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3.2 SRA DALLOWAY , DE MARLEEN GORRIS

3.2.3 Voice-over

A narração em voice-over, embora tenha sido pouco usada em Sra. Dalloway, tem a sua função em algumas situações do filme e interfere no resultado final da narrativa. Os processos mentais de Clarissa são apresentados por meio dessa técnica, ou seja, os personagens são mostrados na tela, pensando, e as suas conjecturas são mostradas em voz alta para o espectador.

Eliana Franco (2001, p.293), ao discutir a problemática da definição do voice-over e o seu emprego nos estudos de tradução, reconhece que parte da dificuldade terminológica dá-se pelo fato de o conceito vir dos estudos fílmicos (como técnica narrativa) em que não

implica em atividade de tradução. Ao ser tratado como tal, o voice-over passou a ser visto como a tradução que é posta simultaneamente em cima da voz original. Assim, pode-se dizer que tanto nos estudos fílmicos quantos nos de tradução, o termo voice-over seria a idéia de que há uma voz sobre algo.

A autora, no entanto, levanta um outro ponto que seria a mudança de perspectiva que o termo assume na tradução audiovisual, porque a natureza da ‘voz’, e do ‘algo’ tem mudado, drasticamente, o que altera a função do voice-over como é concebido nos estudos fílmicos. Franco reforça: “from an invisible solitary voice– the narrator’s/commentator’s – delivered over images, to an invisible parallel voice – the translation performer’s- superimposed on a visible voice, the on-screen source speaker’s” (p. 293).57

57 de uma voz solitária invisível – a do narrador/comentarista – distribuída sobre as imagens, para uma voz

paralela invisível – a do tradutor – sobreposta sobre uma voz visível, a original do falante na tela.

Em Sra Dalloway, a voz dos personagens são os próprios pensamentos em muitas situações do filme. Por essa razão, estamos, aqui, chamando de narração em voice-over todas as apresentações dos monólogos interiores dos personagens. O voice-over é, normalmente, usado para lidar no cinema com a apresentação de processos mentais. Embora essa técnica se apresente logo na primeira cena do filme, não tem presença marcante na tradução do fluxo da consciência no texto fílmico.

Sarah Kosloff (1988, p.12-13) apresenta alguns argumentos para mostrar que o

voice-over não é atualmente muito desejável no cinema. Parte da idéia principal de que a técnica sucumbe a imagem, quer dizer, mostrando somente, sem comentar, é que o espectador tem a comunicação efetiva com as imagens e interpreta o seu significado, por elas mesmas. Com o voice-over, há uma tendência a um direcionamento dessas imagens pela subjetividade do narrador. Este seria um princípio de parcialidade que, segundo a autora, é validado por uma noção tradicional da semiótica de que as imagens têm uma relação diferente e mais aproximada com os significados do que as palavras. Neste sentido, as imagens podem ser

vistas como mais naturais ou mais objetivas. Esse argumentado é reforçado no filme

Adaptação, de Spike Jonze (2002) na cena em que um professor de roteiro contesta o uso da técnica de voice-over por considerar que esta torna o filme mais subjetivo e voltado para os personagens em detrimento da ação. A posição tomada pelo filme Sra. Dalloway pode ter relação direta com a discussão de Kosloff que chega a afirmar que se trata de um tipo de narração que pode ser muito eficaz no cinema, mas se for usado com certas restrições (p. 12). Se levarmos em consideração que o romance é basicamente constituído de monólogos internos, para reproduzir as ‘falas’ internas dos personagens, era de se esperar no filme um uso muito mais acentuado da técnica de voice-over na transcrição dessas ‘falas’. No entanto, são poucos os momentos em que a diretora usou esse recurso. Parecem-nos evidentes os efeitos da redução do uso dessa técnica para a tradução do romance nas telas. Em muitas situações do filme, em que o desenvolvimento narrativo lida diretamente com o que está na mente dos personagens (o que, consequentemente, caberia, de um modo geral, o uso do voice-

over), foi dada ênfase na articulação de diálogos ou imagens, contribuindo para conferir à narrativa do filme uma proposta diferente do romance.

Outras pistas podem nos dar esclarecimentos quanto ao uso limitado de voice-over no filme. Um ponto importante é a própria interferência direta da roteirista. Para Eileen Atkins (2002, p.3), a primeira questão é que o uso de voice-over em filmes tende a ser visto como um fracasso, tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos. Embora esse quadro tenha se modificado um pouco, principalmente, nos Estados Unidos, devido às séries de TV, ela optou por tornar a técnica a mais rara possível na narrativa e, ao contrário de Woolf, usar mais diálogos. E se justifica:

I had to make my own style of the thing. I’d allowed myself Mrs. Dalloway’s thoughts, but if we’d started having Peter’s thoughts, and her

husband, his thoughts as well – then we were lost. It would be a mishmash (Atkins apud Pruzan, 2002, p.3). 58

A roteirista acrescenta que dois anos depois, quando Marleen Gorris foi dirigir o filme, após ter ganhado o Oscar pela direção de A Excêntrica Família de Antônia (1996), em que o uso do voice-over foi bem sucedido, a primeira pergunta que ela fez foi o porquê de tão pouco uso da técnica. Mas, ela manteve a sua posição:

[...] But I’ll be considered a failure if I have to use voiceover.” And she couldn’t understand it. In the end, she came up to me and said she wanted everybody to have voiceovers, all the characters. And I said, “No, I won´t let it be done that way (apud Pruzan, 2002, p.3). 59

Essas questões levantadas por Atkins são bastante esclarecedoras quanto ao pouco uso da técnica na narrativa fílmica. A roteirista parecia estar atenta aos seus efeitos e ao que ela representa nos contextos de chegada. Esse fato parece ter sido decisivo na sua escolha, mesmo tendo consciência da mudança de foco que traria na narrativa de Woolf. Um outro ponto que merece destaque é a sua preocupação com a recepção do texto por parte do espectador pela sua insistência na sistematização e organização dos processos mentais, bastante importantes no romance, assim como a recepção da técnica pelo público no sistema de chegada, conforme argumenta em seguida: “Or you start having everybody´s voice-overs – but then you start saying, well, why is it a movie?” (Ibidem).60 Podemos inferir, por meio dessa fala, que Atkins tem uma preocupação em tratar da narrativa de Sra. Dalloway realmente como narrativa fílmica e não como um “romance filmado”. Essa interferência estilística tem efeito importante na concepção do projeto narrativo.

58 Eu tive que ter o meu próprio estilo na empreitada. Eu me permiti aos pensamentos da Sra. Dalloway, mas se

tivéssemos começado a ter os pensamentos de Peter, e os do marido dela, os pensamentos dele também - ficaríamos perdidos. Seria uma confusão (p.3).

59 Mas eu serei considerada um fracasso se eu tiver que usar voice-over. E ela não conseguia entender isso.

Finalmente, ela veio até mim e disse que queria voice-over em todos os personagens. E eu disse não. Não faria dessa forma