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Flexibilização de princípios e garantias constitucionais

Como norma jurídica superior e fundamental de um Estado, a Constituição abriga diversos princípios e garantias que muitas vezes tendem a anular ou diminuir a força normativa de outros. Contudo, isso não os coloca em desarmonia com o restante do corpo normativo, pois a utilização de técnicas de interpretação e integração os liga aos objetivos maiores traçados pelo legislador constituinte.

Portanto, é a Constituição, como fundamento último, que garante a unidade do ordenamento jurídico, não permitindo que antinomias e lacunas retirem do seu corpo normativo suas características de uno, sistêmico e completo.

Sobre os fundamentos da unidade da Constituição, bem leciona Glauco Barreira:

A unidade da Constituição é necessária para que se possa, a partir de seu conteúdo, constituir o ordenamento jurídico e para que ela tenha condições de aplicabilidade. [...]

A dignidade da pessoa humana é o fundamento material da unidade da Constituição. É a fonte ética dos direitos fundamentais, cujos núcleos de existência estão com ela comprometidos. Assim, o valor pessoal do homem impõe um limite deontológico à interpretação constitucional.

[...]

O fundamento formal da unidade da Constituição é o princípio da proporcionalidade, o qual garante uma solução dialética para a colisão entre os direitos fundamentais no caso concreto, assim como impede a arbitrariedade, exigindo uma aproximação entre os meios escolhidos e os fins de um Estado Democrático de Direito, assegurando, como queria Dante, a conservação da sociedade29.

A unidade proposta pelo autor é do tipo axiológico e teleológico, abandonando a posição, atualmente em desuso, da unidade lógico-formal. Desse modo, havendo um conflito entre princípios e garantias constitucionais, o aplicador do direito deverá analisar a natureza dos valores envolvidos e interpretar os princípios e garantias a partir da finalidade social a que se destinam. Assim feito, a literalidade da norma ganhará flexibilidade a fim de que possa ser utilizada para atingir o fim social proposto.

29 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição. 2ª edição, Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 237, 238.

Essa é a interpretação a que se chega com a leitura do art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil que versa: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se

dirige e às exigências do bem comum”.

Buscando, pois, manter a unidade do ordenamento jurídico, deve-se utilizar da técnica da ponderação de bens e valores, instrumento necessário na delimitação de direitos e garantias assegurados constitucionalmente, evitando-se, assim, que um princípio ou garantia se sobreponha aos demais.

A doutrina tem rejeitado essa predeterminação de sobreposição de bens jurídicos e de valores, em especial o princípio da segurança jurídica, assegurado pela garantia da coisa julgada. Tais valores encontram seus limites em outros igualmente protegidos e alçados à qualidade de constitucionais, como a supremacia da constituição, da moralidade, legalidade e justiça.

Marcelo Lima Guerra aborda o tema da seguinte forma:

Há, todavia, uma exigência de racionalidade imanente a qualquer ordenamento jurídico contemporâneo, inclusive o brasileiro. Tal exigência se refere ao ordenamento jurídico em seu conjunto e também é dirigida, de modo específico, à atividade judicial. De fato, quanto ao ordenamento jurídico, essa exigência de racionalidade se manifesta na busca constante por um ordenamento coerente, isento de contradições, o que veio a culminar na elaboração de uma teoria das antinomias jurídicas, a qual, assumindo o princípio que um ordenamento não deve conter normas contraditórias, elabora uma série de critérios destinados a resolver as contradições eventualmente verificadas entre normas, bem como outros critérios, os quais, em último caso, não sendo possível eliminar a contradição, permitam determinar qual a norma que deve ser expurgada do sistema30.

A segurança jurídica, como valor substrato de norma principiológica, não guarda antinomias com os demais princípios. O conflito entre eles é apenas aparente e a contradição, fruto de uma metodologia errada na sua aplicação.

Sobre o tema da aplicabilidade dos princípios, posiciona-se Glauco Barreira em outra de suas obras:

Os princípios não podem entrar em contradição porque não qualificam juridicamente uma conduta como lícita ou ilícita, mas apenas consagram um valor. A qualificação de uma conduta pelos princípios só acontecerá no caso concreto e como resultado de uma ponderação entre eles. As normas-regras (com hipótese fática de incidência e imputação de efeitos jurídicos), entretanto, qualificam abstratamente uma conduta como lícita ou ilícita. Assim, pode haver contradição entre regras quando uma delas

30 GUERRA, Marcelo Lima. Estudos sobre o processo cautelar. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 30

conceituar uma conduta como lícita e a outra definir a mesma conduta como ilícita. Aí se terá uma antinomia31.

Cândido Rangel Dinamarco defende a utilização do princípio da ponderação de bens e valores na relativização da coisa julgada, nos seguintes termos:

Uma coisa resta certa depois dessa longa pesquisa, a saber, a relatividade da coisa julgada como valor inerente à ordem constitucional-processual, dado o convívio com outros valores de igual ou maior grandeza e necessidade de harmonizá-los. Tomo a liberdade de, ainda uma vez, enfatizar a imperiosidade de equilibrar as exigências de justiça nos resultados das experiências processuais, o que constitui o mote central do presente estudo e foi anunciado desde suas primeiras linhas. É por amor a esse equilíbrio que, como visto, os autores norte-americanos – menos apegados que nós ao dogma da coisa julgada (da res judicata) – incluem em seus estudos sobre esta a indicação das exceções à sua aplicação. Na doutrina brasileira, insere-se expressivamente nesse contexto a advertência de Pontes de Miranda, acima referida, que se levou longe demais a noção de coisa julgada32.

O entendimento de que é possível a flexibilização de garantias constitucionais é encontrado no próprio texto da Constituição. Portanto, não contém nenhuma inviabilidade ou incoerência a temática da relativização da coisa julgada com sua natureza jurídica de garantia constitucional. O próprio caput do art. 5° corrobora para essa conclusão quando garante “aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”, sem, contudo, considerar nenhum deles como absoluto, nem mesmo o direito à vida, que se apresenta excepcionado com a possibilidade de aplicação da pena de morte em caso de guerra externa declarada (art. 5°, XLVII). A liberdade, termo mais abrangente por envolver uma gama de situações humanas como a liberdade profissional, de comunicação, de expressão cultural, de pensamento, física e religiosa, encontra, na mesma medida, exceções em que ocorrerá sua mitigação para a proteção de valores superiores.

Destarte, chegamos à conclusão de que o Poder Judiciário, em meio às especificidades do caso concreto, deve aplicar o princípio da ponderação de bens e valores para resolver conflitos que envolvam a aplicação de princípios e o resguardo de garantias constitucionais. Em seguida, deverá relativizar-se um dos princípios em atendimento a outro, podendo, até mesmo, anulá-lo sem que, com isso, caracterize-se uma afronta à unidade da Constituição.

31 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica jurídica clássica. 2ª edição. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p.81.

32 DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. Revista de Processo, RT, ano 28, nº 109, janeiro/março de 2003, p. 22.

3 SEGURANÇA JURÍDICA E JUSTIÇA DAS DECISÕES

A doutrina clássica sempre se posicionou pela intangibilidade da coisa julgada, baseada no princípio da segurança jurídica e necessidade da manutenção da paz social, tornando insusceptível de invalidação qualquer ato jurisdicional por ela acobertado, ainda que eivado de nulidades e injustiças.

A preocupação com a justiça não está, contudo, ausente segundo essa dogmática. O Estado, por meio da jurisdição, encontra-se incumbido da tarefa de distribuir justiça aos seus jurisdicionados. Os juízes não são dotados de infalibilidade, tendo que motivar suas decisões na tentativa de demonstrar, não somente às partes, mas a toda a sociedade, a eqüidade de suas determinações. Para distanciá-lo dos interesses das partes em conflito, o Estado reveste o magistrado de garantias necessárias ao exercício de suas funções com imparcialidade e independência funcional.

Ocorre que, depois de proferida a decisão onde não é mais possível de ser questionada através de recursos, as partes poderão se utilizar dos meios processuais próprios para desconstituir a coisa julgada. Esgotado o prazo decadencial sem impugnação ou indeferido o pedido, advém o que se chama de “coisa soberanamente julgada”. A partir deste momento, a decisão torna-se definitiva, inquestionável e imutável. A busca da verdade e da justiça, até então perseguida, cede lugar à necessidade de se garantir a segurança dos indivíduos em suas relações sociais e jurídicas.

Portanto, o Estado-Juiz, através da dinamicidade do processo, se vê obrigado a por um fim à lide, forçando uma solução, primeiramente buscando a verdade e a justiça, e, somente depois, estabelecendo através do jus empirii, a definitividade da coisa julgada.

Na própria idéia de prestação jurisdicional estão implícitas as idéias de definitividade e certeza, em nome da estabilidade e existência do próprio Estado Democrático de Direito e da efetividade do direito fundamental de acesso ao Poder Judiciário. Em contrapartida, a palavra Direito pressupõe aquilo que é reto, justo e conforme a lei.

Deste modo, as diversas normas que compõem o ordenamento jurídico são elaboradas em meio a esse conflito dialético, onde, de um lado está a necessidade de por fim a atividade jurisdicional estabelecendo uma linha divisória onde nem as partes, nem o

Judiciário poderão mais reexaminar as causas já decididas, atribuindo-se às decisões judiciais o caráter de definitividade e de outro, a certeza de que essas decisões, além de definitivas, serão, ao mesmo tempo, justas.

O presente capítulo se propõe a examinar a relação existente entre a segurança e a justiça das decisões, verificando a compatibilidade ou não de tais conceitos, lembrando que o tema segurança jurídica já foi exposto no primeiro capítulo deste trabalho, para o qual remetemos o leitor.

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