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1. O processo de constituição do Estado Assistencialista no Brasil

1.3 O produto do Estado Assistencialista: a precarização das políticas

1.3.1 A focalização das políticas sociais

Desde a sua materialização como instrumento de intervenção do Estado burguês no âmbito do capitalismo monopolista, a política social constituiu-se em políticas sociais. Dessa forma, tem-se, conforme Netto (1992), o fato de que “as seqüelas da ‘questão social’ são recortadas como problemáticas particulares (o desemprego, a fome, a carência habitacional, o acidente de trabalho, a falta de escolas, a incapacidade física etc.) e assim enfrentadas”. (NETTO, 1992, p. 28). Assim, em seu processo de institucionalização, as políticas sociais tiveram uma expressão setorializada, condicionando o processo relativo à fragmentação e à parcialização da “questão social” com vistas a ocultar as contradições intrínsecas ao ordenamento burguês.99

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Acerca desse aspecto, Netto (1992) assevera o fato de que “a ‘questão social’ é atacada nas suas

refrações, nas suas seqüelas apreendidas como problemáticas cuja natureza totalizante, se assumida

Todavia, apesar dessa condição genética, inerente às políticas sociais capitalistas, no que diz respeito, especificamente, ao princípio concernente à focalização, ele adquire destaque central no contexto das reformas neoliberais, implementadas nos programas sociais da América Latina a partir dos anos 80. Particularmente no Brasil, tais programas são acionados na década de 90, em que a dimensão relativa à focalização das políticas sociais implica o fato de que os gastos e os investimentos em termos de ações públicas devem privilegiar, fundamentalmente, as populações submetidas à condição de extrema pobreza ou pobreza absoluta.100

Em referência à participação do Estado no âmbito da esfera pública, conforme o princípio da focalização, esta deveria apenas ocorrer de maneira estritamente residual, no sentido de imprimir um redirecionamento aos gastos sociais a partir de uma lógica caracterizada pela eficiência e eficácia.

Detendo-se sobre as determinações intrínsecas à tendência referente à focalização das políticas sociais, amplamente difundidas pelo Banco Mundial, Pereira (2003) alega essencialmente o aspecto de que,

A focalização afigura-se, assim, como um princípio antagônico ao da universalização [...]. Trata-se de uma tradução dos vocábulos ingleses targeting ou target-oriented, oriundos dos Estados Unidos e adotados pelos governos conservadores europeus, principalmente na Inglaterra, com Margareth Thatcher, os quais concebem a pobreza como um fenômeno absoluto, e não relativo, com todas as implicações que tal concepção acarreta: restrição do papel do Estado na proteção social; apelo à generosidade dos ricos

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Segundo Pereira (1996), a expressão pobreza absoluta “constitui uma categoria restrita, consagrada pela ideologia liberal ou neoliberal, a qual justifica e prioriza ações focalizadas e emergenciais, que suprimem paliativamente (quando suprimem) sintomas de carências profundas”. (PEREIRA, 1996, p. 25) A autora ressalta, também, o fato de que “tal noção de pobreza estimula, no nível operacional, a legitimação de mecanismos de restrição da demanda por benefícios e serviços assistenciais, tendo em vista a expansão do processo de privatização das políticas públicas e a redução do gasto público na área social”. (Id.; Ibid.; p. 25)

e afortunados para ajudarem os mais pobres; ênfase na família e no mercado como principais agentes de provisão social; proclamação da desigualdade social como um fato natural. E mais: significa desviar a atenção política da satisfação das necessidades sociais — devido ao seu caráter complexo e multideterminado — para a adoção de soluções técnicas tidas como inovadoras, aparentemente neutras e facilmente controláveis. (PEREIRA, 2003, p. 03, grifo da autora).

Dessa forma, parte-se do entendimento de que o ideário neoliberal, propagado pelas agências internacionais, promove inteiramente a inversão do sentido do termo focalização que, de acordo com Boschetti-Ferreira (2003b), na sua acepção, “literal e vernacular significa pôr em foco, fazer voltar a atenção para algo que se quer destacar, salientar, evidenciar”. (BOSCHETTI-FERREIRA, 2003b, p. 02). Nesta última perspectiva, segundo a autora, a palavra focalização possui relevantes aproximações com a idéia de universalização, implicando a necessidade de conceder o devido destaque aos grupos sociais que merecem um atendimento prioritário com vistas à redução das desigualdades.101

Contrariamente a essa concepção de caráter epistemológico, a focalização defendida pelas organizações supramencionadas vincula-se diretamente à seletividade, significando efetivamente a definição de regras eletivas baseadas em critérios de menor elegibilidade para a diminuição/contenção do orçamento destinado à área social. Assim, no contexto da redução drástica da tradicional função exercida pelo Estado interventor, no agenciamento de políticas sociais, segundo o princípio da focalização apenas caberia à esfera estatal desempenhar duas funções essenciais: “prover uma estrutura para o mercado, e prover serviços que o mercado não pode

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Boschetti-Ferreira (2003b) ilustra o termo focalização em seu sentido real, alegando o fato de que “no universo de pessoas atendidas em creche, por exemplo, é preciso focalizar aquelas crianças desnutridas com ações para combater a desnutrição”. (BOSCHETTI-FERREIRA, 2003b, p. 02).

fornecer”. (HAYEK, 1990, p. 90). Em decorrência desse processo residual da ação do Estado, em sua versão neoliberal, sobressai, em contrapartida, a atuação da igreja e das ONGs, as quais devem arcar com o desenvolvimento de políticas sociais pautadas na perspectiva da focalização.

Nessa direção, tem-se que no bojo dos mecanismos mais requisitados ao agenciamento eficiente das políticas sociais em sua dimensão focalizada, sobressaem os testes de meios, utilizados para a comprovação da condição de pobreza, além da fraudemania — constatação de possíveis fraudes cometidas pelos usuários dos serviços —, os quais objetivam a minimalização do processo de inclusão e a conseqüente redução das despesas que, nesta perspectiva, são encaradas, fundamentalmente, como resíduo e não como investimento social.

O princípio concernente à focalização tem repercutido particularmente no âmbito da política de assistência social, condicionando Boschetti-Ferreira (2003b), em análise aos programas sociais contemplados na Loas, a admitir o fato de que

A tendência verificada nestes programas, com exceção do BPC e do Bolsa-Escola (PGRM), é de selecionar segmentos bem específicos e, ainda, focalizar ações ditas de ‘extrema vulnerabilidade ou em situação de risco social’. A seleção é feita, assim, baseada em critérios que elegem categorias vulneráveis e com baixa renda, o que os torna muito restritivos e residuais.

Assim, a focalização, associada à seletividade, ao eleger por risco, aqueles já selecionados por renda e segmento, não contribui para reduzir desigualdades, e acaba fortalecendo maior exclusão de acesso aos programas. Tal perspectiva torna a assistência uma

política cada vez mais curativa, agindo sob os efeitos do problema, e limita sua potencialidade preventiva, com funções e natureza mais genérica. (BOSCHETTI-FERREIRA, 2003b, p.04, grifo nosso).

Em absoluta concordância a essa constatação, entende-se que o princípio da focalização caracteriza-se pela absoluta impossibilidade de contemplar, de maneira ampla e digna, o conjunto dos segmentos sociais submetidos à condição de pobreza, atuando, segundo Silva (2001), “muito mais para fragmentar do que para focalizar a pobreza, na medida em que apenas alguns extremamente pobres são, temporária e descontinuamente, atendidos”. (SILVA, 2001, p. 14).