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3.2 SRA DALLOWAY , DE MARLEEN GORRIS

3.2.1 Linearidade (organização narrativa)

A descrição dos momentos de vida dos personagens é feita de forma linearizada, como se houvesse uma intenção de facilitar a sua leitura por parte do espectador. Partindo desse pressuposto, questionamos a natureza da construção da narrativa fílmica, considerando o fato de que aspectos vanguardistas de uma narrativa moderna de grande impacto no início de século passado foram reescritos por uma narrativa mais tradicional no cinema na década de 90.

O ponto de partida da nova construção do texto foi o uso da técnica de antecipação (flashforward) para enfatizar o estado mental dos personagens principais logo no início do filme e direcionar, de certa forma, a narrativa. Fica clara desde o início do filme, por meio da apresentação de Septimus e Clarissa, a delineação de dois pólos argumentativos que vão nortear todo o percurso narrativo: os efeitos da guerra e o repensar de toda uma existência. Septimus representa o primeiro e Clarissa, o segundo pólo. A oposição que marca os personagens é um dos principais fios de condução da narrativa. Os temas em questão são os mesmos desenvolvidos no romance. Entretanto, a forma como são distribuídos ao longo da narrativa é outra.

A discussão da situação da Inglaterra após a Primeira Guerra Mundial é feita, tanto no texto de Woolf, quanto no de Gorris, como elemento importante condutor de todo o

processo narrativo, mas o uso da técnica de apresentação desse elemento é diferente nas duas narrativas. No romance, a discussão está sempre ligada às reflexões individuais e às reminiscências dos personagens. Ou seja, há uma maior subjetividade, dando um tom menos realista. A presença do fato é apenas fruto de uma realidade interna deles, ou seja, apresenta- se apenas como idéia subjacente ao desenvolvimento narrativo. Logo no início do romance, podemos perceber isso por meio das conjecturas de Clarissa Dalloway e das suas impressões pessoais acerca da guerra:

For it was the middle of June. The War was over, except for someone like Mrs. Foxcroft at the Embassy last night eating her heart out because that nice boy was killed and now the old Manor House must go to a cousin; or Lady Bexborough who opened a bazaar, they said, with the telegram in her hand, John, her favourite, killed; but it was over; thank Heaven – over (WOOLF, 1976, p.8)40

Esse fragmento apresenta um caráter introspectivo, que funciona como indício de um aspecto bastante freqüente na escrita de Woolf. Clarissa se detém sobre a questão dos efeitos da guerra, e, mais especificamente, sobre a dor de Mrs. Foxcroft e Lady Bexborough pela morte de seus familiares. Apresenta-se por meio dessa descrição do pensamento de Clarissa uma convergência de imagens da situação da guerra. Embora trate-se do mesmo assunto, Clarissa aponta particularidades do ponto de vista de Mrs. Foxcroft e Lady Bexborough. Isso representa uma reação do romance ao período do pós-guerra na Inglaterra nos anos 20, em que os efeitos devastadores estavam por toda parte, manifestando-se de várias formas, seja por meio das neuroses, dos próprios danos físicos dos ex-combatentes e das mortes que separaram familiares e amigos.

A questão da guerra no filme se transforma num forte apelo visual, e o que era apenas reflexão dos personagens passa a ser um elemento constitutivo do enredo do filme. A

40 Pois era em meados de junho. A guerra está acabada, exceto para alguns, como Mrs. Foxcroft, ainda a última

noite, na embaixada, devorando a sua mágoa, porque fora morto aquêle belo rapaz e o velho castelo deveria agora passar para um primo; ou Lady Bexborough que inaugarava uma quermesse, diziam, tendo na mão o telegrama, de que John, o seu predileto fora morto; mas estava acabada, sim; graças a Deus – acabada. (1980, p.8).

primeira cena mostra a imagem de Septimus e de seu amigo Evans, lutando na Primeira Guerra Mundial, na Itália, em 1918. Na mesma cena, a morte de Evans é apresentada com os gritos desesperados de Septimus, tentando evitar a morte do amigo: “Evans! Don’t come!”41. Vejamos:

Essa cena reproduz um momento do passado do personagem. É um flashback que apresenta para o espectador o primeiro indício do desenvolvimento narrativo do filme. A cena em questão não mostra Septimus no presente, e sim uma experiência sua do passado. Com essa estratégia, Gorris traz o passado diretamente para a tela e negocia com o texto de Woolf (por introduzir um tema importante do livro) e com o espectador, por transformar uma reminiscência num episódio.

Na tradução de Gorris para o cinema, o romance de Woolf foi redimensionado. A proposta de enredo mínimo, muito mais centralizada nas impressões sobre os fatos do que nos fatos em si, transformou-se numa história. Na proposta cinematográfica, as “histórias” individuais não são apenas pretexto para o desenvolvimento narrativo, como no livro, são

41

Septimus: Evans! Não se aproxime!

agora parte importante para a instância narrativa do filme. Assim sendo, a técnica de combinação e organização dos “sintagmas” do filme (METZ, 1976, p.201), a montagem, teve outro enfoque. A manipulação desses “sintagmas” constitui um outro objeto, um filme que apresenta um enredo com uma preocupação maior com o arranjo linear.

Acrescente-se, a esse fato, a necessidade de adequação do romance aos novos ditames da linguagem do cinema tais como a ação e o caráter visual. Esses dois aspectos constituem-se elementos importantes para a mudança de foco na estrutura da narrativa. Ao submeter o texto de Woolf ao sistema cinematográfico, a idéia de enredo mínimo tende a ser diluída, pois uma ação, por menor que seja, passa a ser incorporada à tela. A criação e a organização das imagens visuais, por sua vez, também mudam o foco na estrutura na medida em que sugerem uma maior dramaticidade ao texto. Por meio da nova estrutura, a diretora tentou captar determinados elementos que julgou fundamentais para o entendimento do romance e construiu o seu próprio texto e, não, necessariamente, teve como preocupação a “fidelidade”.

Uma posição tomada na tradução fílmica, com relação às questões mencionadas nos fragmentos acima apresentados, foi a de enfatizar a organização temporal interna da narrativa e segmentar as oscilações entre os fatos do presente e os do passado. Se, por um lado, o texto cinematográfico se preocupou em estruturar essa organização do material temporal no nível interno da sua narrativa, por outro, desconsiderou a articulação da simultaneidade dos vários ‘tempos’ nos quais as perspectivas dos personagens se entrelaçam. A presença do movimento constante das imagens de diferentes tempos entre as realidades internas e externas dos personagens confere à narrativa cinematográfica um caráter mais elaborado de ação, não observado no romance.

O texto que se apresenta na tela é um drama romântico e já não tem como preocupação principal os propósitos experimentais do romance, muito embora estabeleça

algumas relações com ele. Vale enfatizar, aqui, que o tempo de recepção dos dois textos é diferente. O tempo do livro é para o leitor e do filme é para o espectador, que pode ser leitor ou não do texto de partida. Acrescenta-se ainda a esse fato o caráter narrativo do cinema que tende a dar uma maior dinâmica de ação aos textos. E, por isso, naturalmente, assume um formato próprio. O filme levanta uma discussão sobre o mundo da sociedade inglesa no verão de 1923, cinco anos após a Primeira Guerra Mundial. A narrativa se inicia com o deslocamento do cenário da guerra na Itália: “Italy, 1918”42 para a casa de Clarissa Dalloway

em Londres: “London, June 13 1923”.43

42 Itália, 1918.

43 Londres, 13 de junho de 1923.

Apesar de se tratarem de dois pólos argumentativos diferentes e se apresentarem em diferentes linguagens, algumas questões se interligam e vão permear todo o filme. A construção dos personagens torna-se importante para a interligação das questões. De um lado, temos as imagens e a fala de Septimus, atormentado pelas lembranças da guerra e da morte de seu amigo Evans. Do outro, temos Clarissa, também, de certa forma, atormentada pelas lembranças do passado, pelo repensar de sua própria vida. Nesse sentido, esses personagens se assemelham e fazem a questão existencial se apresentar em ambos os pólos, embora seus mundos sejam diferentes.

Observamos que, assim como no romance, o padrão temporal do filme se sustenta, principalmente, pelo uso constante dos flashbacks, algumas vezes indicadores de informações para o desenvolvimento da narrativa, como no caso da questão da guerra, e outras vezes como suporte para apreensão da manifestação dos processos mentais de Clarissa e de seus sentimentos. A diferença é que esse padrão, no filme, funciona não somente como reprodução de processos mentais, mas também como elemento construtor do enredo.

Se fizermos um paralelo das diferentes perspectivas no tratamento do deslocamento de tempo de Septimus e Clarissa no filme, podemos perceber a ênfase dada a

essa questão pela tradução. Septimus, por exemplo, foi reconhecido como personagem importante para estruturar toda a seqüência narrativa, desde suas constantes digressões no tempo até os momentos da guerra. E as digressões de Clarissa, por sua vez, são substratos que se juntam e formam, não somente uma cadeia de impressões como se observa no romance, mas elementos enunciadores de um enredo que compõem todo o conjunto narrativo. Dessa forma, o conjunto narrativo de Gorris lida com as digressões como suporte para tratar da construção dos personagens diante de uma situação de vida e tornam-se parte do enredo de um filme de narrativa tradicional.

Vejamos algumas considerações da crítica a respeito do tratamento do tempo no filme. Segundo Merten, encontra-se no filme Mrs. Dalloway “a versão reduzida da história, mas não as implicações do estilo” (1998, p.1). Um dos principais argumentos apresentados pelo crítico é a forma como Marleen Gorris lidou com o ‘tempo interior’ dos personagens, um aspecto importante no romance. O autor acrescenta que surge nas reflexões dos personagens um tempo à parte, que seria exatamente a interação dos tempos interno e externo dos personagens. Enquanto no livro esses tempos se fundem numa teia narrativa, no filme, eles são linearizados na seqüência narrativa e não seria, na opinião do crítico, “a melhor forma para traduzir para as telas o estilo da escritora” (p.1).

Luiz Merten, assim como outros críticos do filme, Alan Stone (1997), Maitland McDonagh (2001), Bjorn Thomson (2001), demonstram, de alguma forma, preocupação com o grau de fidelidade do filme em relação ao romance, seja pela idéia de aproximação ou de distanciamento que a narrativa tem com o texto de partida.

Temos reconhecido, ao longo da discussão, que o tempo na composição narrativa do romance representa apenas uma forma de lidar com o material psicológico dos personagens e não tem o propósito de se tornar um elemento condutor de um enredo como acontece com o filme. Reconhecemos também que a forma de segmentação do tempo, em vez

da fusão, traz para a tradução do texto de Woolf um aspecto diferente daquilo que um leitor da escritora esperaria. Entretanto, discordamos de Merten quando ele afirma que essa não seria a melhor forma de tradução do estilo de Woolf. Primeiro, não podemos esperar que o filme seja uma “transposição” do livro para a tela, ou seja, que a linguagem do cinema tenha necessariamente que lidar com “equivalências” da linguagem do romance, já que o filme não se trata de um “romance filmado”. Segundo, uma tradução, principalmente a fílmica, não pode ser observada do ponto de vista da semelhança com um “original”, pois trata-se de um resultado de um trabalho coletivo que envolve a leitura de um roteirista, de um diretor que sofre interferências durante as filmagens e ainda está sujeita a restrições de caráter econômico, político e ideológico, comuns a uma produção cinematográfica. Torna-se, portanto, simplista demais prescrever o que o filme deveria ou não ter feito. Acrescenta-se a isso a interferência do estilo individual do diretor que exerce influência no processo, conforme assinala Gorris:

Anyway, I make the films I want to make and the audience will see what they do. If they don’t like it, well that’s okay. If they do, then great. But, I think you should at least allow the artist the freedom of speech, to do what she or he wants to do (GORRIS apud WORSDALE, 1998, p.3).44

44 De qualquer forma, eu faço os filmes que eu quero e o público verá o que ele vê. Se não gostar, bom, tudo

bem. Se gostar, ótimo. Mas eu acho que a gente deveria, pelo menos, dar ao artista a liberdade de voz para fazer o que quiser.

Essa fala de Gorris é esclarecedora quanto à idéia pressuposta de uma certa “autonomia”, por parte do diretor no trabalho que se propõe a realizar. Nesse sentido, explicam-se algumas de suas escolhas na reescritura de Mrs. Dalloway.

Um outro ponto interessante a se considerar é o fato de Gorris dar ao diretor o estatuto de artista, ou seja, alguém que cria. Partindo desse pressuposto, Gorris se isenta de um compromisso necessário com o texto de Woolf. Esse posicionamento reforça uma discussão importante nos estudos de tradução, que é a questão da visibilidade do tradutor e da co-autoria da obra traduzida.

O romance Mrs. Dalloway apresenta um único narrador que direciona os processos mentais, mas existem várias perspectivas. Dada a natureza impressionista do romance, o leitor é colocado na posição de observador do narrador, que é reprodutor de um discurso interno. O discurso discorre sobre temas, a partir dos quais se encadeiam descrições de fatos ou casos isolados, ou de episódios mais longos; ou ainda uma seqüência de episódios. Reforçamos a idéia de que os episódios não dizem respeito aos fatos das realidades externas dos personagens, mas àqueles das consciências.

No filme, a questão das múltiplas perspectivas foi bastante trabalhada por Marleen Gorris com o uso da correlação entre os personagens, como é o caso da constante ligação entre Clarissa e Septimus.

Sabemos que há confrontação das várias realidades internas dos personagens e que essas realidades se confundem na narrativa de Woolf, como já vimos na descrição cênica do aeroplano, discutida anteriormente. Na tradução para a tela, Gorris, na tentativa de lidar com esse aspecto, propõe uma seqüência de cenas de aproximadamente seis minutos constituída por elementos que sintetizam a confrontação. Para tal, a diretora pôs na tela a imagem e o barulho do aeroplano, contrastando com cada um daqueles rostos que se vislumbram com a presença daquele objeto voando. Há, a partir de então, uma observação panorâmica do fato tanto por parte dos personagens, quanto por parte dos espectadores. Vejamos o desenvolvimento da seqüência. Clarissa é a primeira personagem a observar o aeroplano no ar e é, também, a última a fechar a seqüência. Clarissa é a primeira personagem a contemplar o objeto, mas é Rezia quem primeiro o aponta para Septimus:

(Clarissa caminha pela rua, ouve o barulho do aeroplano e o observa no ar.)

Rezia: Look! look, Septimus.

Septimus: There is no crime. There is no death. The birds sing this in Greek.45

45

Rezia: Veja! Veja, Septimus.

Mais uma vez, evidencia-se a presença dos dois pólos argumentativos da narrativa, em perspectivas opostas. Enquanto Clarissa, assim como os outros transeuntes, encanta-se com a figura do aeroplano no ar, Septimus está tão imerso em seu mundo que nem sequer dá atenção ao comentário de Rezia. Os dois personagens estão olhando em direção oposta, uma referência direta à condição deles no romance. Nesse momento, existe a possibilidade de fundirem as várias realidades, pois aparece na tela um ritmo mais acelerado de imagens que têm como efeito um tom dramático. O efeito da fusão se completa pelo discurso dos personagens. Há, imediatamente, uma simultaneidade de imagens e sons tais como um deficiente físico, uma mulher conduzindo um carrinho de bebê, Septimus e Rezia, o choro de uma criança e o próprio barulho do aeroplano. Cria-se, então, uma situação de caos na narrativa cinematográfica que entra em sintonia com a condição de ruína de Septimus e de desespero de Rezia:

Septimus: The world is screaming: kill yourself! Kill yourself! Rezia: Septimus, I go to walk on the lake and back46

Assim, a narrativa fílmica se aproxima do romance, por manter um momento máximo de intropecção dos personagens. Mas, ao mesmo tempo, também se distancia dele, por apresentar maior dramaticidade. Trata-se, portanto, de um efeito bastante produtivo na consolidação do fato na narrativa.

Na cena seguinte, a figura no céu da palavra KREEMO é posta por alguns segundos na tela, com uma voz feminina em off comentando o letreiro: ‘’Kreemo”! “It says kreemo.”47 Logo em seguida, Observa-se Rezia contemplando os jardins e Septimus é novamente posto em foco. Mais uma vez, o personagem está completamente imerso em seu próprio mundo:

46 Septimus: O mundo está gritando: Mate-se! Mate-se!

Rezia: Vou até o lago e já volto.

Septimus: Make it known, make it known! But, there’s a God! No one kills from hatred! (Septimus vê a imagem de seu amigo Evans) Evans, for God’s sake! Don’t come!48

Percebemos que cada personagem reage de forma diferente à visão do aeroplano, mas cada um deles é, de certa forma, afetado pela situação. Consolidam-se, dessa forma, as diferentes perspectivas apresentadas no filme, que podem também ser vistas como relações sígnicas de natureza indicial e icônica do romance.

Em seguida, a imagem de Clarissa retorna para a tela ainda caminhando, observando o percurso do aeroplano e observando, também, a reação de um casal de velhos ao tentar decodificar o que está sendo escrito:

Woman: T... O... F... F... E... E... Man: It says “Toffee!”

Woman: I know it’s toffee!

(A expressão KREEMO TOFFEE na tela) Clarissa: Look, Lucy. It said ‘Kreemo Toffee” 49

48

Septimus: Divulguem iss. Divulguem isso. Mas, existe um Deus! Ninguém mata por ódio! Evans, pelo amor de Deus, Não se aproxime!

49 Homem: Está escrito “Toffee!”

Mulher: Eu sei.

Clarissa: Veja, Lucy! Estava escrito “Kreemo Toffee.”

Com o desenvolvimento dessa seqüência, Marleen Gorris reforça o aspecto do entrelaçamento das múltiplas perspectivas, tão recorrente no texto de Woolf. O fluxo narrativo desenvolve-se sob olhar dos vários personagens, e a percepção individual deles dialoga com o espectador, embora Clarissa seja a personagem que norteia todo esse fluxo no momento em questão. É como se Clarissa fosse consciente do efeito que o objeto pode causar em cada um daqueles transeuntes. Enquanto Clarissa contempla maravilhada o aeroplano, num momento de êxtase, Septimus, completamente indiferente ao fato, observa os pássaros se alimentado na praça, imerso em suas reflexões de angústia e de questionamento da própria existência, evidenciando-se, mais uma vez, o paralelismo entre dois mundos diferentes, como podemos observar no conjunto de imagens a seguir:

3.2.3 Flashback