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1.5. Utrum lex ordinetur semper ab bonum commune Questão 90 artigo 2 1 Argumentos

1.5.2.1. Finis ultimus

Como Bertelloni explicita, o debate sobre o fim último medieval se afastou do sentido original aristotélico. Tal sentido ainda hoje é fruto de disputa entre os especialistas. Mas por mais que se discuta se em Aristóteles o fim último é dominante (composto por somente um fim superior aos outros) ou inclusivo (composto por vários fins, o que faria do fim último um fim de segunda ordem, harmonizador dos fins de primeira ordem)133, as discussões evidentemente não passam perto de um fim sobrenatural134. O fim último em Aristóteles se dá no âmbito da vida humana e se       

131 Primum autem principium in operativis, quorum est ratio practica, est finis ultimus. ST Ia-IIæ,

q. 90, art. 2, resp.

132 Cf. supra Introdução. 133

Cf. ZINGANO, “Eudaimonia e bem supremo em Aristóteles”.

134 Tomás também não faz referência exatamente a um fim humano sobrenatural. Simplesmente

pelo fato do que nós chamamos usualmente de sobrenatural ser considerado por Tomás como natureza. É por esse motivo que Tomás pode falar da natureza de Deus. Para Tomás, é conforme a natureza que o homem goze de beatitude na outra vida. Chamaremos, portanto, de sobrenatural tudo aquilo que, em Tomás, seja da esfera do poder divino e esteja afastado da esfera do poder humano de ação.

circunscreve na atividade política possibilitada pela polis.

Vimos que nas duas principais obras de Tomás, a SCG e a ST, a condição do ser humano é a de um peregrino que retorna para Deus135. Vimos também que a alma humana, com a ação de suas potências (intelecto e vontade) tem condições para inteligir o que é o bem e ordenar os meios para que se possa chegar até ele. Temos que o ser humano, “ser voluntário e livre, opera sempre [...] com vistas a um fim do qual recebe seus atos e sua própria especificação”136.

Para Tomás, não há dúvidas de que existe um fim último para a vida humana (o que, no debate contemporâneo, significaria coloca-lo como um defensor do fim dominante em Aristóteles). Ora, as ações propriamente humanas são aquelas que distinguem o ser humano dos outros animais, visto que o homem é o dono dos seus atos: mediante a razão e a vontade, ficando definido o livre arbítrio a partir da interação de ambas. Como todas as ações que procedem de uma potência da alma são causadas pela potência em razão de um objeto e como o objeto da vontade é o bem e o fim, temos que todas as ações humanas são por um fim137. Tomás afirma que rigorosamente falando é impossível proceder até o infinito nos fins. Ora, todas as coisas que dependem entre si por natureza, retirada a primeira, desaparecem as demais que dependem dela. Isso fica claro nas causas motoras, que como não podem retroceder ao infinito, necessitam de um primeiro motor. No caso do apetite, deve haver um princípio para ele, visto que tudo o que se move, se move devido a outrem. Temos então que, retirado este princípio, o apetite permaneceria imóvel138. E como tudo que tende a algo tende a algo como a um fim, da mesma forma é necessário que exista o fim último, para não remontarmos a uma série infinita de fins139.

Não pode haver, tão pouco, uma série de fins que sejam considerados com fins últimos. A vontade humana não pode desejar ao mesmo tempo a diversos como fins últimos. A analogia que se faz é com o intelecto. O intelecto intelige a partir de princípios       

135 Cf. supra Cap 1, 1.1 e 1.2. 136

GILSON, El tomismo, p. 491.

137 Cf. ST Ia-IIæ, q. 1, art. 1, resp. 138 Cf. ST Ia-IIæ, q. 1, art. 4, resp. 139 Cf. GILSON, op. cit., p. 492.

naturais. A vontade, por sua vez, também é informada naturalmente sobre a existência do objeto desejado. E como toda a natureza tende para um único fim, o princípio do desejo humano tem que ser único.

Resta agora demonstrar em que, exatamente, se constitui o fim último do ser humano. O fim último da vontade deve ser aquele que satisfaça totalmente o apetite, a tendência natural humana. Não há alternativa. O bem desejado, para ser último, deve ser perfeito a ponto de saciar perfeitamente. Caso contrário, a atividade volitiva continuará desejando algo. E caso continue desejando algo, o bem encontrado não pode ser o último. Essa deve ser a característica do Soberano Bem: a plena saciedade.

Tomás afirma que o Soberano Bem, o fim último do home, não pode ser algo criado. A plena saciedade do apetite humano pressupõe algo que seja perfeito. Ora, nenhum ser criado carrega em si a perfeição. Como o objeto por excelência da vontade é o bem universal, assim como o do intelecto é a verdade universal, somente esse bem dotado de universalidade pode saciar plenamente. Evidentemente, o bem universal somente é encontrado em Deus, que guarda em si todas as perfeições. Ora, se o fim de todas as criaturas é Deus, a criatura intelectual tende a Deus de forma especial, conhecendo-o pela operação que lhe é própria, pelo fato da operação própria de qualquer coisa ser seu fim, o que é perfeitíssimo nessa operação será o fim último140.

Temos, então, que o fim último do ser humano é Deus. É possível falar de fim de duas maneiras. De uma maneira como a coisa desejada. Desejar algo é tender a um fim. Mas nem tudo o que tende a um fim consegue alcançá-lo. Neste primeiro modo, temos a separação entre o aquele que deseja e aquilo que é desejado. A segunda maneira de falar do fim é como a fruição da coisa desejada. Quando falamos do primeiro modo, estamos nos referindo a Deus. Já no segundo modo, como a fruição, o fim é algo criado no homem e existente nele, que possibilita ao desejante o pleno deleite do fim último. O fim último tomado enquanto a fruição, o deleite é a beatitude141.

A fruição que é a beatitude tem por essência a contemplação, pelo intelecto, das perfeições divinas. Isto pelo fato de, como vimos acima, o fim último ser conforme a operação própria do agente. No caso humano, a operação própria é atividade do intelecto.       

140 Cf. SCG III, cap. XXV, 2056-2057. 141 Cf. ST Ia-IIæ, q. 3, art. 1, resp.

Temos também que o intelecto se apresenta como motor de todas as partes do homem, porque ele move o apetite propondo o objeto. Temos então que o fim do intelecto é o fim de todas as ações humanas e tal fim último é a primeira verdade, que é Deus142. Desta forma, a essência da beatitude humana é a atividade do intelecto no conhecimento da verdade divina. Mas, por acidente, a beatitude tem o gozo que satisfaz a vontade143.

Neste ponto, temos condições de entender exatamente o que liga a razão prática citada por Tomás no artigo 2, questão 90 do DL com o fim último. A razão especulativa é diretamente envolvida com a beatitude. Ora, é a razão especulativa a responsável pelo que é considerado necessariamente. Como não há contingência em Deus, a beatitude está ligada à razão prática. A beatitude imperfeita consiste na participação “em alguns pontos particulares, de alguns dos caracteres que definem a verdadeira beatitude”144. A beatitude imperfeita é a que podemos ter nesta vida. Ela consiste, em primeiro lugar, na contemplação (relativa aos princípios das ciências especulativas) e, em segundo lugar, no intelecto prático, que ordena as ações e paixões humanas145.

Veremos quando tratarmos da lei natural, que a apreensão dos primeiros princípios da razão prática depende da participação de algo divino pelo ser humano. Por esse motivo a apreensão dos primeiros princípios da razão prática se liga, ainda que imperfeitamente, à beatitude possível nesta vida. Não por acaso, Tomás define a lei natural como “a impressão da luz divina em nós”146. A devida apreensão de tal bem, a luz divina, significa fruir da beatitude possível nesta vida, ainda que de forma mais limitada que a proporcionada pela razão especulativa.

A beatitude proporcionada pela razão prática significa distinguir a luz divina que se encontra em todo ato moralmente defensável que a razão humana for capaz de apreender. Pensada desta forma, a beatitude proporcionada pela razão prática terá importância vital para a lei tomada em particular e também para a política em geral. Ora, se o ato moral humano é proporcionado por participação na razão divina, evidentemente a       

142 Cf. SCG III, cap. XXV, 2064. 143

Cf. ST Ia-IIæ, q. 3, art. 4, resp.

144 GILSON, El tomismo, p. 495. 145 Cf. ST Ia-IIæ, q. 3, art 5, resp. 146 ST Ia-IIæ, q. 91, art. 2, resp.

política, como parte da filosofia moral, também é reflexo da luz divina apreendida pela razão humana. Veremos ainda neste capítulo que, para Tomás, a humanidade considerada em estado de inocência, possuiria uma forma legítima de governo (dominium).

Veremos também que a consideração do melhor regime político na ST se encontra de forma mais completa não na lei humana, onde se deveria esperar, mas na lei divina, que auxilia o homem a apreender os princípios da lei natural. Podemos também afirmar, de acordo com o Prólogo ao DL, que se a lei pode ser considerada um meio de instrução divino para o homem, o que há de divino na lei não pode se restringir à lei revelada, que é a lei divina. Mas o princípio divino atinge toda lei que respeita o conceito tal como formulado por Santo Tomás. É de nosso entender, que, tendo como base esta concepção de beatitude imperfeita, Souza Neto pode afirmar de forma sucinta e eficaz que toda lei é “regida pelo Sumo Bem como fim último”147.

Bastit discorda dessa linha de interpretação. Mantendo-se em sua linha de laicizar ao máximo a interpretação que faz da obra de Tomás, ele afirma que a lei,

por conduzir ao fim último, só produz esse efeito mediante a participação de todos no bem comum. […]. Toda lei encontra sua fonte nessa realidade objetiva: o bem comum que é o fim último148.

Pelo que foi discutido até o momento, cremos ter claro que essa posição não convém. Bastit não considera o significado que liga o conceito de fim último à fruição do Bem Supremo. Vimos que tal fruição é possível ainda que vivida imperfeitamente na vida terrena. Cremos que é possível, agora, entender o desenvolvimento que Tomás propõe na resposta, quando afirma:

o primeiro princípio no que concerne ao operar, o qual concerne à razão prática, é o fim último. Por sua vez, o fim último da vida humana é a felicidade ou beatitude […]. Donde ser necessário que a lei vise sobretudo à beatitude149.

Se, no artigo precedente, a lei obriga a agir, dado o seu caráter irrefutavelmente racional, ordenando as ações para o fim, temos aqui que, definido o fim último como a

      

147 SOUZA NETO, op. cit., p. 9. 148 BASTIT, op. cit., p 49. 149

Est autem ultimus finis humanae vitae felicitas vel beatitudo, ut supra habitum est. Unde

felicidade humana oubeatitude, a lei, consequentemente, visa à beatitude ou à felicidade.