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Num dos primeiros relatos que retratou a navegação portuguesa para a Guiné,265 o De

prima inuentione Guinee, ditado a Martim Behaim (1459-1507)266 pelo almoxarife e

navegador, Diogo Gomes de Sintra (1425?-1502?),267 no final do século XV, surge uma referência acerca do tratamento papal às navegações empreendidas pelo infante D. Henrique. Nessas memórias de suas várias viagens à costa africana, realizadas entre 1444 e 1460,268 Sintra descreve que “[…] recebeu o infante Dom Henrique graça, privilégio e cartas do Sumo Pontífice, que então era Eugênio IV, de que nenhum príncipe, rei ou senhor algum ousaria ir

265Cf. MOLLAT, Michel. Los exploradores del siglo XIII al XVI. Primeras miradas sobre nuevos mundos. México: Fondo de Cultura Económica, 1990, p. 47.

Aires Nascimento, em sua edição crítica do texto, defende que o relato de Diogo Gomes de Sintra é mais tardio do que a Crónica da Guiné de Zurara e certamente sem a mesma dimensão dela, mas constitui-se em um relato impar, pois nele a experiência aparece mais destacada do que a retórica de gabinete. Podendo até mesmo o relato ser anterior ao do viajante veneziano Luís de Cadamosto, impresso em Veneza em 1507. Isso porque o alemão Martim Behaim ou Martinho da Boémia, como ficou conhecido em Portugal, e para quem Diogo Gomes de Sintra teria narrado suas memórias, esteve, pela primeira vez em Portugal, no ano de 1484. Ver: SINTRA, Diogo Gomes de. Descobrimento Primeiro da Guiné. Edição crítica de Aires do Nascimento. Lisboa: Edições Colibri, 2002, p. 13, 14, 18.

266 A autoria do Relato de Diogo Gomes de Sintra, como ficou conhecido o texto, tem sido muito discutida, pois um segundo personagem aparece relacionado com o texto: o alemão Martin Behaim. Terá Diogo Gomes relatado oralmente o texto ao alemão? Quem escreveu a versão latina do texto? A nova e última edição do texto, feita pelo latinista Aires do Nascimento devolve a Diogo Gomes a autoria do manuscrito já em latim. Nascimento embasa sua tese em 5 argumentos: expressão em primeira pessoa; lusismos que são assumidos sob forma latina; maneira com o autor se refere ao evento em que participou; ligações que o autor testemunha com individualidades como o Infante D. Henrique e mareantes que intervêm nos acontecimentos e a interpretação que faz das razões que levam o Infante aos descobrimentos: mais realista que qualquer outros. Cf. SINTRA, Diogo Gomes de.

Descobrimento Primeiro da Guiné, p. 21.

Além disso, só foi possível ter acesso ao relato através do texto escrito em latim, com o título de De

prima inuetione Guinee, inserto no “Manuscrito Valentim Fernandes”, nome do códice compilado 1507 e encontrado por J. A. Schmeller em 1847, na Biblioteca Nacional de Munique. O tipógrafo alemão Valentim Fernandes, por sua vez, viveu em Portugal em 1495 até sua morte em 1518 ou 1519. O historiador Michel Mollat acredita a despeito da autoria do relato que: Diogo Gomes talvez começou a redação de seu Primer

descubrimiento de Guinea seis anos depois de sua terceira viagem [1460]; mas a maior parte foi transmitida por terceiros, competentes por certo. Entre 1482-1490 Martim Behaim havia recompilado oralmente, e talvez complementado as recordações do octogenário; Valentim Fernandes, a princípios do século XVI, os havia traduzido para o latim e incluído em um célebre manuscrito relativo aos descobrimentos. MOLLAT, Michel. Los

exploradores del siglo XIII al XVI, p. 47

267 Diogo Gomes de Sintra navegou tanto a serviço do infante D. Henrique como também do rei D. Afonso V. 268Diogo Gomes de Sintra teria iniciado sua atividade como navegador em 1444, dez anos após Gil Eanes passar o Cabo do Bojador, teria acompanhado Lançarote e Gil Eanes em suas viagens, bem como recebeu o comando de uma expedição à Guiné, à frente de três caravelas, na qual chegou à região do Rio Grande e penetrou pela Gâmbia numa distância de 400 km e estabeleceu contatos com a população da região. Em 1459, recebeu a missão de evitar intrusos nessa zona e fez o reconhecimento de ilhas atlânticas. No ano da morte de D. Henrique, em 1460, fez sua última viagem, e recebeu também a incumbência de identificar o corpo do infante, no Algarve, e levá-lo até o mosteiro da Batalha. Nessa data já era almoxarife de Sintra, mas antes já servira como escrivão da carruagem real, em 1451, como escudeiro do rei. A sua morte deve ter ocorrido antes de 1502, pois nessa data, a sua mulher provê sufrágios por sua alma. Normalmente consideram-se os anos de 1445, 1459 e 1460 como as viagens mais relevantes de Diogo Gomes de Sintra. Cf. MARQUES, J. Martins da Silva. Sintra e Sintrenses no

às partes da Guiné sem licença sua e do rei de Portugal, sob pena de sua excomunhão”.269As bulas dos sucessores de Eugênio IV – papa entre 1431 e 1437 –, entre as quais sobressai a famosa Romanus Pontifex, de 4 de janeiro de 1454, assinada por Nicolau V, confirmaram e ampliaram privilégios anteriores.270 Nicolau V, por exemplo, argumenta que o rei D. Afonso V recebeu cartas anteriores que, entre outras coisas, lhe concedia o direito de “ […] conquistar, combater, vencer e submeter a quaisquer sarracenos e inimigos de Cristo, em qualquer parte que estivessem”.271 Por conta desse direito, segundo o Pontífice, D. Afonso V ou o infante D. Henrique “[…] adquiriu, possuiu e possui dessa forma, justa e legitimamente, as ilhas, terras, portos e mares, os quais correspondem e pertencem por direito ao rei Afonso e aos seus sucessores, e nenhum outro, nem mesmo cristão, sem licença especial deste rei Afonso e de seus sucessores, até agora não pôde nem intrometer-se licitamente nisso”.272

Se, fora do reino português, os Sumos Pontífices reconheceram sucessivamente os direitos do rei de Portugal e do infante D. Henrique sobre as terras africanas e ilhas atlânticas, tanto as terras dos “sarracenos” quanto as dos “pagãos”, o regente do reino D. Pedro internamente concedeu, numa carta de 1443, o direito de exploração da costa africana exclusivamente ao infante D. Henrique. Em sua carta, D. Pedro aponta que D. Henrique solicitou ao regente que ninguém “fosse para aquelas terras sem seu mando e licença, assim pela guerra como pela mercancia, e que daqueles a que ele assim mandasse ou desse licença lhes déssemos o direito do quinto ou da dízima do que dela trouxessem”.273 Após analisar o pedido de D. Henrique, D. Pedro determinou que: “[…] ninguém passasse além do dito Cabo do Bojador sem seu [de D. Henrique] mandado ou licença” e os que lá fossem sem

269 Et isto tempore dominus Infans Henrricus accepit graciam, priuilegium et litteras a Summo Pontifice, qui tunc erat Eugenius [IV] quod nullus princeps, rex nec dominus aliquis auderet ire ad partes Guinee since licencia eius et regis Portugalie, sub pena excommunicationis. [tradução de Aires do Nascimento]. Cf. SINTRA, Diogo Gomes de. Descobrimento Primeiro da Guiné, p. 65.

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A essa bula tem sido atribuída concessão do exclusivismo português acerca da exploração da costa africana, sob a pena de excomunhão para quem navegasse por essa região sem autorização do rei de Portugal ou do infante D. Henrique e não há Eugênio IV como propôs Diogo Gomes. Aires Nascimento, por exemplo, considera que o direito de privilégio de D. Henrique de D. Afonso V sobre a Guiné e a excomunhão que quem fosse a essas terras sem autorização foram concedidos, na realidade, pelo papa Nicolau V, sucessor de Eugênio IV, na bula

Romanus Ponfifex. Conduto, o próprio Nicolau V, na bula citada, menciona os privilégios concedidos pelo seu antecessor, Eugênio V, aos portugueses a respeito dos seus direitos de compra e venda com sarracenos e infiéis. Deve-se levar em conta, portanto, um possível engano de Diogo Gomes de Sintra, mas também que Eugênio IV concedeu vários privilégios aos portugueses para a conquista da África, principalmente, no caso do Marrocos. O que interessa para a pesquisa é que Diogo Gomes de Sintra chama a atenção para as concessões papais em favor dos portugueses e não propriamente qual papa concedeu determinado direito. Cf. SINTRA, Diogo Gomes de.

Descobrimento Primeiro da Guiné, notas: 85, 213, 222.

271ROMANUS PONTIFEX, de Nicolau V (1447-1455). In: SUEES, Paulo. (coord.) A conquista esperitual da América Espanhola. Petrópolis, Vozes, 1992, p. 225-230.

272 Ibid., p. 227.

273 Monumenta Henricina, vol. VIII (1443-1445). Coimbra: Comissão Executiva das comemorações do V Centenário do Infante D. Henrique, 1967, p. 107.

autorização, “[…] que perdessem […] o navio ou navios em que assim lá foram e todo o que dela trouxerem”.274

A despeito do panorama em que essas autorizações e direitos foram atribuídos ao rei português e a D. Henrique, pelos pontífices e pelo regente D. Pedro, interessa interrogar aqui: qual era a forma moralmente aceita para se estabelecer relações nas novas terras identificadas? Ou seja, até que ponto a mercancia passa a ter relevo nas ações da primeira geração de exploradores portugueses da costa africana, a saber, aquela sob a égide do infante D. Henrique e seus sucessores imediatos?275 É preciso lembrar que, na bula Preclaris Tuis, de 25 de maio de 1437, Eugênio IV teria autorizado ao então rei de Portugal, D. Duarte e seus vassalos, a realização de tratos com os mouros e pagãos, exceto em armamento.276 Alguns anos antes de Eugênio IV escrever a bula Preclaris Tuis, D. Duarte, nas cortes de Leiria- Santarém (1433), respondeu às reivindicações de seus súditos acerca das atividades de mercancia, considerando que os fidalgos podiam realizar comércio, no país ou fora dele, relativamente aos produtos das suas terras, designadamente novidades e coutos; não podiam, no entanto, comprar para vender, impedir os negócios dos mercadores e exigir preferência nos tratos tanto a tanto.277 Ou seja, as cortes procurar regular a participação de fidalgos, no século XV, em atividades comerciais, o que, de certa forma, denuncia uma mudança nas atividades da nobreza voltadas, a princípio, fundamentalmente para a guerra. Nota-se, assim, o início de mudança no modo de vida do guerreiro, que aos poucos vai se transformando no mercador e tomando conta da sociedade portuguesa. A despeito dessa mudança, resta, ainda, entender como essas atividades (guerra e mercancia) foram pensadas pelos letrados daquele tempo e o que acerca disso foi digno de registro cronístico.

A bula de Inocêncio V dá algumas pistas nesse sentido. Após retificar a permissão para os portugueses fazerem tratos com os mouros, o pontífice chama atenção para a necessidade de D. Afonso V, de seus sucessores e do infante D. Henrique fundarem e construírem nas

274Monumenta Henricina, vol. VIII (1443-1445). Coimbra: Comissão Executiva das comemorações do V Centenário do Infante D. Henrique, 1967, p. 108.

275 Para o historiador Michel Mollat, os exploradores dos mares africanos no século XV podem ser divididos em três gerações: primeiro, a dos precursores, das Canárias até Cabo Verde, nesse caso, parece continuar, particularmente em torno de Henrique, o Navegador, a tradição medieval heróica dos campeões da fé, flagelo dos sarracenos, anisosos de ajudar o Preste João. Uma segunda geração, que foi atraida pela perspectivas abertas pelos primeiros, reúne mercadores e sábios, inclusive dos países localizados longe do Atlântico, como Itália e Alemanha. Por sua vez, estes abrem o caminho para o Cabo da Boa Esperança e para os grandes realizadores da exploração, os navegantes principalmente, do final do século XV. Cf. MOLLAT, Michel. Los exploradores del

siglo XIII al XVI, p. 41.

276As autorizações pontificais de trato com os infiéis, segundo Vitorino de Magalhães Godinho, são bem anteriores. Por exemplo, Gregório IX, em 11 de dezembro de 1239, teria autorizado D. Fernando, infante de Serpa, a vender aos mouros, bens seus ou tomados, exceto ferro, cavalo, armas e madeiras para galés. Cf. GODINHO, Vitorino de Magalhães. A expansão quatrocentista portuguesa, p. 147.

províncias, ilhas e lugares já adquiridos ou a serem adquiridos:

[…] igrejas, mosteiros e outros lugares piedosos, e também possam enviar a elas qualquer pessoa eclesiástica, secular ou regular de qualquer ordem, inclusive mendicantes, que queiram ir e tenham licença do seu superior; e estas pessoas que viverem ali possam ouvir em confissão a quem quer que esteja ou chegue àquelas partes e, ouvida a confissão, possam dar necessária absolvição e impor a penitência saudável em todos os casos, exceto os reservados à citada Sé, e administrar os sacramentos da Igreja, e decretamos que possam fazer isso livre e licitamente.278

A permissão de D. Afonso V em relação ao comércio estava profundamente vinculada, portanto, com o trabalho de evangelização e de construção das estruturas – igrejas, mosteiros, etc. – necessárias para a propagação da fé.279 A conversão dos habitantes dos territórios adquiridos, desse modo, justificava e legitimava as ações, por exemplo, de captura de gentes e tratos com mouros e gentios: “[...] muitos guinenses e outros negros capturados pela força e também alguns por troca [...] ou por contrato de compra legítima foram trazidos para estes ditos reinos, e ali grande número deles se converteu à fé católica”.280

Quando se leem os textos de um cronista prioritariamente de gabinete como Gomes Eanes de Zurara,281 é possível perceber um claro compartilhamento dos valores e das orientações papais para as navegações na costa africana e uma notória valorização da ética de cavalaria. Dito mais detalhadamente, Zurara, em vários momentos da Crónica do

descobrimento e conquista da Guiné, chama atenção para as ações de conversão e combate ao

infiel. Por exemplo, após descrever o pesar e o sofrimento da primeira grande quantidade de cativos – 235 segundo ele – que foram trazidos da costa africana para Portugal, Zurara narra que o infante D. Henrique separou os cativos que lhe eram de direito, quarenta e seis almas, com único interesse de “[...] salvação daquelas almas que antes eram perdidas”.282 No final da crônica, Zurara declara o número de cativos que foram trazidos da costa africana para Portugal, ressaltando o sucesso das conversões: “[...] pondo certo número às almas dos infiéis que daquelas terras vieram a esta, por virtude e engenho do nosso glorioso príncipe; as quais por conto achei que foram novecentas e vinte e sete, das quais como primeiro disse, a maior

278ROMANUS PONTIFEX, de Nicolau V (1447-1455). In: SUEES, Paulo. (coord.) A conquista esperitual da América Espanhola, p. 229.

279 Cf. BLACKMORE, Josiah. Moorings: Portuguese expansion and the writing of Africa, p. 74 280ROMANUS PONTIFEX, de Nicolau V (1447-1455). Op. cit., p. 227.

281Com exceção das viagens para recolher informação e documentos como a de Alcácer Ceguer cujo objetivo foi buscar dados para compor a Crónica de D. Duarte de Meneses.

parte foram tornadas ao verdadeiro caminho da salvação”.283

Na narrativa de Zurara, pelo que se pode notar, as pelejas e os feitos de armas preponderam claramente ao trato e à mercancia. O cronista conta vários episódios de lutas travadas entre os cristãos e os homens daquela terra. Segundo ele, depois que os primeiros cativos foram levados para Portugal, o infante D. Henrique considerou que “[...] era necessário mandar muitas vezes seus navios armados com suas gentes, onde de necessidade convinha pelejar com aqueles infiéis”.284 Zurara também chama atenção para os fidalgos cristãos que morreram em terras africanas, como Gonçalo de Sintra, escudeiro da casa do infante D. Henrique, morto em “[...] uma peleja com desigual comparação, pois os inimigos [nesse caso chamados de mouros] eram duzentos, e os nossos doze sem esperança de socorro foram ligeiramente desbaratados”.285 Nesta narrativa da morte do cavaleiro, como em outras igualmente sobre mortes, há um forte destaque para a bravura e a coragem dos cristãos, que guerrearam o quanto puderam com um inimigo numericamente superior; traços bastante semelhantes àqueles apresentados aqui acerca da guerra em Marrocos. Nesse sentido, na crônica de Zurara, as pelejas se impõem aos tratos comerciais e, por isso, é comum o cronista descrever casos em que os capitães das armadas recebiam títulos e honras de cavaleiro quando regressavam a Portugal, como Gil Eanes e Lançarote, criados do infante e feitos cavaleiros com “[…] grandes mercês, segundo seus merecimentos e bondade requerida”.286

Já nos textos de viajantes, mesmo os que estavam a serviço do infante D. Henrique, por outro lado, há uma valorização cada vez mais intensa da mercancia e da paz em detrimento da guerra e dos atos cavalheirescos.287 O já citado Diogo Gomes de Sintra ressalta, em vários momentos de seu texto, que as ordens henriquinas não eram para fazer guerra, num

283 ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do Descobrimento e Conquista de Guiné, Ibid., cap. XCVI. 284 Cf. Ibid., p. 89.

285 Ibid., p. 136. 286 Ibid.. p. 136.

287O historiador Luís Filipe Thomaz define várias etapas da expansão comandada por D. Henrique, apesar de D. Pedro também ter incentivado feitos expansionistas, para o autor, não foram tantos comparados aos de D. Henrique e considera ser um delírio da historiografia considerar que a memória de D. Pedro em relação aos descobrimentos foi apagada por conta da batalha de Alfarrobeira. Assim, o autor define que de 1415 a 1422 D. Henrique se interessa pelo mar e tem, tal como D. Pedro, ao seu serviço uma armada, provavelmente de galés. Por 1422 começa-se a tentar passar o Cabo do Bojador, tentativas que falharam por 12 anos. As expedições de 1434, 1435 e 1436 em que se passa efetivamente o Bojador e se atinge a Pedra da Galé, para o autor, não são de corso nem de comércio, mas de mero reconhecimento geográfico. Segue-se um hiato correspondente ao regresso do infante a Marrocos para a conquista de Tânger. De 1441 e 1448 estende-se a fase crucial da expansão, com o avança rápido para o sul, além da costa saariana. Em 1443, surge uma novidade: um particular requer pela primeira vez autorização ao infante para armar um navio para a costa africana. A partir de 1444 – que significativamente é aquele que Nuno Tristão atinge a Guiné, terra dos negros - alarga-se o círculo geográfico de interesse. Em 1448, ocorre, para o autor, um marco: o triunfo definitivo do comércio sobre o corso e só nessa data é que se pode dizer que a expansão guineense se separa da marroquina. Cf. THOMAZ, Luis Filipe. Expansão portuguesa e expansão europeia – reflexões em torno da gênese dos descobrimentos. In: _____. De

espírito de conquista, mas para se realizar tratos de paz com os habitantes contatados, mouros ou gentios.288

A guerra, nessas descrições, era utilizada mais como defesa do que tendo em vista a conquista. Diogo Gomes de Sintra, nas recapitulações das navegações portuguesas pela costa africana anteriores às suas viagens, conta que as primeiras caravelas, que passaram além de Cabo Verde, quando se aproximaram da costa foram recebidas belicamente e muitos cristãos morreram. Então, o infante D. Henrique, depois de obter “[…] notícias tão horrendas, mandou uma caravela armada de paz e de guerra”.289 O veneziano Luís de Cadamosto (1432-1488), no relato das viagens que realizou, em 1455 e 1456, publicado pela primeira vez em 1507, conta que chegou a Gâmbia “[…] com intenção de tratar com o país boa paz e concórdia, ou deles [habitantes locais] alcançar amizade, a qual convinha adquirir com habilidade e não por armas nem por força”.290 Entretanto, ele e demais viajantes foram informados de que naquele lugar “[…] todos eram arqueiros que atiravam flechas envenenadas”, por disso armaram-se e guerrearam com os negros daquele local.291

A mudança de perspectiva em relação à intenção de guerra e de paz é demarcada, nesses relatos, a partir dos tratos feitos no entreposto de Arguim, na Mauritânia, em meados do século XV. Cadamosto, por exemplo, relata que:

[…] este tráfico de Arguim foi ordenado há pouco tempo para cá, porque, antes, as caravelas de Portugal costumavam vir a este Golfo de Arguim armadas, quatro e outras vezes mais; saltavam em terra de noite, e assim faziam correrias pelo interior; de modo que prendiam destes árabes, tanto machos como fêmeas, e traziam-nos a Portugal para vender.292

No entanto, segundo Cadamosto, depois que o infante D. Henrique fez da ilha de Arguim um arrendamento, ninguém pôde “[…] entrar no golfo para traficar com os sobreditos árabes” sem autorização. Assim, os cristãos começaram a trocar com os árabes, que iam àquele lugar, mercadorias diversas: “[…] panos e tecidos de linho e pratas, alquicéis, tapetes, saiotes, e outras coisas, sobretudo trigo, porque estão sempre esfomeados e dão em troca escravos negros”,293 que são trazidos por esses árabes “[…] das terras dos negros”. Mais tarde, o infante D. Henrique fez “[…] construir um castelo nessa ilha, para conservar e multiplicar o

288REMA, Henrique Pinto. Introdução histórica. In: SINTRA, Diogo Gomes de. Descobrimento Primeiro da

Guiné, p. 47

289SINTRA, Diogo Gomes de. Descobrimento Primeiro da Guiné, p. 67.

290 CADAMOSTO, Luís de. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra, p. 150. 291 Ibid., p. 152, 153, 154.

292 Ibid., p. 105. 293 Ibid., p. 105.

tráfico perpetuamente. Por essa causa vão e vêm todo o ano caravelas de Portugal à dita ilha de Arguim”.294 Diogo Gomes de Sintra também atribuiu ao infante D. Henrique a construção