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Tomemos uma ideia que precise ser materializada: o conjunto de pensamentos que formam o personagem do alienista, ou seja, a representação psíquica desse personagem. A essa ideia chamaremos de conceito, e a forma material que representa esse conceito é: Simão

Bacamarte (e também sua materialização fonética). A junção de Simão Bacamarte com o conceito que ele representa constitui um signo: significante + significado. “O plano dos

71 (BARTHES, 1993, p. 43). Esse signo é um dos muitos que compõem a obra O Alienista, de Machado de Assis.30

O raciocínio engendrado a partir do signo linguístico sobre a representação psíquica do

personagem Simão Bacamarte pode ser igualmente efetivo com o signo “quadrinístico”

(chamaremos assim, por enquanto). O desenho ou a figura do personagem compõe um signo: tem um plano de expressão e um plano de conteúdo. Diferente do signo linguístico Simão

Bacamarte – que não altera o sentido se mudarmos a tipografia –, o signo “quadrinístico” é

relativamente mutável: embora o desenho do personagem mantenha as cores e os traços, sua significação está ainda condicionada ao comportamento do personagem na história através dos gestos representados. Ele é um signo mutável, que adquire sua significação no contexto e no conjunto dessa mutabilidade.

Infelizmente, o estrato gestual na produção de sentidos em uma dada situação de comunicação ainda é um ponto pouco explorado na análise do discurso. Em todo caso, a caracterização de um personagem de quadrinhos passa pela representação icônica dos seus gestos, chegando, em alguns casos, a ser até caricatural.

Figura 11: Microdicionário de gestos.

(EISNER, 1999, p. 102).

Segundo Barbieri (1998) a expressividade dos personagens nas histórias em quadrinhos é similar à do teatro: o desenhista precisa criar uma expressão estereotipada para que seja facilmente reconhecida, sem perda de tempo: “As habilidades cartunista é saber variar sem fugir do assunto: se variar muito, não se reconhece a alegria maliciosa [por exemplo]; se se varia

30 Não é preciso dizer que a obra como um todo pode ser tomada como um complexo sistema de significação,

quando não como um signo em si, dependendo do recorte que se faça da enunciação. Afinal, ela significa algo em relação à instituição literária. Diremos o mesmo sobre a obra em quadrinhos: ela significa algo em relação à instituição quadrinística. Mas não precisamos ir tão longe nessa abordagem.

72 muito pouco, o quadrinho torna-se monótono.” (BARBIERI, 1998, p. 218, tradução nossa).31

Nos quadrinhos, como em qualquer obra narrativa de ficção, os personagens não são pessoas, eles são representações de pessoas (o mesmo ocorre com lugares ou objetos: são representações). Como signos de caráter complexo, seus significados são uma ideia de pessoa. E a maneira como o quadrinista opera esse signo na tentativa de transmitir uma mensagem visual verossímil depende, certamente, do contexto interno da história, da fábula (ECO, 1979b)32, e também de sua memória de inúmeras situações de comunicação, cada uma com suas formas de comportamento pertinentes. Segundo Eisner (1999):

O corpo humano, a estilização da sua forma, a codificação dos seus gestos de origem emocional e das suas posturas expressivas são acumulados e armazenados na memória, formando um vocabulário não-verbal de gestos. Ao contrário do requadro nas histórias em quadrinhos, as posturas dos seres humanos não fazem parte da tecnologia dessa arte. [...] Elas fazem parte do inventário do que o artista reteve a partir da observação. (EISNER, 1999, p. 100).

É evidente que o conceito arraigado a Simão Bacamarte pode mudar à medida que a

obra é lida e relida, pois “uma vez que o signo esteja constituído, a sociedade pode muito bem

refuncionalizá-lo, falar dele como de um objeto de uso” (BARTHES, 1993, p. 45). Embora careçamos de uma ancoragem física que ocupe o lugar de coisa representada, o significado das palavras Simão Bacamarte não seria, de todo modo, uma pessoa concreta, e sim sua imagem psíquica. Isso já estava previsto em Saussure quando ele denominou de conceito o significado. Até aqui, discutimos um signo que, por sua natureza ficcional, só pode ser conotativo.

Pela Literatura ser ela mesma um sistema conotativo, as duas operações – conotação e metalinguagem – mostradas por Barthes (1993) são possíveis. O Alienista em quadrinhos pode ser tanto conotação quanto metalinguagem d'O Alienista machadiano. Quadrinhos e Literatura, por serem essencialmente sistemas conotativos, podem ter como sistema primeiro um sistema denotado ou conotado. O caso d'O Alienista em quadrinhos é a segunda opção: um sistema essencialmente conotativo (a HQ) tem como sistema primeiro outro sistema conotativo (a obra de Literatura). Por essa razão, nos interessamos por trabalhar a operação conotação em detrimento da metalinguagem, e tentar responder, ao longo de nosso trabalho, como funciona o sistema de signos quadrinístico da graphic novel de Moon e Bá.

McCloud (1995) demonstrou que o “vocabulário dos quadrinhos” é icônico, ou seja, faz

31 O texto original: La habilidade del dibujante está en saber variar sin salir-se del tema: si se varía demasiado,

ya no se reconoce la alegría malévola; se se varía demasiado poco, el cómic se hace monótono.

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Antes de tudo, é importante situar o termo história como fábula, de acordo a diferenciação formalista fábula e

73 uso uma categoria de signo – o signo icônico33 – para representar os elementos presentes na narrativa em quadrinhos. O autor reconhece que a palavra ícone é problemática para sua

definição do “vocabulário” dos quadrinhos, pois ela significa muitas coisas. Desse modo, ele usou “a palavra ‘ícone’ como qualquer imagem que represente uma pessoa, local, coisa ou ideia.” (McCLOUD, 1995, p. 27).

A abrangência que McCloud (1995) atribuiu ao conceito de ícone esbarra no conceito de signo em seu sentido lato, pois o autor trata como categorias de ícone os símbolos (a cruz ou a suástica, por exemplo), as figuras (os desenhos e as imagens) e os ícones não-pictóricos (as palavras e os números), além de incluir o traçado dos quadros como ícone. Certamente, não pretendemos retomar essa discussão sobre o caráter do signo, todavia, precisamos refinar essa abordagem para uma análise discursiva.

Joly (1994, 2007) assinala que a mensagem visual é composta por signos icônicos e signos plásticos. Por signos icônicos, ou figurativos, Joly (2007) entende como sendo as imagens usadas para se assemelhar ou representar objetos do mundo, ou seja, as figuras. Os

signos icônicos “dão uma impressão de semelhança com a realidade jogando com a analogia

perceptiva e com os códigos de representação herdados da tradição de representação ocidental.” (JOLY, 2007, p. 75). Em outras palavras, esses signos evocam conotações socioculturalmente determinadas, por isso dependem muito do contexto empregado.

Por signos plásticos, Joly (2007) considera as cores, as formas, a composição e a textura. Ela inclui nesses recursos o quadro (moldura) e o enquadramento (focalização). O enquadramento (o olhar para o objeto) não deve ser confundido com o quadro (o contorno do

olhar). O quadro “é o limite da representação visual, o enquadramento corresponde ao tamanho da imagem, suposto resultado da distância entre o objeto [e o olhar do narrador/narratário].”

(JOLY, 2007, p. 94).

Em se tratando de história em quadrinhos, entendemos que os elementos plásticos são extradiegéticos, estão fora da história. São elementos que direcionam a leitura, não a história. São recursos empregados na instância enunciativa ou ergo-textual (COSTA, 2010; PEYTARD, 2007 [1983]). Em todo caso, o uso de tais recursos interfere diretamente na forma do gênero.

Em suma, os signos plásticos usados como recurso do autor-escritor singularizam o que os signos icônicos representam. Enquanto o signo icônico busca o conceito, o signo plástico

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A concepção de signo icônico tem sua origem nos trabalhos de Peirce, juntamente com outras variantes de signo: o índice e o símbolo. A categoria de ícone se subdivide ainda em imagens, diagramas e metáforas. Embora usemos essa categoria, nosso trabalho não é de base peirceana, cujo estabelecimento de uma significação não nos satisfaz por ignorar a historicidade do sentido. Eco (1991) discute sobre o conceito de ícone de Peirce.

74 conceitua essa busca, tornando a representação do objeto mais ou menos valorizada, objetiva, subjetiva, técnica, ou artística, de modo que atenda às necessidades discursivas, situacionais e

formais do gênero.34

Um signo plástico tende a ter significados técnicos, mas pode evocar conotações também, neste caso, em favor do signo icônico e da situação de comunicação. Indo além da noção leiga de que os quadrinhos são a junção de palavras e imagens, podemos completar a noção de vocabulário dos quadrinhos de McCloud (1995) e dizer que esse vocabulário se constitui de signos icônicos e plásticos, e, às vezes, linguísticos.

A imagem seguinte nos serve de exemplo para extrair uma série desses signos. Vejamos como podem ser agrupados e interpretados, levando-se em conta o contexto da imagem:

Figura 12: O Alienista. Signos. (p. 15).

Tabela 1: Signos icônicos n’O Alienista

Signos icônicos

Significantes Significados imediatos Conotações atribuíveis

Homem maduro O alienista, Simão Bacamarte Cientista, sábio, erudito, louco, médico, doutor, autoridade

Terno Vestimenta Vestimenta de prestígio, status, poder

Óculos Leitura, enxergar Erudição, sabedoria, ciência

Pena Escrita, trabalho Conhecimento, poder da palavra

Vela Luz Noite, trabalho árduo, leitura

Livros Biblioteca Conhecimento, sabedoria, status, poder, trabalho, ciência Manuscrito Escrita, trabalho, anotações Conhecimento, poder da palavra, trabalho, ciência

Cérebro/ anotações ao

fundo

Fundo Pensamentos, conteúdo das anotações, conhecimento

34 Cf. Charaudeau (2004) para compreender o funcionamento dessas necessidades – ou restrições – do gênero.

Ainda, em Joly (2007) há um exemplo de como os signos plásticos e icônicos são empregados em uma publicidade, atendendo às restrições discursivas, situacionais e formais do gênero.

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Tabela 2: Signos plásticos n’O Alienista

Signos plásticos

Significantes Significados imediatos Conotações atribuíveis

Quadro Grande, contornado Amplitude

Enquadramento Médio Equilíbrio, intimidade

Ângulo Frontal Equilíbrio, simetria, franqueza

Cores Aquareladas, sépia, alto contraste Antiguidade, tempo passado, envelhecido, seriedade

Traços Pincéis Clássico, antigo, subjetividade

Recordatários Falas do narrador Remetem a pedaços de papel, manuscritos

Esses signos todos são recorrentes ao longo da narrativa. Mais adiante, veremos como eles são usados para criar efeitos diversos na narrativa, como a criação de uma voz narrativa, efeitos de tempo (analepses e prolepses, por exemplo), ambientação, etc., e como eles são usados para caracterizar o personagem Simão Bacamarte, levando-se em conta ainda aspectos verbais para essa caracterização.