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Filosofia e interdisciplinaridade

Capítulo 3 CURRÍCULO – APRENDIZAGEM E CONHECIMENTO

3.1. Metodologia da Diretriz Curricular da Escola Ciclada – algumas opções

3.2.1. Filosofia e interdisciplinaridade

Rotineiramente afirmamos que o recurso a filosofia é um bom caminho para aqueles que almejam uma educação reflexiva. A introdução da filosofia no currículo da educação básica, justifica-se assim, por sua capacidade em promover ampla investigação sobre as idéias, considerando-as como hipóteses a serem investigadas a partir de abordagens conceituais. Objetiva-se através dela colaborar para o desenvolvimento da autonomia, convertendo a educação em vetor para a cidadania e emancipação.

Mas estaria a filosofia em condições de promover a conexão entre o conhecimento, a experiência e a subjetividade de cada um, condição elementar para a reflexão e emancipação? Pode, a filosofia, ser reputada como eixo para a interdisciplinaridade indispensável à visão contextualizada, que por sua vez é uma exigência para a convivência cidadã? Considerar a filosofia quanto às interlocuções que podemos com ela construir no processo pedagógico, constitui bom exercício para o encaminhamento de questões como as colocadas acima. Concerne a essa mesma perspectiva indagarmos sobre o que vem a ser o contexto interdisciplinar na ação pedagógica.

Procedimentos interdisciplinares no trato com os objetos de estudo nasceram da visão de que as áreas de conhecimento ou as especialidades científicas, tanto nas pesquisas científicas ou tecnológicas como nos conteúdos escolares, enfrentavam e enfrentam dificuldades ao abordarem seus problemas isoladamente. Nos dias atuais, cada vez fica mais claro que a realidade não é fragmentada, e sim um processo que não se encerra no contexto de uma única ciência; por sua complexidade, seu conhecimento pleno só se realiza ultrapassando ou transpassando diversas áreas do saber. Não é à toa o surgimento de diversas ciências novas, como bioquímica, biofísica etc. Ultrapassar as fronteiras edificadas pela visão solitária ou fragmentada de produção do conhecimento e sua utilização constitui o desafio das propostas interdisciplinares.

A prática interdisciplinar, educacional ou não, estrutura-se a partir da percepção da necessidade de abordagens interpretativas aliadas a conexões entre as metodologias, os limites e as possibilidades das disciplinas implicadas num problema ou num tema. Há de se levar em conta, entretanto, que o procedimento interdisciplinar promove o tangenciamento entre as características de cada área de conhecimento, sem contudo romper com suas especificidades, o que significa dizer que o sucesso interdisciplinar consiste na abertura das fronteiras disciplinares, mas não em ignorá-las. O diálogo interdisciplinar frutífero pressupõe a igualdade entre as áreas de conhecimento no que concerne a sua importância frente ao objeto de estudo, sem perder de vista suas identidades singulares no trato com o objeto.

Se a educação escolar não consiste na mera transmissão dos conhecimentos, se ao contrário disto, pretende-se como sistematizadora de interações intersubjetivas, ou seja, de trocas interpessoais, e como articuladora das prerrogativas do investigar, refletir e criar interdisciplinar sobre a cultura, então a perspectiva da introdução da filosofia nos currículos vai além do convencional ensino da história da filosofia.

É sob o mote de uma educação investigativa e criativa que a filosofia pode colaborar para a emancipação. De que forma? Comecemos pela negativa. Jamais como uma disciplina isolada, e sim como área de conhecimento impulsionadora das potencialidades humanas de criação, reconstrução, investigação e avaliação com vistas a uma postura mais razoável e consciente frente a realidade.

A noção de filosofia que pretendemos sugerir consiste na sua peculiaridade de esmiuçar rigorosamente o movimento do pensamento na investigação de idéias, percebendo-as como zonas com demarcações flexíveis, onde conjecturas podem ser exploradas em busca de significações e resignificações contextualizadas interdisciplinarmente.

Caracterizar a investigação filosofia não é tarefa simples, talvez até mais difícil que praticá-la. Sua peculiaridade está na maneira como realiza o processo de aproximação a seu objeto e as expectativas decorrentes dessa aproximação. Ao contrário das ciências, a filosofia não está diretamente preocupada em atingir verdades, mesmo que verdades provisória, sua grande fonte de inspiração e seu impulso gerador está mais na pergunta, e uma boa pergunta tem de ser radical, do que na resposta. A investigação filosófica é menos descritiva, não pretende dizer apenas como são as coisas, ou melhor, visa interpretá-las, reordenar seus elementos a partir de novos pontos de vista.

O aspecto pedagógico a ser observado na filosofia está no modo de investigação que ele proporciona, pois abarca uma relação ampla com a experiência, e também está na maneira como pode ser efetuado – intersubjetivamente, em comunidade de investigação – como nos ensina Lipman.

A proposta lipmaniana de se compartilhar dúvidas, certezas, pensamentos, criando na sala de aula o espírito de uma comunidade investigativa (comunidade no sentido de reunião de sujeitos preocupados e dispostos a discutirem interesses e problemas comuns) tem por base a noção de que o trabalho de pesquisa conjunto amplia concepções, ressalta diferenças que podem ser fundamentais, e acima de tudo, possibilita a experiência do diálogo e da autocorreção de posições, enfim, do compartilhar de preconceitos e conceitos que podem ser revisitados e avaliados sob novos prismas. A conseqüência pretendida através da comunidade de investigação consiste no experienciar o diverso, o estranho, o semelhante, o conhecido e o desconhecido, aprender a respeitá-lo e avaliá-lo sob critérios que ultrapassam a mera opinião ou gosto pessoal.

A comunidade de investigação filosófica, enquanto modelo de inquirição de conceitos, pode colaborar para a elaboração de critérios e de argumentos fundamentados em boas razões, ambos essenciais para o desenvolvimento de análises contextualizadas. Resumindo: torna-se auxiliar na reflexão na medida que instiga incertezas no movimento de construção do sentido que elaboramos para coisas, permite variadas interpretações sem perder de vista a coerência necessária para a elaboração de argumentos pertinentes.

Inquietação e dúvida filosóficas são aliadas imprescindíveis na educação escolar. Ambas desvelam caminhos interpretativos antes insondados ou simplesmente esquecidos nos convencionalismos e rotinas pedagógicas, apontam aspectos muitas vezes tidos como secundários, como por exemplo a historicidade do conhecimento, sua conexão com os valores e com a ética, com a subjetividade, com as crenças e com aquilo que se pretende praticamente dos conhecimentos.

Ao acentuar dúvidas, explorar a elasticidade de critérios gerados pela pluralidade de alternativas concomitantemente à exigência de autocorreção e coerência; a filosofia na educação areja os cruzamentos entre as áreas de conhecimento, condição essencial para a interdisciplinaridade. Nos currículos da educação básica pode agir como instrumento de curiosidade, criando a ambiência para a transversalidade dos temas e conteúdos abordados.

Não devemos, porém, negligenciar uma pergunta. Como fazer, como dar conta não só das áreas de conhecimento dos currículos, mas também da filosofia e, ainda, fazer tudo isso de forma interdisciplinar?

O primeiro ponto a ser observado está na própria atitude frente ao conhecimento e na maneira como encarar o trabalho em sala de aula. Você, professor, percebe que sua ação pedagógica pode ser tratada de forma interdisciplinar? Vislumbra aspectos filosóficos em seu conteúdo? Aproxima-se do interesse que seus alunos manifestam em sala de aula? Permite que eles dialoguem, discutam idéias, troquem experiências?

Estas questões são fundamentais à práxis pedagógica voltada para uma atitude interdisciplinar e para um trabalho que tenha na comunidade de investigação seu apoio metodológico.

O desenvolvimento cognitivo e o interesse dos alunos variam conforme as fases de crescimento: infância, pré-adolescência e adolescência. Na Escola Ciclada, por exemplo, essas fases estão respectivamente contempladas no I, II e III Ciclos. Os conteúdos a serem trabalhados precisam corresponder aos focos de interesses e ao desenvolvimento cognitivo.

Um caminho possível para o 1º Ciclo, analogamente ao que nos

propõe Lipman no Programa Filosofia para Crianças, consiste inicialmente em explorar a curiosidade, o deslumbramento das crianças frente ao mundo, ao seu cotidiano e sua própria identidade, estimulando-as a perceberem o que está a sua volta e a demostrarem e compartilharem o que percebem de forma verbal, escrita e artística. A filosofia aparece aqui na maneira como essa inquietação se realiza – num movimento que busca clareza na percepção e na construção das idéias.

No 2º Ciclo já é possível a exploração mais aprofundada do cotidiano,

da natureza e dos conteúdos disciplinares, abordando-os historicamente, culturalmente, politicamente. Nessa etapa escolar a diversidade e as relações existentes entre as coisas e pessoas podem ser tratadas acentuadamente; o recurso a filosofia torna-se de grande valia na medida em que através dela a interpretação dos sentidos das coisas assume matizes variadas. Elaboração de projetos conjuntos, busca de perspectivas variadas sobre um mesmo tema ou objeto e, principalmente, a preocupação em esclarecer como

as próprias idéias e argumentos são construídos constituem aspectos importantes nessa fase.

O 3º Ciclo é caracterizado por um trabalho incisivo em prol da

coerência das discussões, dos argumentos e das inferências deles extraídas, momento em que a filosofia colabora como modelo de organização de idéias e também como fonte de exploração lógica dos conceitos.

O que não podemos deixar de mencionar, ainda, é a presença em todos os ciclos da necessidade da abordagem ética dos conteúdos. A comunidade de investigação, ao referendar a filosofia, traz consigo um de seus aspectos essências, qual seja, uma gama enorme de temas e conceitos éticos. Por exemplo, toda vez que perguntamos sobre o significado da justiça, da corrupção, da mentira, do bem, dos valores morais em geral e da relação deles com nossas ações, estaremos tratando de questões filosóficas. Esses assuntos estão presentes em nossas vidas, em qualquer idade ou ciclo escolar, não podem, portanto ficarem fora da sala de aula.

O passo seguinte está na própria organização da aula. Uma aula que instiga para a investigação e para o diálogo é aquela que abre espaço para tanto; assim, uma vez proposta uma atividade, seja ela leitura ou produção de texto, confecção de trabalho artístico, um jogo etc, espaços de discussão, de troca e compartilhamento de idéias devem ser explorados. Nessas situações o professor age como um coordenador da conversa dos alunos, ajudando-os na organização de seus argumentos e justificativas, colaborando para que a discussão conjunta – em comunidade de investigação – atinja aprofundamentos através da solicitação de exemplos, contra-exemplos, analogias, exposição das fontes de onde determinado argumento é retirado e dos critérios em que está embasado. O professor transforma-se num incentivador e articulador do diálogo, sem, contudo, ser a palavra final, ser o dono da verdade.

Ensaiando uma síntese, podemos dizer que é indispensável à educação reflexiva a conexão entre a estrutura de uma determinada área de conhecimento e as interações sociais geradas nas experiência e interesses resgatados no convívio escolar. Esta conexão pode contar com a mediação filosófica como percurso interdisciplinar e de reconstrução dos sentidos (sociais, subjetivos, científicos) através da história dos conhecimentos, das experiências pessoais e coletivas e dos significados. Contudo, a possibilidade da filosofia agir em defesa da formação emancipatória e da cultura reside no modo como se dá a sua inserção na educação: ou como mero instrumento decorativo, sendo apenas mais um conteúdo a ser transmitido; ou como o espaço de reflexão e autoconhecimento a partir da investigação, da discussão e da leitura, permitindo o encontro com o diferente, com o passado, com o sujeito consigo mesmo e com o outro, sendo dessa forma capaz de promover o sentido genuíno da emancipação.

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