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4 A COLHEITA: O REI LEAR NO MEU QUINTAL

4.2. Tempestade: Shakespeare ou algo sobre Shakespeare?

4.2.5 Flor: Encontros com o Público

O espetáculo O Rei Lear no meu quintal foi apresentado de setembro de 2013 a janeiro de 2014 em diversos Pontos de Cultura129 de Recife e Olinda, Mostras e Festivais130 em Pernambuco e em uma pequena temporada em teatro131, no Recife. Assim como na pesquisa com Carta ao Pai, cujo resultado cênico do processo formativo foi apresentado nos Pontos de Cultura de Caruaru, a circulação de O Rei Lear no meu quintal objetivou promover uma troca de experiências com públicos diversos; em alguns Pontos (como Coco de Umbigada, Sankofa, Almirante do Forte) houve apresentações das práticas realizadas pela comunidade após a apresentação do espetáculo (Coco, Afoxé, Maracatu).

A pluralidade do público, proveniente de diferentes classes sociais, níveis de escolaridade e faixa etária (presença de crianças a idosos), possibilitou avaliar o espetáculo por diferentes perspectivas, permitindo-nos observar o que “funcionava” ou não no espetáculo. Vimos que muitas cenas captavam a atenção do público independentemente de suas diferenças (como a cena de “vudu” de Edmundo/Elilson Duarte sobre um boneco do irmão Edgar/Durval Cristovão e as cenas de relação direta do Bobo/Suenne Sotero com o espectador); outras se relacionavam diretamente com a plateia do dia: os adolescentes prestavam muita atenção nas conquistas, e traições, amorosas de Edmundo (enganando as irmãs Goneril/Ana Ghandra e Regana/Júlia Fontes), os idosos na maneira cruel como as filhas (Goneril e Regana) tratavam o pai (Rei Lear/Elilson Duarte e Durval Cristovão). Nas comunidades era comum haver manifestação do público, assim, Edmundo foi chamado de “Judas” em plena cena; idosas comentaram “é bem assim mesmo” na Cena dos Remédios.

Apoiados naquilo que observamos nas reações do público, realizamos pequenas alterações no ritmo, no texto, nas intenções. Também modificamos os figurinos (que passaram dos “improvisados” para os “oficiais”) e objetos de cena (abandonando alguns pelo trajeto, como uma cadeira de rodas para Lear e o tapete para demarcar o espaço de jogo). Portanto, enquanto esteve em apresentação, o espetáculo continuou em processo e essa precariedade, vulnerabilidade e imperfeição fez parte da cena, constituindo-se como estética.

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O Rei Lear no meu quintal foi apresentado nos seguintes Pontos de Cultura: Coco de Umbigada (Beth de Oxum - Olinda); Jornada para o Futuro (Olinda); Circo Cidadania do Grande Circo Arraial (Escola Pernambucana de Circo – Recife); Um Quilombo Cultural Grupo Bongar (Comunidade Xambá – Olinda); Sankofa (Recife); Maracatu Carnavalesco Almirante do Forte (Recife).

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A primeira apresentação de O Rei Lear no meu quintal aconteceu na Mostra Aldeia Yapoatan promovida pelo SESC (em Jaboatão dos Guararapes); participou da Semana de Artes Cênicas promovida pela UFPE (Recife), do pré-lançamento do Festival de Teatro do Agreste (Feteag – Caruaru) e do Festival Janeiro de Grandes Espetáculos (em Caruaru).

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O processo não se manteve somente na encenação em si, mas também no trabalho do ator. Permanecemos realizando ensaios durante todo o período de apresentações, e o treinamento, as “provocações”, as inquietações e angústias relativas à produção coletiva nos acompanharam até o último encontro. Ressalto que já no final da pesquisa, em dezembro de 2013, o elenco teve a oportunidade de participar de uma oficina ministrada por Antonio Januzelli, produzida pela pesquisadora e por Fabio Pascoal; nesse encontro os atores tiveram uma vivência direta com um dos mestres que referenciam esta tese. A atriz Suenne Sotero considerou o encontro como um dos momentos mais marcantes de toda a experiência: “a presença de Janô que, apesar de me conhecer muito pouco, acreditou no meu trabalho. A sua oficina também. E as reverberações dela nos meus companheiros132”.

Considero que o caráter processual da encenação contribuiu para que o trabalho não se cristalizasse, isto é, que não fosse realizado de forma mecânica, automática. De acordo com a crítica Ivana Moura esse é um dos méritos do espetáculo:

A encenação tem um frescor pouco visto nos palcos. Uma vitalidade que não dispensa toda a riqueza da obra original. As demonstrações de ambiguidade, precariedade da vida humana, sabedoria e insensatez, alienação, concorrência desleal estão na cena concentradas, nas sutilezas das intenções dos personagens. O elenco esbanja jovialidade e até mesmo a imaturidade ou imperfeições na atuação contam a favor, como precariedades das personagens133.

Durante o percurso de montagem, tive que abandonar minhas expectativas iniciais com a obra O Rei Lear, de Shakespeare. Nosso espetáculo não apresentou um ritual cênico que contemplasse o processo de individuação ao mostrar o herói na busca do autoconhecimento, Lear mal aparece em nosso trabalho. A busca da beleza, como manifestada no teatro de Mnouchkine, também não se fez presente; nossa peça é crua, não há quase nada além dos atores. Porém considero que, em alguns momentos, conseguimos alcançar o extracotidiano no trabalho do ator, que potencializado em sua presença atingiu a si mesmo, ao seu parceiro de cena e ao espectador de maneira a provocar mutações subjetivas.

Uma questão recorrente em todos os questionários finais de avaliação (nos processos de Carta ao Pai, no curso de extensão e na encenação) foi a autodescrição do aluno-ator antes, durante e depois do processo. Durval Cristovão (“Edgar” e “Lear” em nossa montagem) assim se descreveu: Antes: “(Deslumbrado) - Eles sabem”; Durante: “(Confuso) – O que eu

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Trecho de depoimento enviado via email, por meio do questionário de avaliação final. O depoimento completo encontra-se no Anexo C, p. 230, questão 21.

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A crítica “Rei Lear ao alcance de todos”, escrita pela jornalista Ivana Moura e publicada no site “Satisfeita, Yolanda?”, encontra-se na íntegra no Anexo C, p. 244-246.

sei?”; Depois: “Começo a escrever minha história”134

. Por meio desse depoimento vejo que a proposta de fortalecimento da autonomia do ator cumpriu sua função, contribuindo para que o ator passasse da condição de ajustado para integrado (FREIRE, P., 2002), de objeto para sujeito.

Após a última apresentação de O Rei Lear no meu quintal, em janeiro de 2014, o grupo se dispersou. Os atores partiram para o desenvolvimento de projetos pessoais, tomando decisões como mudar de cidade, trocar o curso de graduação, dedicar-se à investigação cênica de inquietações próprias, montar grupo para trabalhar técnicas teatrais específicas. A pesquisadora voltou-se para a escritura final desta tese, processo solitário e individual. Porém, a vontade de retornar ao coletivo e às trocas intensas que realizamos durante todo o ano de 2013 se manifestou em alguns, sendo cogitada a possibilidade de retomar o espetáculo no segundo semestre de 2014, o que me faz mais uma vez sonhar com um processo de criação e recriação de si e de mundo, quem sabe agora mais amadurecido nas relações horizontais de criação, na parceria autogestiva, na potencialidade de novas descobertas poéticas... Processo que não tem fim, mas que no recorte desta pesquisa se encerra aqui.

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Trecho de depoimento enviado via email, por meio do questionário de avaliação final. O depoimento completo encontra-se no Anexo C, p. 212, questão 22.