. Lisboa: Livros Horizonte, 2000. p. 49 57ZURARA, Gomes Eanes de. Crónica da Tomada de Ceuta, p. 55.

58 Ibid., p. 55.

para resgatar cativos –60 e pelos Infantes a D. João I como uma alternativa às festas para o recebimento das honras cavalheirescas. O argumento central apresentado era de que um ataque aos infiéis no próprio território inimigo era verdadeiramente um atestado da coragem e bravura dos infantes. D. João I, após consultar prudentemente seus conselheiros, como convinha aos reis exemplares lembrados nos escritos da época, acabou por acatar a proposta.

Apesar de os quatro filhos mais velhos de D. João I serem armados cavaleiros em Ceuta, a crônica de Zurara ressalta em vários momentos a participação excepcional do infante D. Henrique. Nota-se que, mesmo antes de narrar o ritual de entrada na cavalaria, a cerimônia de adubamento, descrito somente no final da crônica quando a guerra já havia sido ganha, o