• Nenhum resultado encontrado

A focalização quadrinística se divide em dois aspectos: o dizer (verbal) e o mostrar (visual). Assim, o narrador pode dizer muito sobre a história (narração) e mostrar pouco, ou mostrar muito do que acontece (representação) e dizer pouco ou nada. Em todo caso, a focalização se baseia numa relação de saber entre o narrador e os personagens, ou seja, uma relação de saber que o narrador tem com o mundo narrado, e que transfere ao seu narratário,

46 Charaudeau (2008) nos fala de efeito de realidade e efeito de ficção. O primeiro resulta de um trabalho textual

que se esforça para criar uma história verificável como se pertencesse à ordem do real. O segundo resulta de um trabalho textual que cria um mundo verossímil, que obedece às leis de um mundo criado como ficção. Consideramos limitada essa proposição de Charaudeau (2008) que tenta resumir o papel do narrador em dois modos distintos: o historiador e o contador, respectivamente. Para nós, os efeitos supracitados são do domínio do autor-escritor, não do narrador. Nosso uso de efeito de verismo se distancia dessa proposição de Charaudeau (2008). Para nós, evocar as crônicas de Itaguaí é uma tentativa por parte de um narrador enganoso de dar

veracidade aos fatos contados.

47 Usamos o termo extradiegético em dois sentidos: (1) um sentido baseado em Genette (1983), que significa o

narrador que está fora da história contada, ou seja, o narrador que conta algo do qual ele não participou, podendo mesmo nem ser um narrador personagem, e sim pressuposto. É o sentido que acabamos de usar. (2) Outro sentido, particular nosso, que diz respeito ao uso de recursos narrativos que não fazem parte da história, mas sim do processo de escritura. Ou seja, extradiegético no sentido de fora da narração, não pertencente ao domínio do narrador, mas sim do autor-escritor. Nesse sentido, recursos extradiegéticos estariam para a atividade de escrita e leitura, não para o produto dessa atividade: o escrito e o lido.

106 criando diversos efeitos de sentido.

Para “a maioria dos autores, indiferentemente da terminologia utilizada (‘visão’, ‘campo’, ‘ponto de vista’), as relações de saber entre narrador e personagem podem ser resumidas pelo sistema de igualdades e desigualdades proposto por Todorov [1971]”

(GAUDREAULT; JOST, 2009, p. 166), sobre o qual comentamos a seguir:

(a) Narrador > Personagem: “quando o narrador sabe mais que o personagem ou, mais exatamente, diz mais do que sabe qualquer um dos personagens” (GAUDREAULT; JOST, 2009, p. 166);

(b) Narrador = Personagem: “quando o narrador só diz aquilo que sabe o personagem” (GAUDREAULT; JOST, 2009, p. 166);

(c) Narrador < Personagem: “quando o narrador diz menos do que sabe o personagem” (GAUDREAULT; JOST, 2009, p. 166).

Há alguns índices na narrativa em quadrinhos que denunciam o narrador pelo que ele sabe, classificando-o imediatamente pelo seu uso como algum tipo de narrador não-

personagem:

(1) A presença de balões de pensamento: seria o equivalente, na narrativa romanesca, a dizer o que o personagem está pensando, revelando certa onisciência, logo um saber > por parte do narrador.

107 (2) Enquadramentos extra-humanos: como, por exemplo, vistas aéreas ou de aspectos do

mundo ficcional que um personagem-narrador verossímil não poderia empregar.

Figura 34: O Alienista. Telhado. (p. 39).

(3) Presença de narração (nos recordatários) de aspectos emocionais do personagem ou de natureza inacessível por um saber humano verossímil: é o mesmo caso dos índices anteriores, mas o narrador utiliza um recurso que o autor-escritor pode relegar para ele (ou para si): que é um espaço diferenciado para falar.

A presença de qualquer um desses três índices, empregados da maneira que dissemos, caracteriza um narrador onisciente, logo uma focalização zero, se aplicarmos as noções literárias de Genette (1972). Na ausência de todos eles, a focalização de uma narrativa em quadrinhos pode variar.

Há outros índices, porém mais raros, estando mais presentes em narrativas de teor humorístico ou de instrução, que caracterizam a focalização de uma forma peculiar – seria algo como uma espécie de metafocalização, em que a materialidade do meio quadrinístico fica evidente no universo diegético, quando devia ser apenas no ato de leitura:

(1) Um personagem tem consciência da materialidade do meio: ocorre geralmente nas metatiras (RAMOS, 2011) ou metanarrativas. O personagem pode ou não ser um narrador-personagem. As três obras de McCloud (1995, 2006, 2008) são exemplos precisos desse tipo focalização.

(2) O narrador conversa com o leitor através dos recordatários: nesse caso, o narrador não é um personagem, e mantém o universo diegético intacto. Pode ocorrer em manuais de instrução que utilizam a semiótica dos quadrinhos, sendo que a narração visual, nesse caso, configura uma ilustração sequenciada.

Em todo caso, a utilização desses recursos (como manipulação das linhas do balão, rompimento intencional da calha, conversa com o leitor, etc.) caracteriza um tipo de

108 metanarrador, sendo então, um narrador onisciente. Vale ressaltar que um narrador onisciente, apesar do nome, pode não saber tudo, ou não querer mostrar tudo, mas sabe mais que todos os personagens.

A postulação de um metanarrador para narrativas do tipo que apresentamos se justifica por analogia da seguinte forma. Em alguns romances, um narrador pode dar mostras de que

sabe que está escrevendo (como n’O Amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, que tomaremos

para exemplo) sem caracterizar um metanarrador. Neste caso, a cenografia exigida é outra: o narrador escreve para alguém que o lerá no mundo diegético. Cabe ao leitor fazer parte desse mundo, e aceitar que está lendo um romance fictício, quando, de fato, está lendo um romance

de verdade.

Se o personagem Belmiro sabia que estava escrevendo O Amanuense Belmiro, por certo, sabemos que não é o mesmo livro que nós lemos. A capa o trai pela assinatura de Cyro dos Anjos. Apesar disso, a mensagem de Belmiro enquanto escritor/narrador pode ser resumida assim: eu estou escrevendo um romance. E o contrato literário diz: você deve

acreditar que sou eu o escritor. Eis a prova de que o contrato literário só funciona no ato de

leitura, no abrir do livro. Só para constar, Belmiro é um narrador-personagem.

O mesmo não ocorre nos quadrinhos. Qualquer narrador que queira dizer “eu estou

escrevendo um quadrinho” deverá fazer isso pelo estrato verbal e visual, concomitantemente.

A natureza narrativa dos quadrinhos sempre criará um metanarrador se a materialidade da obra for exposta. Ao contrário do romance, não há como o ato de escrever/desenhar ficar opaco nos quadrinhos, ou seja, o quadrinista não pode ficcionalizar o ato de escrever/desenhar como faz o romancista, pois os processos de produção das duas narrativas são em tudo distintos.

N’O Amanuense, o narrador refletia sobre sua escrita, ao mesmo tempo em que a

reflexão fazia parte dela. Esse mesmo processo, se empregado nos quadrinhos, exigiria que o quadrinista desenhasse o narrador que está desenhando o quadrinho. Se considerarmos que a produção de um quadrinho ocorre em inúmeras fases (roteirização, desenho, arte-finalização, diagramação, etc.), o resultado de uma obra assim deixaria de fora aspectos inerentes à produção quadrinística.

Toda essa reflexão veio para evidenciar alguns pontos: (a) que a narração nos quadrinhos é complexa, logo seu narrador faz uso dessa complexidade; (b) que a categorização dos narradores de quadrinhos deve se pautar em suas características narrativas próprias; (c) que a aplicação de modelos teóricos prontos (sobretudo da literatura) não é o suficiente para essa categorização; (d) que os meios de produção da obra narrativa interferem

109 na taxonomia típica que é a atividade classificatória de narradores.48

Com isso, queremos justificar eventual deficiência em nossa abordagem da narrativa d’O Alienista em quadrinhos. Posto que todo meio narrativo (quadrinhos, teatro, balé, cinema, etc.) deveria ter sua própria grade classificatória, consideramos um trabalho infrutífero utilizar categorias prontas advindas de meios distintos para abordar a narrativa em quadrinhos d’O

Alienista, que é, além disso, uma narrativa adaptada de uma obra literária. Ademais,

empreender uma grade assim exigiria a construção de uns corpora variados, e nossa abordagem é qualitativa, não quantitativa.