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Filosofia feminista e cuidado: por que uma ética do cuidado? Dentro da filosofia feminista, há o questionamento sobre até que

1 O CUIDADO NA HISTÓRIA DA ÉTICA

1.3 SITUANDO O CUIDADO EM MEIO À FILOSOFIA FEMINISTA 1 Por que uma filosofia feminista?

1.3.3 Filosofia feminista e cuidado: por que uma ética do cuidado? Dentro da filosofia feminista, há o questionamento sobre até que

ponto as teorias tradicionais sobre direitos e justiça, bem como sobre a moralidade, fornecem recursos adequados para teorizar sobre a dominação de homens masculinos, ou se outros modelos teóricos, essencialmente feministas, seriam necessários para questionar e por fim a essa dominação230. É nesse contexto que emerge a ética do cuidado feminista, como um modelo alternativo ao modelos de ética tradicionais, defendido por algumas teóricas feministas.

Conforme visto no item anterior, teóricas feministas têm transformado os estudos no campo da ética ao mostrar o escopo limitado do suposto universalismo de teorias morais que, na verdade, refletem métodos não neutros e estão confinados aos homens, ou apenas a alguns homens, situados em um determinado momento histórico. Enquanto muitas autoras buscam salvaguardar as teorias morais clássicas e reformulá-las para incluir as mulheres e suas reivindicações em seu escopo – a exemplo do que faz Pauer-Studer e como será desenvolvido no quarto capítulo –, outras pensadoras procuram conceber modelos teóricos para pensar a moralidade de modos alternativos, isto é, partem do que seriam modos feministas ou femininos de entender a ética – como se verá ao longo do terceiro capítulo com a abordagem de Nel Noddings.

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A ética do cuidado, ao procurar ir além dos filósofos homens abordados ao longo deste capítulo, que também tratam do cuidado, atende aos temas centrais que a filosofia feminista vem defendendo em suas diversas correntes: a superação do dualismo hierárquico entre homens e mulheres; a superação do dualismo hierárquico entre razão e emoção, mostrando que a razão não é nem um atributo masculino, nem a emoção algo feminino; a redefinição do papel de sentimentos e emoções, que deixam de ser algo negativo na moralidade; a valorização da família e das relações privadas na teorização moral; a valorização da dependência e da interdependência entre indivíduos ao invés da separação uns dos outros; e a aceitação de que nem todos os problemas no âmbito da moralidade podem ser resolvidos a partir da aplicação de princípios, direitos e noções abstratas e gerais de justiça. Nesse sentido, a ética do cuidado vai ao encontro das reivindicações feministas em termos de teorias morais, uma vez que valoriza a experiência moral das mulheres e traz o elemento ‘gênero’ para o centro da discussão sobre a moralidade.

De acordo com Tong e Williams, essa forma de pensar a ética ainda permite questionar o pressuposto ontológico de que quanto mais independente dos demais é o self, mais próximo do ideal de desenvolvimento ele estará. Na verdade, a ética do cuidado procura mostrar que a perspectiva de um self totalmente separado do outro não condiz com o ideal do desenvolvimento moral de uma pessoa. Ao contrário, perceber-se numa rede de interconexões e ligações com os demais é positivo para o sujeito moral231. Dessa forma, na ética do cuidado reforça-se a interpretação da ideia de dependência dos seres humanos em geral, da condição de vulnerabilidade potencial de todos eles e não apenas de grupos específicos. Carrasco, Borderías e Torns sustentam que a dependência humana – de mulheres e homens – não se restringe a grupos específicos dentro de uma população, mas é a representação da vulnerabilidade de todas as pessoas, algo inerente à condição humana, do nascimento a morte. É por isso que, ao invés da dicotomia dependência versus independência, dever-se-ia sustentar a concepção de interdependência social e humana entre todos, cada qual

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TONG, Rosemarie; WILLIAMS, Nancy. Feminist Ethics. In: Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2009. Disponível em: <http://plato.stanford.edu/entries/feminism-ethics/> Acesso em: 12 ago. 2013. [Sem paginação].

requerendo cuidados distintos, menos ou mais intensos conforme o momento do ciclo de vida em que se encontram232.

Outro pressuposto questionado na ética do cuidado é o epistemológico, segundo o qual quanto mais universal, abstrato, imparcial e racional for o conhecimento, mais ele condiz com a realidade ideal. A ética do cuidado revela os limites da dedução racional na aplicação de um princípio, valorizando o papel dos sentimentos morais. Seguindo na direção oposta ao raciocínio abstrato, a ética do cuidado mostra que é preciso prestar atenção ao concreto, aos sentimentos e emoções, às situações específicas, obtendo-se, com isso, uma representação real do modo pelo qual as pessoas veem e experimentam o mundo233. Não é objetivo da ética do cuidado um distanciamento da realidade vivida por mulheres em meio a prática do cuidado, mas valorizar esse cuidado e trazê-lo para fora da esfera doméstica ao qual se manteve confinado. A ética do cuidado dá importância a experiência humana paradigmática de estar envolvido em relações de dependência, ao invés de apenas olhar para os indivíduos enquanto sujeitos autônomos e separados uns dos outros234.

Uma das consequências práticas de uma ética do cuidado que contribui para a transformação das estruturas sociais patriarcais é a própria valorização dos trabalhos de cuidado na sociedade. Carrasco, Borderías e Torns observam que da mesma forma que a sociedade patriarcal desvaloriza a mulher, ela também desvaloriza tudo o que está associada a ela, por exemplo, o trabalho de cuidar, ainda que pago e comercializado. À medida que se compreende que o cuidado é algo universal, ou seja, do qual todos necessitamos em diferentes momentos da vida e que pode ser realizado por todos os sujeitos, pode-se obter uma maior valorização prática desse trabalho235.

Ainda assim, ao ser considerada como modelo alternativo àqueles baseados na aplicação de princípios universais, em considerações sobre justiça e no reconhecimento de direitos, a ética do cuidado pode ser limitada para dar conta adequadamente de toda uma estrutura social democrática e responder a todos os problemas morais, mesmo sendo ela reconfigurada para superar o patriarcalismo. Portanto, ainda que se reconheça a relevância da crítica feminista à teoria moral tradicional,

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CARRASCO, BORDERÍAS e TORNS, op. cit., 2011, p. 53. 233

TONG; WILLIAMS, op. cit., 2009, [s/p]. 234

ALCOFF; KITTAY, op. cit., 2007, 11 235

pode-se ainda questionar o por quê de, a partir do reconhecimento dos limites da teoria moral tradicional, a proposta do cuidado entendido como um modo alternativo de fazer ética, deva ser uma concepção ética apropriada para a superação dos limites de alcance da moral moderna tradicional e ocidental.