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3.2 SRA DALLOWAY , DE MARLEEN GORRIS

3.2.2 Flashback

O romance é desenvolvido em grande parte por meio do uso constante da técnica do flashback, já que o ponto central da narrativa é a descrição de processos mentais e neles se inserem a memória e as reminiscências dos personagens. O uso da técnica está condicionado à

relação tempo/personagem. A narrativa fílmica também usa esse recurso, mas o flashback, além de estar condicionado à mesma relação tempo/personagem, apresentada no livro, tem um novo papel, isto é, contribui para a composição do novo formato narrativo. Explica-se: a alternância de processos mentais do presente e do passado dos personagens, que no livro é apenas a apresentação dos fluxos de consciência, no filme, a alternância de imagens assume também a condição de parte integrante da história e ajuda a contá-la.

Como um exemplo ilustrativo do uso do flashback, podemos voltar à cena em que Septimus está na guerra, no início do filme, indicando a transformação de reminiscências em episódio, conforme visto anteriormente.

Todd Pruzan (2002, p.4), ao entrevistar Eileen Atkins, a roteirista, leitora e conhecedora da obra de Woolf, questiona a sua surpresa ao assistir o início de Sra. Dalloway e perceber que, diferente do romance cujo início apresenta Clarissa dizendo a Lucy que irá comprar flores, o filme começa com essa cena de Septimus nas trincheiras de guerra. Atkins responde que queria, com isso, deixar clara para o espectador, desde o início, a ligação entre Clarissa e Septimus. A roteirista ainda argumenta que outros indícios sobre as mortes na guerra foram suprimidos nas primeiras cenas da caminhada de Clarissa pelo parque.

Podemos inferir que essa preocupação com a clareza na construção do roteiro tem uma intenção de lidar com referências temáticas diretas do romance. Mas a nova forma de organização é particular e torna a narrativa mais tradicional. As técnicas utilizadas são as mesmas, mas o que elas representam é diferente. Enquanto no romance o leitor adentra as reminiscências ou memória dos personagens, no caso dos flashbacks, ou detém-se a um detalhe importante de um momento de vida de um personagem, no caso do close-up, por meio da criação de imagens mentais, no filme, essas representações são icônicas ao reproduzirem o tempo, o espaço, os personagens, o figurino e os próprios efeitos, capazes de criar a ilusão da

realidade no cinema. Assim, a disposição de quadros visuais dá à reescritura do romance um caráter mais convencional na organização do material, oriundo das consciências.

No romance, o flashback se apresenta logo no início da narrativa quando Clarissa abre a porta para ir à rua, e o simples barulho do ranger da janela a faz imediatamente reportar-se ao passado:

And then, thought Clarissa Dalloway, what a morning – fresh as if issued to children on a beach.

What a lark! What a plunge! For so it had always seemed to her when, with a little squeak of the hinges, which she could hear now, she had burst open the French windows and plunged at Bourton into the open air. How fresh, how calm, stiller than this of course, the air was in the early morning; like the flap of a wave; the kiss of a wave; chill and sharp and yet (for a girl of eighteen as she then was) solemn, feeling as she did, standing there at the open window, that something awful was about to happen; looking at flowers (WOOLF, 1976, p. 7).50

Por meio dessa descrição direcionada do pensamento de Clarissa, o leitor é conduzido a penetrar na sua mente, a qual é acometida por uma sensação de recordações e vislumbres que desencadeiam o fluxo da consciência. A condução do leitor ao universo do personagem é também uma estratégia para que ele perceba as imagens mentais que fazem parte do desenvolvimento do próprio romance.

Na tradução do mesmo fragmento, o uso das imagens foi o principal recurso de transmutação do fluxo. As imagens oscilam entre o presente e o passado da Sra. Dalloway. Sua atitude de abrir as vidraças a reportou aos dezoito anos, em Bourton, quando ela era simplesmente a jovem Clarissa sem o sobrenome do esposo. O que era uma impressão, um pensamento, passa a ser verbalizado na tela:

Sra. Dalloway: What a lark! What a plunge! Clarissa: What a plunge! 51

50 “Mas que manhã, pensou Clarissa Dalloway - fresca como para crianças numa praia. Que frêmito! Que

mergulho! Pois sempre assim lhe parecera quando, com um leve ringir de gonzos, que ainda agora ouvia, abria de súbito as vidraças e mergulhava ao ar livre, lá em Bourton. Que fresco, que calmo, mais do que o de hoje, não era então, o ar da manhãzinha; como o tapa de uma onda; como o beijo de uma onda; frio, fino, e ainda (para uma menina de dezoito anos que ela era em Bourton) solene, sentindo como sentia, parada ali ante a janela aberta, que alguma coisa de terrível ia acontecer; olhando para as flores ...” (1980, p.7).

51 Sra. Dalloway: Que atrevimento! Que mergulho!

A linguagem descritiva é restrita e as imagens têm maiores efeitos porque pelo cenário fica clara a diferença do tempo. Por meio da fala de Clarissa, o espectador fica conhecendo o produto da mente da personagem. A descrição densa dos processos mentais nesse momento vai para as telas de forma mais direta devido à junção do texto às imagens. Vejamos:

Os processos mentais, que são a base do construto narrativo de Woolf, são colocados na narrativa do filme com a finalidade de fornecer dados sobre a história vivida por Clarissa. Por meio do uso dessa estratégia, o objetivo na narrativa fílmica não é mais simplesmente mergulhar no universo psicológico de Clarissa, como no romance, mas, além disso, contar a sua história. A disposição de imagens entre presente e passado, aqui, funciona também como material estruturante da narrativa. Dessa forma, o texto cinematográfico, mais uma vez, assume uma nova postura em relação ao romance. A presença da imagem de Clarissa em dois momentos diferentes de sua vida, usando a mesma fala, reforça o desenvolvimento do segundo pólo argumentativo do filme, pois trata das suas reflexões.

O filme toma outra forma que difere do livro, quanto à questão da interação entre os tempos interno e externo, já que a ênfase recai sobre o segundo. A ênfase dada ao tempo externo é um indício da nova proposta da narrativa. O flashback já não é mais simplesmente a descrição de processos mentais, a técnica também assume a função de elemento importante da

montagem do enredo. Um exemplo pode ser visto na cena em que Clarissa recebe de Lucy um bilhete de seu marido Richard Dalloway, falando de um almoço que teria com Lady Bruton. O fato leva a personagem a um descontentamento e, consequentemente, a refletir sobre a sua condição:

Fear no more the heat of the sun, nor the furious winter’s rage52. So all over

for me. Sheets stretch in the bed narrow.53

A personagem é posta diante do seu cotidiano, com todos os inconvenientes do meio social no qual está inserida. O exemplo em questão reforça também o desenvolvimento do segundo pólo argumentativo da narrativa. Enquanto o estado mental de Clarissa vai sendo mostrado em voice-over, a sua história vai sendo contada para o espectador. O tempo, como no romance, é real. Clarissa é afetada por um fato trivial de sua vida, e as lembranças a transportam para o passado. Após abrir o guarda roupa, pegar um vestido e ficar em frente do espelho, o tempo da narrativa é transferido para um outro tempo, ou seja, o da mente de Clarissa pensando em suas conversas com Sally, sua grande amiga:

Sally: All we need to do is to abolish private property, because it’s that really the cause of all the problems. Let’s try to write a letter to The Times about it. Then, we should find a society to abolish private property. And we will live it ever and ever!

Clarissa: This house as well?

Sally: You always look so virginal, Clarissa Clarissa: I’m virginal.54

52 Este verso da canção ‘elegy’ da obra Cymbeline, de William Shakespeare é recorrente em Mrs. Dalloway.

Segundo Kettle (1973, p.16), este verso sugere a vulnerabilidade de Clarrissa diante das situações por ela vividas.

53 “Não tema mais o calor do sol... nem o furor do inverno. Está tudo acabado para mim. Os lençóis se esticam, e

a cama se estreita.”

54 Sally: Precisamos abolir a propriedade privada... porque ela é a causa de todos os problemas. Vamos escrever

para o “Times” sobre isso. Depois fundaremos uma sociedade para abolir a propriedade privada... Para todo o sempre.

Clarissa: Esta casa também?

Sally: Você sempre tão virginal, Clarissa! Clarissa: Eu sou virginal

O espectador se depara com as reminiscências de Clarissa e entra em contato com situações de seu passado. Ao fazer associações das reminiscências com o presente da personagem, o espectador vai construindo o segundo pólo argumentativo, o das reflexões de

Clarissa. Podemos ainda observar a presença recorrente do espelho como elemento intermediador das diferentes perspectivas temporais da narrativa, ou seja, o objeto faz constantemente a transição das imagens entre o presente e o passado. A personagem é posta diante dela mesma como uma forma de percepção de si. A estratégia reporta-se diretamente a uns dos temas do romance. Evidencia-se também, por meio desse pensamento de Clarissa, uma tentativa da narrativa de inserção na questão social. A conversa entre as personagens reforça, por um lado, a consciência política por parte de Sally ao defender um posicionamento audacioso e completamente fora dos padrões da sua realidade, e, por outro, a completa alienação por parte de Clarissa que parece concordar com Sally, mas, que ironicamente, não pretende abrir mão da casa em que vive.

Além da apresentação das realidades de Clarissa e Sally, existe uma realidade externa a priori, o próprio cenário, mas o contraste do espelho que o reflete pode ser tomado como símbolo, um dos pontos referenciais na narrativa, usados por Gorris; esse símbolo funciona como uma tentativa de tratar da temática existencialista de Woolf. O pensamento da personagem é mostrado em voice-over.A presença das conjecturas mostra uma certa inquietação por parte da narração em lidar com o seu silêncio profundo. Isso enfatiza a relevância desse estado de mente apreendido pela própria personagem e que o espectador tanto busca desvendar.

O close-up também tem participação importante em algumas situações da construção narrativa de Sra. Dalloway, porque aproxima o espectador dos momentos intimistas dos personagens. Segundo Bela Balázs (1992, p.261), close-ups são sempre revelações dramáticas do que está realmente acontecendo além das aparências superficiais, expressando a sensibilidade poética do diretor. No filme, manifesta-se, portanto, desde o início da narrativa da seguinte forma.

A partir da morte de Evans, um close-up de Septimus mostra a sua reação diante do fato. Instaura-se, então, na narrativa do filme, o primeiro dos seus argumentos, ou seja, os efeitos da guerra.

O segundo pólo argumentativo se estabelece a partir da cena em questão. Do espaço da trincheira e do horror, por meio de um corte, há a transferência da face de Septimus para Clarissa, no espaço confortável do seu quarto. A câmara se movimenta lentamente até enquadrá-la num plano americano, diante do espelho:

Clarissa está imersa em suas reflexões, que são repassadas para o espectador por meio da narração em voice-over:

Those ruffians and gods shan’t have it all their own way. Those gods who never lose a chance of hurting, thwarting and spoiling human lives are seriously put out before even saying you behave like a lady. Of course now I think there are no gods. There’s no one to blame. So very dangerous to live for only one day.”55

O foco sobre o pensamento e as imagens de Clarissa consolida um espírito nostálgico que permeia todo o filme. Estamos chamando de espírito nostálgico a atmosfera de lamentação e saudosismo de que a personagem é acometida. Esse espírito é também reforçado pela presença da música que é introduzida mesmo antes da primeira cena. Passa a ser constante e funciona como elemento de captação dos momentos de intimidade dos

55 Aqueles deuses rufiões não vão ganhar desta vez. Aqueles deuses que nunca perdem uma chance de magoar,

esmagar e estragar vidas humanas... Ficarão contrariados se você continuar a agir como uma dama. Mas agora que não acredito em deuses, não há quem culpar. É tão perigoso viver esperando um só dia!”

personagens, contribuindo para dar um tom dramático a esses momentos. O movimento lento da câmara em direção à personagem a focaliza no espelho. A presença do espelho se configura como símbolo importante que traduz a idéia do olhar para si, recorrente nesse dia, tanto de Clarissa quanto dos outros personagens. Isso ocorre porque o espelho, enquanto objeto, emoldura o processo de reflexão vivenciado pelos personagens, ao longo da narrativa, e confunde-se com o próprio objeto do desenvolvimento narrativo, como reforça John Harrington (1978, p.149), o símbolo evoca uma rede de significados interrelacionados.

A idéia de nostalgia que se instaura no filme se diferencia do texto de Woolf, pois, por meio da linguagem, o ritmo das reminiscências no romance não produz um efeito de lamentação como as imagens em close-up parecem produzir. Com a introdução de Sra.

Dalloway, o espectador tem o primeiro contato com a intimidade da personagem e capta os primeiros indícios da construção narrativa. Com Clarissa, diante do espelho, olhando para dentro de si, a descrição de seus processos mentais antecipa, de certa forma, para o espectador, o argumento da narrativa cinematográfica.

A antecipação foi usada no filme para direcionar alguns pontos da narrativa. Para discutir a questão da guerra, por exemplo, a utilização de diálogos também foi uma das formas de apresentação. Assim, o material que estava no nível da ‘pré-fala’ (consciência) (PIRES, 1985, p.148) dos personagens foi transformado em material lingüístico verbal. O que era pensamento individual passou a ser elemento de construção do enredo por meio de diálogos entre os personagens. É o caso desse fragmento do diálogo entre Clarissa e Hugh, comentando a perturbação mental de Evelyn, a esposa de Hugh:

Hugh: No, nothing serious. She is just a good deal out of sorts. The war may have gone, but there is still the echo of it. The Bexborough’s boy was killed. And she is very close to Lady Bexborough, of course. And Evelyn takes things badly.

Mrs. Dalloway: Yes, one does still hear dreadful stories.56

56 Hugh: Não. Nada sério. Ela só está bastante aéria. A Guerra pode ter acabado, Mas o seu eco persiste. O

garoto dos Bexborough morreu e ela, claro, é muito amiga de Lady Bexborough. E Evelyn não reage bem a notícias ruins.

Mrs. Dalloway: Sim... Ainda se ouvem histórias terríveis.

Podemos perceber que a tradução das questões sobre a guerra é também sistematizada por meio do discurso dos próprios personagens. No livro, os diálogos se confundem com o que os personagens pensam, reafirmando a natureza impressionista da escrita de Woolf. No texto cinematográfico, os diálogos são mais contundentes, mais visíveis, caracterizando uma forma própria de narrar o discurso da guerra que está presente no romance, criando impacto na narrativa, e tornando o filme mais dinâmico.

Como podemos ver, o texto de Mrs. Dalloway traduzido para o cinema materializou o discurso da guerra como um dos elementos integrantes no desenvolvimento do conjunto narrativo. Observa-se, portanto, que, por meio dessa articulação do discurso, criou- se uma estrutura significante composta de diálogo e imagens. Assim, o que era digressão passou a ser uma parte importante do enredo do filme.