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O cuidado na filosofia contemporânea: Heidegger e Foucault A noção de cuidado tem recebido atenção dentro da filosofia

1 O CUIDADO NA HISTÓRIA DA ÉTICA

1.1 CUIDADO NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA

1.1.1 O cuidado na filosofia contemporânea: Heidegger e Foucault A noção de cuidado tem recebido atenção dentro da filosofia

contemporânea ocidental particularmente em virtude de dois pensadores: Heidegger e Foucault. Embora em meio à corrente filosófico-analítica da filosofia moral a noção de cuidado não receba destaque especial, exceto dentro da abordagem da filosofia feminista que procura construir uma tradição teórica centrada na análise e aplicações do cuidado, em outros segmentos da filosofia ela tornou-se um conceito importante.

Heidegger destina ao cuidado – mais adequadamente denominado de ‘cura’ [Sorge] por remontar à tradição romana da cura apontada por Reich e pautada na Fábula de Higino – um papel central na sua obra Ser e tempo. Sabe-se que em Ser e tempo, Heidegger dedica-se a responder a questão sobre o sentido do ser por meio de um método fenomenológico que visa descortinar a ontologia fundamental do ser. Essa questão, a saber, o que é o ser, só pode ser colocada pelo próprio ser-aí [Dasein], o ente que interroga e é interrogado. Por isso, o método de Heidegger, segundo Nunes, é uma fenomenologia hermenêutica e ontológica. A fenomenologia não é mais uma ciência da consciência cuja propriedade fundamental seria a intencionalidade, mas uma busca pela liberação dos encobrimentos do ser para se compreendê-lo, de que a consciência é apenas o ponto de abertura. Ao mesmo tempo, o processo é ontológico e hermenêutico porque a descrição analítica envolve um trabalho de interpretação aplicado ao ser-aí, de dentro para fora, “uma vez que parte do Dasein e é pelo Dasein mesmo conduzida”56.

É por meio desse método e partindo do plano existencial e pré- teórico, que Heidegger busca determinar o complexo de estruturas existentativas que constituem o ser-aí, “e nas quais repousa o sentido de seu ser”57

. Além disso, Heidegger questiona se é de fato possível

56

NUNES, Benedito. Heidegger e Ser e Tempo. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 12.

57

determinar a unidade do ser-aí em algum sentido originário e não meramente mediante uma montagem de elementos58.

Tratar da cura é, então, fundamental para entender ontologicamente o Dasein. Pode-se dizer que não é possível compreender analiticamente o que é o ser-aí sem abordar a noção de cura. Há diversos elementos ontológicos ou experiências temporais genuínas do ser: ser-no-mundo, ser-para-a-morte, ser-com-os-outros, ser-à-mão, ser-à-vista, mas somente a cura é o que lhes garante a totalidade estrutural original. Conforme salienta Reich, o uso do termo ‘cura’ em Heidegger tem um sentido abstrato, situado no nível ontológico e visa descrever a estrutura básica do self humano, isto é, cura é a ideia central para entender o significado do self humano, ou do ser-aí, em sua unidade, autenticidade e totalidade59. Dessa forma, se todas as formas existenciais do ser-aí fossem desconhecidas e ainda assim se quisesse dizer o que é o ser-aí com base em um único fenômeno, dir-se-ia: o ser-aí é cura.

Heidegger assim caracteriza ontologicamente a cura, afastando de seu significado, em um primeiro momento, qualquer referência ôntica:

A totalidade existencial de toda a estrutura ontológica da presença [ser-aí] deve ser, pois, apreendida formalmente na seguinte estrutura: o ser da presença [ser-aí] diz anteceder-a-si-mesma- no-já-ser-em-(no mundo)-como-ser-junto-a (os entes que vêm ao encontro dentro do mundo). Esse ser preenche o significado do termo cura (N13), aqui utilizado do ponto de vista puramente ontológico-existencial. Fica excluída dessa significação toda tendência ôntica como cuidado ou descuido60.

Conforme salienta Santos em relação à concepção ontológica de Heidegger, a cura é um conceito vazio de representação, que pode ser compreendido, mas não representado. É um fenômeno existencial

58

HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer Verlag Tübingen, 1967, p. 181.

59

REICH, op. cit., 1995, p. 354. 60

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 4. ed. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 259-260 [192].

básico, por isso, pensar sobre o cuidado exige pensar sobre quem se é no mundo61.

Para explicar a noção de cura e dizer que o ser humano é a cura, Heidegger apresenta a Fábula de Higino, no § 42 de Ser e Tempo, considerando-a uma interpretação pré-ontológica, ou um testemunho pré-ontológico do ser-aí como cura62. Por meio do recurso à fábula, Heidegger procura evidenciar que a cura proporciona a auto- compreensão do ser-aí; o que determina o ser humano enquanto ente é a cura. Esse não seria então abandonado no mundo, mas mantido por cura enquanto existe como ser-no-mundo temporal e finito63. Dessa forma, a cura está sempre presente no ser-aí enquanto ele vive, mantendo-o ocupado com o ser-no-mundo até o momento em que Júpiter reclama o espírito e Terra o corpo humano. Todas as ocupações do ser-aí em vida permitem-no fugir do seu débito com o senhor do tempo, Saturno, que permitiu a vida ao ser humano mas o determinou mortal e cuja dívida é então quitada com a chegada da morte. Temporalidade e existência estão, assim, diretamente relacionados em Heidegger: existo porque experimento o tempo.

A cura reúne tudo o que é existencial no ser-aí e é condição prévia para toda situação e para todas as suas existencialidades ou tonalidades afetivas. Heidegger afirma que do ponto de vista existencial, a cura se acha aprioristicamente em relação a toda atitude e situação do ser-aí. Todavia, embora a estrutura de totalidade da cura seja pré- ontológica a qualquer situação do ser-aí, ele se encontra já sempre como ser-no-mundo. Não se trata, portanto, de uma primazia da prática frente à teoria. “A determinação meramente contemplativa de algo simplesmente dado não tem menos o caráter da cura do que uma ‘ação política’ ou a satisfação do entretenimento. ‘Teoria’ e ‘prática’ são possibilidades ontológicas de um ente cujo ser deve determinar-se como cura”64

.

O ser-aí constitui o mundo e isso o distingue, em grande medida, dos demais animais: somente o ser humano pode constituir mundo, é, portanto, ‘rico em mundo’; os demais animais, ao contrário, são ‘pobres

61

SANTOS, Eder Soares. Em busca de uma ética do cuidado à luz de Heidegger, Nishitani e Winnicott. In: LOPARIC, Zeljko (Org.). Winnicott e a ética do cuidado. São Paulo: DWW Editorial, 2013, p. 101-113, p. 102-104. 62

HEIDEGGER, op. cit., p 1967, p. 197. 63

DALL’AGNOL, op. cit. 2009, p. 143. 64

de mundo’. Ser ‘pobre de mundo’ significa estar privado de algo que está disponível a outro ente, ou seja, o animal possui uma carência em relação ao ser humano que é formador de mundo. Como o mundo é aquilo que é acessível ao ente, o animal é privado de mundo, pois seu acesso ao mundo é menor ou restrito. A privação, segundo Heidegger, é possível de maneiras distintas: envolve o aspecto de como se é privado de algo e como se comporta o ente em meio ao carecimento, e o modo como ele se coloca diante da privação, como ele a toma, isto é, como ele se sente65. O ser humano, por sua vez, pode refletir sobre seu ser-no- mundo, tomar atitudes diante das coisas do mundo, algo que não está disponível para o animal, cuja ação se restringe ao movimento pulsional resultante de uma perturbação interna do comportamento, estando excluído da possibilidade de abertura do ente para aproximar-se de si por meio da angústia66.

É enquanto ser-no-mundo que o ser também se descobre como ser-para-a-morte, quando se afasta de todas as distrações e ocupações mundanas e dá lugar à angústia [Angst]. A angústia é um sentimento fundamental do ser enquanto ser-no-mundo que permite a abertura do ser para si mesmo, isto é, para a sua existência temporal, para poder ser livre de toda a impessoalidade, decadência ou inautenticidade do ser-no- mundo, da alienação produzida pelas ocupações e preocupações no mundo cotidiano. Mas autenticidade e inautenticidade intercalam-se e, como bem pontua Duarte, quando o ‘eu’ é referido comumente não se diz mais do que o que ele empreende no mundo, isto é, faz-se referência a sua cotidianidade mediana, sua identidade forjada em meio as ocupações mundanas67. Ao se ocupar no mundo, o ser humano distrai- se, foge de si, refugia-se de si, desvia-se de si mesmo e permanece na decadência até que a angústia o chame à consciência, lembrando-o da temporalidade e da finitude da vida, fazendo-o perguntar-se sobre o sentido de si68. Por meio dessa constatação, o ser humano novamente preocupa-se, ocupa-se e cuida-se, torna-se autêntico e efetua a

65

HEIDEGGER, Martin. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude e solidão. Trad. Marco Antônio Casanova. Forense Universitária, 2003, p. 226.

66

Ibid., p. 272-290. 67

DUARTE, André. Ser e tempo como ética do cuidado: finitude e responsabilidade existencial. In: LOPARIC, Zeljko (Org.). Winnicott e a ética do cuidado. São Paulo: DWW Editorial, 2013, p. 57-69, p. 59.

68

singularização de si mesmo. Assim emerge de novo o pressentimento da morte e lembra que o ser humano é ser-para-a-morte. A angústia abre o mundo como mundo e também permite o acesso a própria constituição e a totalidade da cura. Nas palavras de Heidegger, a angústia “oferece a base fenomenal para a apreensão explícita da totalidade originária do ser-aí, cuja presença desvela-se como cura”69. É por meio dela que o ser-aí torna-se o “ser-livre para a liberdade de escolher e acolher a si mesma [a angústia]”70

. Portanto, a angústia é a disposição fundamental e privilegiada por ser fator de abertura, romper a familiaridade cotidiana, causar um estado de estranheza e apontar para o fenômeno da temporalidade: a finitude do ser-aí. A morte é, desse modo, entendida como existencial. Mas ela nunca pode ser experienciada de fato, pois quando chega, ela de fato já passou.

A partir dessa compreensão do sentido ontológico da cura, é possível questionar então qual sua relação com a ética. Reich pontua que embora esteja claro que Heidegger não se refira aos aspectos concretos e práticos do cuidado, como a preocupação com o outro e o ato de nutri-lo [nurturing], possibilitando compreender a cura para além de uma noção ôntica de cuidado, seus escritos sobre a cura tem uma significância moral existencial que permitem inferir ideias frutíferas para uma ética do cuidado prática71.

Dall’Agnol salienta que, do fato de cura estar na ‘origem’ do ser- aí, devendo este seu ser àquele, pode-se falar de “uma ‘ética originária’ em Heidegger na medida em que o ser-aí tem a responsabilidade fundamental de ter-que-ser, isto é, cuidar de sua própria existência”72. Além disso, se uma das formas existenciais do ser-aí é ser-com-os- outros no mundo, isto é, estar em relação com os outros, então, cuidar de si é também cuidar do outro. Nesse sentido, há um existencial compartilhado: o mundo-com-os-outros que implica cuidar de si e do outro.

Duarte também argumenta que Heidegger afasta-se de um “solipsismo existencial do ser-aí resoluto”, defendendo que, ao contrário, Heidegger trata do problema ético da relação e do cuidado com o outro, uma vez que o ser-aí traz em si mesmo a alteridade. É na articulação entre as discussões sobre a angústia e o chamado à 69 Ibid., p. 182. 70 Ibid., p. 188. 71

REICH, op. cit., 1967, p. 354. 72

consciência do ser-aí que Heidegger evidencia um apelo a uma alteridade que habita cada um. Isso é a “condição ontológica do reconhecimento de si e do outro enquanto singularidade própria, isto é, como alteridade, franqueando-se, assim, as portas para uma ética do cuidado”73

. A ideia central é que a singularização de si mesmo ou o processo de tornar-se autêntico por meio da abertura proporcionada pela angústia só pode ocorrer porque o ser-aí já traz em si a alteridade.

Nas palavras de Duarte:

[...] o que se espera do ser-aí resoluto não é que ele se sobrecarregue, de maneira irresponsável, de culpas, faltas e omissões, mas apenas que, dando ouvidos a um clamor cuja legítima compreensão o entrega à própria finitude, ele aja de maneira responsável, isto é, responda ao cuidado de si, dos outros e do mundo. [...] Numa perspectiva ético- política não metafísica, agir sem dispor de garantias quanto ao caráter moral da ação não significa abdicar do respeito, do cuidado e da responsabilidade para consigo e com os outros, mas desconfiar e opor contínua resistência a qualquer sistema teórico, qualquer instituição social, qualquer instância ou mecanismo de manipulação, objetificação e controle, em sua pretensão de administrar a finitude livre e criativa que somos74.

À medida que o ser-aí se transforma e se torna autêntico, não é apenas ele o afetado, mas também suas relações com os outros no mundo. Por isso, sustenta Duarte, o cuidado de si é também o cuidado do outro. Embora o mundo seja sempre o ‘meu’ mundo, eu sou no mundo ‘com os outros’. A cura releva, portanto, a alteridade do ente.

Reich, ao tratar dos sentidos mais práticos da cura em diferentes textos de Heidegger, observa que o autor se mantém dentro da tradição romana da cura incluindo os dois sentidos de cuidado: o de cuidado ansioso, representado na luta pela sobrevivência e por condições favoráveis em meio aos outros indivíduos, afastando o indivíduo da percepção de sua finitude e originalidade; e o cuidado como solicitude,

73

DUARTE, op. cit., 2013, p. 57. 74

que leva o ser a buscar servir, dar sustento e estruturação aos outros. Ambas as formas de cuidado mantêm-se em conflito, sendo que o cuidado como solicitude não controla por completo a ansiedade, que pode afastar o ser humano de todas as possibilidades de cuidado proporcionadas pela solicitude. Em Sein und Zeit, Heidegger refere-se brevemente a dois sentidos de cura identificados por Burdach que parecem corresponder a esses aludidos por Reich, quais sejam: o de ‘esforço angustiado’ [ängstliche Bemühung] e o de ‘diligência’[Sorgfalt] e ‘dedicação’[Hingabe]75

.

Reich ainda indica o contraste entre os termos Besorgen, que designa o cuidado como satisfação das necessidades do outro, e Fürsorge76, que corresponde ao cuidado solícito. Enquanto Besorgen envolve uma noção de cuidado funcional mínimo, Fürsorge implica orientar o próprio self na direção do outro, voltar-se completamente para o outro e ter consideração pelo seu self77. Por fim, Reich acrescenta que a noção de cuidado em Heidegger indica uma abertura para as possibilidades futuras de ação do ser-aí. Dizer que o ser-aí é cura significa também preocupar-se com o ser-no-mundo em termos do que ele pode e não pode fazer. O ser-aí pode e precisa agir de forma a escolher entre possibilidades e determinar o sentido de sua própria existência78.

Loparic também vê em Heidegger a possibilidade de uma ética do cuidado pautada na investigação ontológica sobre o sentido originário de ser dos seres humanos. O autor destaca que Heidegger desconstrói a noção kantiana de dever, classificando o modelo kantiano como uma forma derivada de dizer o ser. Mas ao desconstruir o ter-que-obedecer à lei, Heidegger abre espaço para pensar o ter-que-ser como o que fundamenta a responsabilidade para consigo mesmo e para com todos os outros79.

75

HEIDEGGER, op. cit., 1967, p. 199. 76

Saliente-se que o termo Fürsorge também é empregado por filósofas feministas em alemão para designar o cuidado dentro das concepções teóricas feministas de ética do cuidado.

77

REICH, op. cit., 1995, p. 354. 78

Ibid., p. 354. 79

LOPARIC, Zeljko. A ética da lei e a ética do cuidado. In: __________, Zeljko (Org.). Winnicott e a ética do cuidado. São Paulo: DWW Editorial, 2013, p. 19-53, p. 26.

No entender de Loparic, não há apenas um sentido ontológico na ideia de cura ou cuidado em Heidegger:

‘Ser humano’ significa, por um lado, ter cuidados ontológicos – ter-que-cuidar do sentido do ser, do sentido da presença no mundo de si mesmo, dos outros e dos entes no seu todo – e, por outro lado, ter cuidados ônticos, relativos aos seus próprios modos de estar presente no mundo, bem como aos modos de estar-aí dos outros e das feições das coisas [...]80.

A partir desse cuidado ontológico do ser-aí para consigo e para com o ser dos outros no mundo, não são então criados deveres ou virtudes na ética do cuidado derivada de Heidegger, mas a garantia de um espaço aberto de convivência no qual o ser-aí possa conviver com outros seres humanos, cada ser tendo sua possibilidade de subjetividade e individuação autêntica garantida nos mais diversos sentidos do ser, ainda que no mundo ôntico regras sejam estabelecidas para conduzir a vida em comum. A cura em sentido ontológico, isto é, “o ter-que-cuidar dos diferentes sentidos de ser e do sentido originário de ser dos seres humanos”81

seria, assim, o fundamento para o cuidado ôntico.

Ao salientar que a ética heideggeriana não oferece propostas sobre virtudes a serem desenvolvidas, nem sobre princípios que deveriam guiar as ações morais, Loparic parece aproximar a noção de cuidado ôntico em Heidegger dos próprios fundamentos de uma noção de cuidado em Gilligan nas relações interpessoais constitutivas da humanidade, que, a princípio, parecem se distanciar da necessidade de recorrer a princípios enquanto guias para as ações morais. É a própria relação que garante o direcionamento do que deve ser feito, isto é, como se deve cuidar daquele com o qual o agente moral se relaciona.

Ao apresentar sua abordagem do cuidado, como se verá no capítulo seguinte, Gilligan também afasta a possibilidade da moralidade de preocupações estritas com a aplicação de regras e princípios. É justamente esse aspecto que posteriormente foi desenvolvido por Noddings em sua proposta de ética do cuidado, salientando que o cuidado não pode ser regido por regras, como se verá no terceiro

80

Ibid., p. 27. 81

capítulo do presente estudo. Todavia, importa notar que se trata já aqui de uma interpretação de Heidegger sobre as implicações de uma noção ôntica de cuidado, e não ontológica. Conforme lembra Reich, Heidegger apresenta a noção de cura e um nível muito mais profundo que a experiência psicológica do cuidado82. Gilligan, e mesmo as feministas que lhe sucederam, não buscam explicitar o cuidado enquanto ‘cura’ do ser no sentido ontológico proposto por Heidegger. Embora apresentem a habilidade de cuidar dos outros como algo que constitui o ser humano, as propostas de ética do cuidado dentro da perspectiva feminista tratam essencialmente das derivações práticas da noção de cuidado.

Ao passar-se para a concepção de cuidado em Foucault, tem-se, em certa medida, uma aproximação de Heidegger no sentido de que tanto a cura ontológica visa à individuação do ser-aí, quanto a noção de cuidado de si em Foucault objetiva garantir a abertura para a subjetividade do indivíduo. Conforme bem pontua Quilici, a ética em Foucault envolve também um desidentificar-se em relação às atividades mundanas, hábitos e identidades assumidos nessas ocupações para que o indivíduo possa ter acesso a si mesmo. Uma relação livre consigo mesmo exige um espaço de recuo, certa experiência de solidão para gerar uma inquietude, uma situação de não preenchimento e livre da dispersão gerada pelas ocupações83.

Uma vez mantidas as devidas restrições em uma tentativa de aproximação entre Heidegger e Foucault, note-se que esse último não busca apenas tratar diretamente de um sentido ontológico do cuidado, destacando também uma dimensão psicológica, pedagógica e ética do cuidado na constituição do self. Essa ética é uma tentativa de pensar a formação da subjetividade a partir do cuidado de si próprio entendido como preocupação em liberar-se a si mesmo, como prática de liberdade, de definir sua própria forma de existência livre, na medida do possível, de todas as classificações e imposições normativas externas84. As práticas de liberdade só são possíveis em meio às relações de poder móveis, nas quais os envolvidos podem movimentar-se e modificar as

82

REICH, op. cit., 1995, p. 354. 83

QUILICI, Cassiano Sydow. Ética e “cuidado de si”. In: LOPARIC, Zeljko (Org.). Winnicott e a ética do cuidado. São Paulo: DWW Editorial, 2013, p. 87- 99, p. 90-92.

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FOUCAULT, Michel. A ética do cuidado de si como prática da liberdade. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos: ética, sexualidade, política. v. 5. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 264-287, p. 266-267.

relações, diferentemente de estados de dominação, que cristalizam relações de poder e as tornam imóveis por meio de instrumentos políticos, econômicos e militares85.

Embora a liberação seja muitas vezes condição política e histórica para uma prática da liberdade, liberar-se a si mesmo não necessariamente corresponde a uma prática de liberdade, sustenta Foucault. A liberação é apenas um passo inicial para acessar um campo de novas relações de poder a serem controladas por práticas de liberdade86. A ética do cuidado de si implica justamente que a liberação,