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1. O processo de constituição do Estado Assistencialista no Brasil

1.3 O produto do Estado Assistencialista: a precarização das políticas

1.3.3 A privatização das políticas sociais

Na dinâmica do denominado “trinômio neoliberal”, a privatização afigura- se, conforme Laurel (2002), na condição de elemento articulador do processo mais amplo de precarização das políticas sociais públicas, na medida em “que atende ao objetivo econômico de abrir todas as atividades econômicas rentáveis aos investimentos privados, com o intuito de ampliar os âmbitos de acumulação, e ao objetivo político-ideológico de remercantilizar o bem-estar social”. (LAUREL, 2002, p. 167).

Dessa maneira, a tendência pertinente à privatização das políticas sociais caracteriza-se por implicar a transferência da produção de bens e serviços — até então agenciados, majoritariamente, pela esfera estatal — em direção à instância privada ou setor mercantil.

Refletindo acerca da dinâmica inerente a esse processo e denominando-o de privatização explícita, Kameyama (2002) evidencia as principais modalidades procedimentais que conduzem à privatização dos serviços sociais públicos, as quais constituem

A transferência (incluindo a venda) para a propriedade privada de estabelecimentos públicos; a cessação de programas públicos e o desengajamento do governo de algumas responsabilidades específicas (privatização implícita); as reduções (em volume, capacidade e qualidade) de serviços publicamente produzidos, conduzindo a demanda para o setor privado (privatização por atribuição); o financiamento público do consumo de serviços privados — através de contratação e terceirização, reembolso ou ‘indenização’ dos consumidores, tíquetes e vales com pagamento

direto aos provisores privados; e as formas de desregulação ou desregulamentação que permitem a entrada de firmas privadas em serviços antes monopolizados pelo governo. (KAMEYAMA, 2002, p.02).

Para Kameyama, essas medidas de aspecto privatizante e reorientadoras do orçamento social foram amplamente adotadas no Brasil, ao longo das gestões dos presidentes Collor e Cardoso, com vistas ao enfrentamento, respectivamente, da crise econômica, do crescimento do desemprego e do declínio dos salários dos trabalhadores, resultando no aumento da pauperização e das desigualdades sociais. Nesse sentido, conforme a autora em foco,

A privatização no âmbito dos serviços e benefícios sociais tem como objetivo econômico abrir um novo campo para o investimento e os lucros privados. Isto significa que se pretende privatizar unicamente aquelas atividades que possam ser rentáveis. Esta

privatização seletiva requer, no entanto, a reestruturação das

instituições sociais, que só é possível com a intervenção estatal direta para remercantilizar os serviços e garantir um mercado estável [...]. A privatização seletiva dos serviços de saúde amparados pela seguridade social está em curso impulsionado pela deterioração das instituições, desembocando num sistema dual público-privado de seguridade social. (KAMEYAMA, 2002, p. 02, grifo da autora).

Segundo a autora supracitada, o principal desdobramento da privatização seletiva consiste na materialização de uma dualidade discriminatória, em que os serviços de melhor qualidade são destinados para quem pode pagar, sendo por isso privatizados, enquanto os de qualidade inferior são oferecidos para os usuários demandantes de serviços gratuitos, não importando, dessa forma, serem apresentados de forma deteriorada.

Investigando o processo de privatização das políticas públicas, em vigor nos países latino-americanos, Laurel (2002) evidencia, assim como Kameyama, o aspecto referente à privatização seletiva, alistando as três condições básicas para que tal proposta possa plenamente se efetivar:

[...]que seja criada uma demanda para os benefícios ou serviços privados, o que só ocorre quando os serviços fornecidos pelo setor público são tidos como insuficientes ou de má qualidade; que sejam geradas formas estáveis de financiamento para cobrir os altos custos dos benefícios ou serviços privados; e que o setor privado tenha a suficiente maturidade para poder aproveitar o incentivo à sua expansão, representada pela retração estatal. (LAUREL, 2002, p. 168).

No que diz respeito à primeira condição apontada — referente à demanda pelos serviços privados —, Laurel enfatiza que ela vem se concretizando por meio do corte dos gastos públicos, entendida como principal estratégia política de contenção da crise fiscal do Estado, cuja conseqüência mais nevrálgica traduz-se no processo de desfinanciamento das instituições públicas. Para a autora, “essa dinâmica representa uma inusitada transferência de recursos públicos para o capital especulativo, através do pagamento de juros às custas das já precárias condições de vida da maioria da população”. (LAUREL, 2002, p. 168).

Ainda no âmbito da primeira condição contemplada, Laurel ressalta, também, o fato concernente à proposta de cobrança dos serviços públicos, recomendada pelo Banco Mundial, objetivando transformá-los, dessa forma, em um produto mercadológico, e, ao mesmo tempo, condicionando-os a competir, em termos de preço e de qualidade, com os serviços oferecidos pelo setor privado. Para a autora, com a adoção dessa medida, são contemplados três objetivos neoliberais:

“remercantilizar os bens sociais; reduzir o gasto social público e suprimir a noção de direitos sociais”. (LAUREL, 2002, p. 169).

Acerca dessa questão apontada por Laurel, enfatiza-se ainda o fato relativo a que os defensores dessa medida esquecem-se de que, ao se aplicarem os critérios privatistas de mercado ao sistema de provisão pública, torna-se óbvio que este último aparecerá como deficiente. E isso ocorre em função de que os argumentos utilizados são geralmente baseados em duas lógicas distintas, dadas pela provisão pública versus provisão privada. Todavia, tem-se o aspecto indelével de que o sistema público, por sua natureza específica, movimenta-se a partir de suas próprias diretrizes, como, por exemplo, o compromisso assumido com o princípio da universalização. Isso não impede, obviamente, de se redefinirem as prioridades relativas aos gastos públicos, quando se fizerem necessárias.

Para ilustrar melhor a questão em foco, ressalta-se que, numa perspectiva democrática, a eficiência encontra-se exatamente na capacidade de se promover a maximização dos benefícios e serviços sociais, em atendimento às necessidades básicas da população — e não às demandas de mercado —, por meio de uma competente redistribuição dos recursos públicos. Não obstante essa consideração, nos últimos anos, vem crescendo progressivamente o papel do setor mercantil, acompanhado da sua exigência de que o usuário deve participar diretamente dos custos dos serviços sociais, pagando uma parcela dos mesmos, com aumentos proporcionais à carga tributária por receita.

Problematizando a segunda condição mencionada, concernente à criação de um financiamento para os serviços privados, Laurel destaca dois mecanismos possíveis: a compra dos serviços-benefícios do setor privado por meio dos fundos públicos e o incremento da indústria de seguros privada. Segundo a

autora, o segundo mecanismo tem sido mais usualmente recorrido, destacando o fato de que

Uma das formas de preparar o terreno à mudança radical nos sistemas de seguro/previdência social e diminuir a resistência política a tal medida é promover, com incentivos fiscais, o seguro privado paralelamente ao público. Isso significa transferir indiretamente recursos públicos a empreendimentos privados, mediante o sacrifício de recursos fiscais do Estado. Uma vez montado o duplo sistema de seguros para uma parcela da população, é fácil questioná-lo para legitimar a adoção do sistema acima descrito. (LAUREL, 2002, p. 171).

Quanto à terceira e última condição salientada pela autora — que diz respeito à maturidade do setor privado — referente à consolidação do fenômeno da privatização seletiva, esta concerne à administração de fundos pelos grupos financeiros, a qual vem sendo impulsionada, sobretudo, pela desregulamentação financeira como requisito estratégico do processo de mundialização do capital. Paralelamente a esse mecanismo, ocorre a implementação dos programas seletivos de combate à pobreza que, conforme a autora em foco, “implica remercantilizar os benefícios sociais, capitalizar o setor privado, deteriorar e desfinanciar as instituições públicas”. (LAUREL, 2002, p. 172).

Laurel conclui sua análise, admitindo o fato de que a privatização seletiva tem implicado a sumária negação da concepção de direitos sociais universais, fazendo explícita alusão ao que, no âmbito desta tese, está sendo denominado de Estado Assistencialista, asseverando que,

Em condições de pobreza majoritária, de subemprego e desemprego e de salários minúsculos, o ‘bem-estar privado’

comprado no mercado ou negociado no contrato coletivo da empresa, oferece alternativa somente a uma minoria. Além disso, os serviços públicos tornam-se absolutamente insuficientes, pela drenagem sistemática de recursos para o sistema privado [...]. A eliminação das instituições solidárias e coletivistas, tal como prescreve a doutrina neoliberal, não só nos distancia do universalismo dos direitos sociais como nos faz avançar em direção ao passado. Estamos saindo do século XX, mas para entrar no século XIX, ressuscitando o Estado assistencialista. (LAUREL, 2002, p.175, grifo nosso).

Exatamente neste ponto, pode-se enfim definir, com a devida precisão teórico-metodológica, a categoria central deste estudo, representada pelo Estado Assistencialista. Nessa direção, ressalta-se que o Estado Assistencialista vem operando de forma ativa na dinâmica da sociedade brasileira, a partir dos anos 90, consistindo numa modalidade restrita de intervenção estatal na provisão social — na medida em que transfere essa responsabilidade para o âmbito privado e/ou filantrópico —, tendo por fundamento as políticas de ajuste neoliberal. Quanto ao seu ideário, este se assenta na inclusão marginal dos segmentos sociais vulnerabilizados pela condição de pauperização, apresentando-se por intermédio do processo de precarização das políticas sociais públicas em suas dimensões focalizada, descentralizada e privatizada.

2. As implicações sócio-institucionais do Estado Assistencialista no Brasil: a