• Nenhum resultado encontrado

Ao recontar as histórias dos reis de Portugal na década de 30 do século XVI, o erudito eborense Cristóvão de Acenheiro, em suas Crónicas dos Senhores Reis de Portugal, foi um dos primeiros a tratar o rei D. Afonso V pela alcunha Africano, denominando-o como “Africano rei”.208 Tal denominação foi inspirada no exemplo do general e estadista romano Públio Cornélio Cipião, conquistador de Cartago e vencedor de Aníbal, feito que lhe rendeu o codinome Africano. Devido às conquistas afonsinas das praças marroquinas de Alcácer Ceguer (1458), Arzila (1471) e Tânger (1471), para Acenheiro, o monarca português também “[...] poderia ser dito Africano, como o bom Cipião”.209 Deve-se notar que a associação do rei D. Afonso V com Cipião e por consequência a alcunha Africano, foi realizada pelo menos meio século depois das conquistas afonsinas no norte da África. Nesse momento, a memória do monarca aparece claramente vinculada à preferência régia em guerrear cavaleirescamente em Marrocos ao invés de incentivar a exploração da costa da África para além do Cabo do Bojador, tuteladas primeiramente pelo infante D. Henrique. O escritor renascentista João de Barros (1496-1570), considerado o Tito Lívio português, por exemplo, relata, no segundo livro da Primeira Década, publicada em 1552, que o rei se ocupou com idas à África e a Castela, o que “[...] causou não levar o fio deste descobrimento tão continuado como no tempo do infante D. Henrique foi”.210 Dito de outro modo, o reinado de D. Afonso V é identificado em meados século XVI, e por grande parte da historiografia posterior, que se debruçou sobre o tema da expansão portuguesa quatrocentista,211 como um período minguado

208Cf. ACENHEIRO, Cristovão Rodrigues. Chronicas dos senhores reis de Portugal. In: Collecção de Ineditos de

Historia Portugueza, Tomo V, Lisboa: Academia Real das Ciências de Lisboa, 1825, p. 265. 209 Cf. Ibid., p. 284.

210 Cf. BARROS, João de. Ásia. Primeira Década. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1988, p.63-64.

211 Vários estudiosos afirmaram que se verificou no reinado afonsino, após a morte do infante D. Henrique, em 1460, um abrandamento das viagens de exploração. José Mattoso chega mesmo a afirmar que se se fez alguma coisa “entre 1448 e 1475, nomeadamente em matéria de navegação, deveu-se à iniciativa de particulares e

e apagado da expansão exploratória da costa africana em relação às descobertas henriquinas dos anos anteriores, graças, prioritariamente, às conquistas cavaleirescas e cruzadísticas do rei em praças marroquinas. A imagem cavaleiresca do rei D. Afonso V começa a ser construída ainda contemporaneamente ao monarca, no entanto, no Quatrocentos, não há uma cobrança sobre as atividades do monarca em relação às explorações abaixo do Cabo do Bojador, apenas a intenção, como era próprio daquele tempo, em glorificar a imagem do rei e de seu reinado. Deve-se aqui, portanto, questionar quais valores do reinado de D. Afonso V interessavam ser ressaltados pelos escritos do final do século XV e início do XVI e que imagens do rei e da casa real deveriam ficar para a posteridade em relação à política portuguesa em África.

Do mesmo modo que nas armadas de Ceuta e de Tânger, nos ataques portugueses da segunda metade do século XV a Marrocos, o rei vigente, neste caso, D. Afonso V, é protagonista na decisão, na mobilização e na execução da guerra, recaindo sobre sua imagem as glórias das vitórias e as humilhações das derrotas. Gomes Eanes de Zurara, compositor de várias crônicas encomendadas por este monarca, considerava-o “[...] muito alto e muito excelente príncipe e muito poderoso senhor”.212 Vasco de Lucena proferiu diante do Papa Inocêncio VIII, em dezembro de 1485, em nome de D. João II, uma oração de obediência exaltando que D. Afonso V “[...] três vezes em épocas diversas, passou à África com número e bem provida armada; por três vezes desembarcou naquele litoral incessível e hostil o seu bem aprestado exército [e] tomou pela força das armas, três cidades quase inexpugnáveis”.213 O siciliano Cataldo Parísio Sículo, que chegou à corte portuguesa em 1485, escreveu em seu poema Arcitinge acerca “[...] dos combates famosos que o invictíssimo rei Afonso travou contra os povos infiéis e os africanos ferozes”.214 Rui de Pina, cronista-mor do reino a partir de 1497, mas escritor de crônicas oficiais desde pelo menos 1490 e autor da principal crônica mercadores, porque as navegações davam lucros". MATTOSO, José. História de Portugal, A Monarquia Feudal

(1096-1480), vol. II, p. 506.

O historiador Vitorino Magalhães Godinho considerou que: “com D. Afonso V é o período áureo dos feitos militares além-estreito e o período morto das descobertas. As expedições marítimas só se prosseguem verdadeiramente quando em 1469 é concedido o monopólio do resgate da Guiné ao rico comerciante de Lisboa, Fernão Gomes: a realeza deixara aos mercadores a tarefa de devassar os mares; e durante seis anos continuam os navegadores, a cargo desse burguês, a exploração metódica da costa africana. Em 1475, expira o contrato, e o príncipe D. João encarrega-se dos negócios ultramarinos; quando D. João II sobe ao trono entramos no apogeu da política comercial e marítima”. Cf. VITORINO, Magalhães Godinho. A expansão Quatrocentista, p. 198. Uma das poucas vozes que se levantam contra esta opinião, dentro da historiografia portuguesa, é a de João Paulo Costa ao afirmar que foi no reinado de D. Afonso V que pela primeira vez a coroa intervém directamente em todas as linhas da expansão, concentrando nas suas mãos os rumos expansionistas. Cf. COSTA, João Paulo.

Henrique, o Infante, p. 342. 212

ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do Descobrimento e Conquista de Guiné, p. 210.

213 Cf. RAMALHO, Américo Costa. Latim Renascentista em Portugal (Antologia). Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanisticos da Universidade de Coimbra/Instituto Nacional de Investigação Científica, 1985. p. 79. 214Cf. Ibid., p. 79.

sobre Afonso V,215 descreve que o monarca foi “[...] sempre zelador de empreender coisas árduas e prossegui-las por armas como cavaleiro”.216

Somava-se à ideia de cavaleiro vitorioso, a imagem do monarca como propagador da fé cristã, duas faces que, no período, compuseram as bases da afirmação do poder régio no medievo. Por exemplo, Vasco de Lucena também afirmou em Roma que “[...] o glorioso rei D. Afonso não se limitou a honrar a sacratíssima religião cristã dentro das fronteiras que lhe foram legadas pelos seus maiores, mas em novas províncias […] ele entregou ao nome cristão, à Igreja Romana e a vós também, Santíssimo Padre, e a vossos sucessores”.217 Zurara anteriormente glorificara, entre 1458 e 1460, D. Afonso V pela expansão da religião em territórios mouros conquistados: “[...] assim nesta cidade como em Alcácer, desde que o rei D. Afonso filhou aos mouros, manifestas foram as maravilhas que fez o senhor Deus pelo seu povo cristão”.218 A guerra em Marrocos como um serviço prestado a Deus ainda se mostra presente no início do século XVI, pelo que se percebe na descrição do virtuoso rei D. Afonso V pelo cosmógrafo Duarte Pacheco Pereira, por volta de 1505, em que surge como aquele que,

[...] por serviço de Deus, passou, em pessoa, além mar, em África, com grande frota e gente, onde, por força de armas, tomou aos Mouros a vila de Alcácer Ceguer, no ano de Nosso Senhor de 1458, em dezenove dias do mês de Outubro; e depois, no ano de 1471, em vinte e quatro do mês de Agosto, tomou aos mesmos mouros, por força de armas a vila de Arzila, na qual grande mortandade de Mouros foi feita; e com este medo todos os moradores da muito antiga e forte cidade de Tânger fugiram e a deixaram só; e este excelente príncipe a mandou tomar e povoar.219

A figura do rei executor pessoal da guerra e movido pela vontade de servir a Deus no combate contra os inimigos da fé, tal como nos casos de Ceuta e Tânger, é bastante forte nas narrativas cronísticas oficiais do final do século XV e início do século XVI, visto que a afirmação das monarquias ibéricas medievais esteve centrada na figura régia como defensora do reino na guerra contra mouros e cristãos por questões territoriais e fronteiriças.220 Rui de Pina, desse modo, narrou a decisão afonsina de atacar Alcácer Ceguer a partir de uma

215A obra de Rui de Pina é constituída por um conjunto de Crónicas dos reis da dinastia de Avis – Crónicas de D. Duarte, D. Afonso e D. João II (as duas últimas estavam já prontas em 1504) – e por um outro conjunto de Crónicas dos reis da primeira dinastia, à exceção de D. Afonso Henriques – Crónicas de Sancho I, D. Afonso II, Sancho II, D. Afonso III, D. Dinis e D. Afonso IV. Cf. LANCIANI, Giulia; TAVANI, Giuseppe. Dicionário da

Literatura Medieval Galega e Portuguesa, p. 597-598.

216Cf. PINA, Rui de. Chronica do sernhor rey D. Afonso V. In: ______: Crônicas, p. 881. 217RAMALHO, Américo Costa. Latim Renascentista em Portugal (Antologia), p. 23-25. 218ZURARA, Gomes Eanes de. Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, p. 534. 219 PEREIRA, Duarte Pacheco. Esmeraldo de Situ Orbis, p. 124.

cruzada, proposta pelo Sumo Pontífice Calisto III, em 1455, contra os turcos otomanos, que não se realizou.221 Pina relatou os preparativos empreendidos pelo rei, que por “[...] sua real condição era para os honrosos feitos inclinado” e “com todas as pessoas principais do reino aceitou a dita cruzada”,222 na qual o rei se ofereceu para “servir com os ditos doze mil homens por um ano à sua custa […] para o que tinha de ajuda muitas armas que comprara e navios que mandara fazer”.223 Além disso, em razão do “[...] grande alvoroço que o rei tinha por esta santa viagem, mandou novamente lavrar ouro fino sabido em toda perfeição, a moeda dos cruzados”.224 Duarte Pacheco Pereira, de maneira bastante semelhante a Rui de Pina, fala da dedicação do rei Afonso V acerca da proposta de cruzada contra os otomanos: “[...] este Sereníssimo Rei D. Afonso foi o primeiro que nestes Reinos a moeda dos cruzados de ouro fino (para pagar o soldo desta santa guerra) mandou fazer”.225 Tanto Rui de Pina quanto Duarte Pacheco Pereira consideram a decisão de atacar Marrocos como uma alternativa à expectativa frustrada de cruzada contra os turcos, devido à morte de Calisto III e a atitude de seu sucessor Pio II, que não contrariou o apelo à cruzada lançado por seu antecessor, mas também não se esforçou para realizá-la e devido ao pouco empenho dos demais reis cristãos no empreendimento. Sem dúvida, essas explicações por parte dos escritores remetem à necessidade de justificar a guerra, que devia apresentar propósitos justos, como ensinara os padres da Igreja, dentre eles Santo Agostinho.

D. Afonso V, cumprindo o papel de monarca exemplar, consultou e seguiu seus conselheiros, segundo Rui de Pina, e decidiu atacar alguma praça marroquina, a princípio Tânger.O Infante D. Henrique, por exemplo, recomendou ao rei que fizesse guerra contra os infiéis, o que era dever de qualquer bom cristão, devendo D. Afonso V combater “[...] em qualquer parte onde entendesse fazer fruto”.226 Por conta dos ataques de corsários franceses em navios portugueses próximos a Ceuta e um suposto cerco sendo preparado pelo rei de Fez contra essa praça, o rei foi aconselhado por D. Sancho de Noronha a atacar Alcácer Ceguer (em árabe Ksar-es-Seghir, “pequeno castelo”)227, praça mais próxima a Ceuta. A obediência do rei ante as decisões dos conselheiros régios também é descrita no ataque vitorioso de Arzila, anos mais tarde. O rei “[...] tivera muitos conselhos”, depois das tentativas frustradas de conquistar Tânger, entre 1463 e 1464, para abandonar a ideia de tomar tal praça, pois os

221 GOMES, Saul António. D. Afonso V: O Africano. Lisboa: Círculo de Leitoras, 2006, 178. 222PINA, Rui de. Chronica do sernhor rey D. Afonso V. In: ______: Crônicas, p. 772. 223 Ibid., p. 772.

224 Ibid., p. 773.

225 PEREIRA, Duarte Pacheco. Esmeraldo de Situ Orbis, p. 124.

226 Monumenta Henricina, XIII. Doc. 69. Comissão Executiva das comemorações do V Centenário do Infante D. Henrique. 1967. pp. 116-117

custos financeiros de uma empresa como essa eram demasiados altos para o reino.O rei então, segundo Pina, resolveu preparar uma armada para “[...] correr primeiro o campo de Arzila”228 e, para isso, angariou fundos financeiros com mercadores estrangeiros, flamengos e ingleses, e armazenou provisões de carne, peixe e biscoito para trinta mil homens.229 Já em Lagos, com a armada preparada, o rei ouviu missa e, em uma encenação bastante parecida com a partida para Ceuta descrita por Zurara,230 discursou aos seus “[...] palavras cheias de devoção e grandeza, esforço e perfeita eloquência, e com cautelas e fundamentos de bom e prudente guerreiro declarou sua ida sobre a Vila d'Alcácer, louvando e agradecendo a todos com muita humanidade, a diligência e o amor, com o que tão honradamente vinham servir”.231

Nos ataques de Alcácer Ceguer e Arzila, também está presente, como em Ceuta e Tânger, a figura do jovem nobre que desejava obter honra cavaleiresca em feitos de guerra que trouxessem visibilidade. Na armada de Alcácer Ceguer, esta figura é representada pelo infante D. Fernando (1433-1470), irmão mais novo de D. Afonso V e herdeiro do infante D. Henrique, o Navegador. Rui de Pina descreve que o infante D. Fernando, "[...] com desejo de honra e outros respeitos e obrigações que se mostrasse ter para passar a África", pediu ao rei "[...] para isso licença".232 Nessa armada, também é destacada a presença do infante D. Henrique, em seu último ataque ao Marrocos. Nas palavras de Pina, tal infante era naquele ofício, a guerra aos mouros, velho artificial.233 Já em Arzila, a figura do príncipe herdeiro, futuro D. João II, então com desesseis anos, é bastante destacada por Pina. Igualmente, Garcia de Resende em sua Crónica de D. João II, de 1530, conta que o "[...] príncipe pediu tão apertadamente ao rei que o levasse consigo, que não lhe podia negar",234 mesmo o rei tendo medo por D. João ser seu único filho varão. O cronista então glorifica a participação do

Príncipe Perfeito na guerra, na qual "[...] o principe fez tão valentemente e como tão

esforçado e ardido cavaleiro, que de todos foi grandemente louvado". Na compilação de Valentim Fernandes, de 1507, o fato de o principe herdeiro ter sido armado cavaleiro em Arzila também aparece ressaltado: "[...] ano de 1471, dia de São Bartolomeu, o rei D. Afonso o quinto ganhou esta cidade por força das armas e aqui armou seu filho príncipe D. João cavaleiro".235 Já no que diz respeito à participação dos monarcas nas guerras, traço importante

228 PINA, Rui de. Chronica do sernhor rey D. Afonso V. In: ______: Crônicas, p. 816. 229 Cf. Gomes, Saul António. D. Afonso V: O Africano, p. 192.

230 Cf. Ibid., p. 180

231 PINA, Rui de. Chronica do sernhor rey D. Afonso V. In: ______: Crônicas, p. 775. 232 Ibid., p.796.

233 Ibid., p. 777.

234RESENDE, Garcia de. Crónica de D. João II e miscelânea. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1973, p. 4.

das investidas portuguesas ao norte da África, observa-se que os cronistas fazem questão de ressaltar que D. Afonso V guerreou, tanto em Alcácer Ceguer como em Arzila, em pessoa ao lado dos combatentes portugueses, sendo peça fundamental para a obtenção das vitórias.236

É notória também a permanência dos rituais de vitória na narrativa de Pina, bastante semelhantes aos descritos por Zurara após a tomada de Ceuta. Destacam-se, entre esses, a conversão das mesquitas em igrejas, com missas e orações na presença dos mais nobres cavaleiros que combateram, e a cerimônia para armar novos cavaleiros.237 No caso de Alcácer Ceguer, o rei proveu a vinda de mantimentos, armas e gente que lhe pareceu necessária e armou muitos cavaleiros que o bem mereceram. Depois disso, seguiu para a cidade de Ceuta, onde ainda não tinha estado. Em Arzila, D. Afonso V armou o jovem príncipe, futuro D. João II, como cavaleiro, “[...] com palavras de grandes louvores”.238 Neste último caso, o cronista associa as honras recebidas pelo príncipe D. João com as recebidas pelos filhos de D. João I, D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique, que foram armados cavaleiros também após a conquista de uma praça marroquina. Dito de outro modo, pode-se considerar a pretensão do cronista Rui de Pina em manter a construção das narrativas acerca dos príncipes de Avis priorizando a glorificação dos modelos cavaleirescos e dos feitos de guerra na África.

As crônicas da corte de Afonso V, em pleno Quatrocentos, compostas por Zurara e que serviram de modelo para Rui de Pina, estavam assumidamente ao serviço do elogio de modelos cavaleirescos de “[...] príncipes ou capitães que fazem os feitos dignos de memória”.239 Modelos estes que eram descritos, portanto, a partir de virtudes heroicas nas guerras e nos cercos. Desse modo, a ênfase das narrativas cronísticas recai quase completamente sobre as tomadas de praças marroquinas em detrimento das descrições das conquistas movidas primeiramente por D. Henrique abaixo do Cabo do Bojador. No caso da

Crónica dos Feitos da Guiné, como será apresentado mais adiante, a exploração da costa

africana é descrita por Zurara a partir de um viés cavaleiresco. O cronista, por exemplo, fala da preferência henriquina pelos ataques às praças marroquinas, interrompendo as expedições de descobrimento: “[...] e neste ano passou o nobre infante D. Henrique em Tânger, por cuja

1940. p. 34.

236 Acerca do comportamento ideal dos cavaleiros na guerra, ver: WHETHAM, David. Just Wars and Moral

Victories: surprise, deception and the normative framework of European war in the later Middle Ages, p. 2. 237Zurara, mesmo na Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné, vincula os feitos portugueses na África às honras cavaleirescas e ao cristianismo militante, que busca converter em terras longínquas, por isso o cronista prefere a palavra conquista. Cf. BLACKMORE, Josiah. Moorings: Portuguese expansion and the writing of Africa. Minneapolis/London: University of Minnesota Press, 2009. p. 44.

238PINA, Rui de. Chronica do sernhor rey D. Afonso V. In: ______: Crônicas, p. 823. 239ZURARA, Gomes Eanes de. Crónica da Tomada de Ceuta, p. 305-307.

razão não enviou mais navios contra aquela terra”.240Essa predileção das crônicas régias em relatar os feitos de guerra na África pode ser explicada, não pela intenção de sigilo em relação aos descobrimentos, como foi proposto por alguns historiadores,241 mas pela pouca importância que se revestiam esses fatos para serem relatos nas crônicas,242 que buscavam conservar apenas o que era digno de memória.

A despeito disso, é curioso o fato de o rei D. Afonso V nunca ter utilizado o título

Senhor da Guiné, adotado oficialmente apenas por D. João II. A concessão da soberania

portuguesa sobre a Guiné foi oficializada pelo papado na bula Romanus Pontifex, de 1455. Em um documento datado de 1457, regido pelo infante D. Henrique, é possível encontrar a descrição de D. Afonso como o primeiro senhor da Guiné: “[...] D. Afonso V, meu senhor e sobrinho, dozeno rei destes reinos e oitavo do Algarve, terceiro senhor da cidade de Ceuta e primeiro das ditas partes da Guiné”.243 Contudo, mesmo após a morte de D. Henrique, em 1460, D. Afonso continuou com o título: Dom Affonso per graça de Deus Rey de Portugal e

do Algarve e senhor de Cepta e d'Alcacer em África e, depois de assegurar os domínios sobre

Anafé (1469), Larache (1471), Arzila (1471) e Tânger (1471),244 alterou o título para: Rei de

Portugal e dos Algarves d’aquém e d’além-mar em África.

Quando Rui de Pina mencionou que a crônica escrita por ele trata da “[...] memória das reais virtudes e dos feitos imperiais do muito glorioso rei D. Afonso o quinto”,245 o cronista estava referindo-se especialmente às conquistas do norte da África. Dois apontamentos são exemplares dessa afirmação. Primeiro, no capítulo que descreve a morte de D. Henrique, na Crónica de D. Afonso, Rui de Pina glorificou os descobrimentos realizados sob o comando do Infante D. Henrique e aborda os empreendidos depois da morte do infante. Acerca de D. Afonso V, Pina narra que, “[...] além do descobrimento do infante se descobriu a mina do ouro, em que agora é a cidade de São Jorge, em que o rei D. João o segundo mandou novamente edificar, e assim se descobriu mais pelo rei D. Afonso até o Cabo de Santa

240 ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do Descobrimento e Conquista de Guiné, p. 66. 241

Ver, CORTESÃO, Jaime, A Política de Sigilo nos Descobrimentos. Lisboa: Imprensa Nacional e Casa da Moeda, 1996, passim.

242 Cf. GOMES, Rita Costa. Rui de Pina LANCIANI, Giulia; TAVANI, Giuseppe. Dicionário da Literatura

Medieval Galega e Portuguesa, p.597-598.

243Monumenta Henriquina, no XIII, doc. 68. Coimbra: Comissão Executiva das comemorações do V Centenário do Infante D. Henrique. 1967, pp. 116-117.

244 Em 1469, segundo Rui de Pina, ou em 1468, de acordo com Damião de Góis, o infante D. Fernando, com a anuência do rei D. Afonso V, liderou uma campanha bem sucedida conta a praça marroquina na Anafé. Essa praça além da riqueza agrícola e dos seus edifícios notáveis, era uma importante base para o corso e pirataria, pois dali saiam frequentes galés e fustas armadas que atacavam a costa portuguesa e castelhana e tornava