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3 REFERENCIAL PARA ANÁLISE DE UM INSTRUMENTO AMBIVALENTE

3.3 Financiamento compartilhado

O segundo aspecto do instrumento OUC destacado neste trabalho corresponde ao seu potencial para financiar desenvolvimento urbano de forma compartilhada entre os parceiros públicos e privados da operação por meio das contrapartidas, exigidas em função da concessão de exceções à legislação urbanística geral, cujos recursos são aplicados, exclusivamente, no perímetro da operação. Nesse sentido, a ambivalência do instrumento se dá na medida em que prevê distribuição dos ônus da urbanização, conforme diretrizes do EC, mas também por permitir a parceria entre o setor público e o setor privado, um dos pontos nodais do receituário do Planejamento Estratégico.

O Poder Público municipal, como coordenador da operação e como o ente deste formato de parceria que detém tal autoridade em matéria urbanística, concede parâmetros urbanísticos e edilícios menos restritivos na área da OUC, que interessam aos parceiros privados tanto quanto puderem ser convertidos em benefícios econômico – uma vez que a adesão privada à operação é facultativa. Conforme detalhado no item 2.2.1 desta dissertação, o valor de um determinado terreno está diretamente relacionado ao “quê, quanto e como” se pode construir ali e, portanto, as alterações legais que ampliarem estes direitos ampliam também a

possibilidade de benefício econômico dos proprietários ou dos que podem construir e comercializar estes imóveis.

No caso das OUCs, essa concessão de exceções urbanística não é gratuita26, mas atrelada à exigência de contrapartidas, cujos recursos são aplicados, exclusivamente, no perímetro da operação. Nesse sentido, o instrumento é celebrado como uma “solução” à falta de recursos públicos para investimentos em requalificação urbana. Para Montandon (2009, p.2) A oportunidade de obtenção de recursos junto à iniciativa privada em função das contrapartidas pagas pela concessão de benefícios na legislação urbana talvez tenha sido o motivo de dirigentes e políticos se interessassem pelas Operações Urbanas (...) com a prerrogativa de esses recursos serem destinados ao financiamento do desenvolvimento urbano.

A citação acima salienta o fato de que, em geral, as contrapartidas são exigidas dos parceiros privados de uma OUC, aqueles que viriam a ter os benefícios econômicos decorrentes dos parâmetros urbanísticos mais permissivos. Por isso mesmo, para além do seu potencial de financiar o desenvolvimento urbano, o instrumento OUC pode ser também estimado pelo seu potencial para recuperação da valorização imobiliária que decorra da ação do poder público (não necessariamente investimentos diretos, mas também da modificação de legislação urbanística). Contudo, EC não restringe a exigência de contrapartidas apenas dos parceiros privados de uma OUC; as contrapartidas serão exigidas daqueles que vierem a usufruir dos benefícios tais como a modificação de índices e características de parcelamento, uso e

ocupação do solo e subsolo, bem como alterações das normas edilícias. (BRASIL, 2001, Lei

Federal 10.257, art. 32º e 33º). Este ponto será retomado na análise do caso da OUC-JB, que tem como objeto um terreno público e parte dos usuários permanentes também públicos.

Um dos aspectos que respalda a exigência de contrapartidas no caso de OUCs corresponde à já referida valorização do solo urbano que não decorre do esforço do proprietário (FURTADO, 2003), mas sim da ação do poder público ou coletiva. Outro aspecto diz respeito à sobrecarga na infraestrutura: as exceções urbanísticas concedidas em OUCs – geralmente a concessão de potencial adicional de construção – implicam na permissão de adensamento construtivo que, por sua vez, leva à sobrecarga da infraestrutura (viária, transporte, saneamento, elétrica, etc.) que passa a demandar investimentos diretos para acomodar o adensamento proposto.

26 Bassul (2006, 2011, p.6) salienta que “ainda que certos efeitos das operações urbanas sejam

criticáveis, importa reconhecer que, anteriormente à vigência dessa nova ordem jurídico-urbanística, direitos de construir excedentes eram fartamente distribuídos ao capital imobiliário, sem nenhuma contrapartida de interesse

No caso desses investimentos em infraestrutura serem de responsabilidade do poder público – que, por sua vez, implica em potencial valorização imobiliária – Montandon (2009, p. 72) alerta que a recuperação de mais valias geradas por obras públicas é facultativa, “sendo apenas obrigatório o estabelecimento de contrapartida a ser exigida dos proprietários, usuários permanentes e investidores em função dos benefícios concedidos na lei da operação urbana”. Ou seja, além da valorização decorrente da flexibilização de parâmetros de uso e ocupação mais permissivos (para o que o instrumento prevê a exigência de contrapartida), a recuperação da mais valia gerada por obras públicas, assim como as mitigações referentes aos impactos negativos gerados pela própria intervenção (cabíveis a qualquer empreendimento de impacto, apesar não explicitamente prevista no instrumento) são relegadas à negociação caso a caso.

As OUCs podem prever, ainda, a emissão de certificados de potencial adicional de construção (CEPACs), prevista no Art. 34, que poderão alienados em leilão ou utilizados diretamente no pagamento das obras necessárias à própria operação. Este ponto foi menos explorado na presente dissertação, uma vez que o mecanismo não está previsto na OUC-JB.

Quanto à destinação dos recursos obtidos no âmbito da operação, o artigo 33º, §1º do EC define que devem ser aplicados exclusivamente na própria operação27. “As contrapartidas (...) constituirão então os recursos que o Poder Público utilizará para cumprir o programa de investimentos públicos para a área da OUC (e somente dentro de seu perímetro). ” (FURTADO, 2007, p. 256). Ou seja, o instrumento permite levantar recursos – oriundos, principalmente, da flexibilização da legislação urbanística, ou seja, da ação do próprio poder público que deve beneficiar a coletividade e não proprietários ou grupos particulares – e destina estes recursos para cumprir os objetivos previstos em lei da operação. Dessa forma, o instrumento OUC constitui-se como uma alternativa para financiamento do desenvolvimento urbano, com recursos que, em tese, não dependam exclusivamente de fundos públicos.

No entanto, a prática tem mostrado que, para viabilizar OUCs, tem sido necessária a mobilização de grandes montas de recursos públicos de naturezas diversas (financeiros e fundiários). Primeiramente, pela engenharia financeira do instrumento depender do interesse privado, conforme já discutido no item 3.2, as OUCs tendem a ser viáveis em áreas já valorizadas da cidade, onde a compra do potencial adicional de construção poderá se converter em benefício econômico. Via de regra, estas áreas são mais valorizadas justamente por já terem

27 As OUCs diferem de outros instrumentos que permitem, de fato, redistribuir para outras a áreas da

cidade os benefícios que correspondem a essa mais-valia recuperada, por meio, por exemplo, dos fundos de desenvolvimento urbano. Esta é uma das críticas ao instrumento OUC que aplica os recursos que correspondem à

recuperação da valorização imobiliária no mesmo perímetro de onde foram “recuperadas”, levando a efeitos de

recebido investimentos públicos para implantação de infraestrutura ou, não raro, de construção de equipamentos coletivos emblemáticos que dão início ao seu processo de revalorização e ressignificação. Estes investimentos públicos não são computados como ônus da operação, mas influenciam (e talvez condicionem) a escolha das áreas sujeitas ao regime de operação.

Quanto às contrapartidas, Furtado (2007, p.255) aponta que “não há regras ou limitações para a definição dessas contrapartidas”. Sales (2011) complementa, ao afirmar que “a contrapartidas financeira ou em obras peca justamente pela não precisão da correspondência ou conversão clara e prévia de valores financeiros e metros quadrados adicionais. ”

Em São Paulo, por exemplo, Montandon (2009) – com base nos relatórios da Secretaria Municipal de Planejamento28 – sintetiza que dentre os principais problemas identificados nas operações urbanas até 2001 estão a falsa expectativa de sustentabilidade financeira da operação urbana – uma vez que os tempos entre a realização dos investimentos públicos e a obtenção de recursos oriundos das contrapartidas geravam descompasso entre custos e receitas – e a falta de critérios objetivos para o cálculo de contrapartidas. Aponta, ainda, que a definição das contrapartidas, que deveriam ser a fonte dos recursos a serem utilizados pelo Poder Público para consecução dos objetivos previstos na operação, por vezes é relegada à negociação caso a caso o que tem inviabilizado a sustentabilidade financeira da operação. Em outro texto, Montandon (2007) critica a pouca eficácia na recuperação da mais-valia gerada em comparação aos investimentos públicos realizados (apud NOBRE, 2009, p. 204).

Quanto aos CEPACs, outro mecanismo de auferir recursos privados para financiar os objetivos de uma OUC, parece ter sido curiosamente “reinterpretado”, como no caso da OUC do Porto Maravilha no RJ:

Há dois anos, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) administrado pela Caixa Econômica Federal arrematava em lote único todos os Certificados de Potencial Adicional de Construção (Cepacs) da operação urbana Porto Maravilha. A venda garantiu o início das obras e serviços na Região Portuária por um período de 15 anos. A engenharia financeira não utiliza orçamento do Município do Rio e deu origem à maior Parceria Público-Privada do País. Hoje, com o visível crescimento do setor imobiliário na área, o arremate foi excelente investimento para o FGTS. A conclusão é do gerente Nacional de Fundos Imobiliários da Caixa Econômica Federal, Vitor Hugo Pinto. Em bate- papo com o Blog Porto Maravilha, o executivo esclarece o papel do fundo de garantia no sucesso do Porto Maravilha e explica de forma clara para experts e leigos como funcionam as operações financeiras que envolvem os novos empreendimentos. (Porto Maravilha. Entenda o Negócio.29)

28 SEMPLA, Secretaria Municipal de Planejamento. Relatórios dos estudos de reavaliação crítica e

proposição de elementos para elaboração de resolução normativa. São Paulo: SEMPLA, 2001.

29 Disponível em: <http://portomaravilha.com.br/materias/entenda-o-negocio/e-o-n.aspx> Acesso em

Além disso, algumas operações podem prever a utilização de terrenos públicos – como é o caso da OUC Joana Bezerra a ser analisada – que podem ser doados como uma espécie de contrapartida não-financeira da operação. Doação de terreno, nesse sentido, barateia sobremaneira o custo de produção de unidades imobiliárias, o que não é necessariamente repassado ao comprador ou beneficiário final. Essa questão será detalhada no Capítulo 5, a seguir.

Em síntese, o equilíbrio do financiamento compartilhado (entre os setores público e privado) para viabilizar as transformações urbanísticas propostas em uma OUC pode ser comprometido de duas formas distintas: (1) quando depende demasiado de recursos públicos, o que leva a questionamentos quanto à existência mesma de uma parceria; (2) quando a participação do setor privado é tanta que submete completamente a tomada de decisão aos critérios de rentabilidade do capital imobiliário/privado. Interessa, portanto, a este trabalho – para a análise do caso em foco – identificar em que medida o financiamento compartilhado delineado no Plano da OUC-JB distribui de maneira justa os ônus da urbanização (conforme a exigência da diretriz do EC), e em que medida reflete os “novos” mecanismos para direcionar recursos públicos em prol de interesses privados, segundo a lógica da cidade-empresa (aos moldes do receituário do Planejamento Estratégico).