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McCloud (1995) ressalta o quadro como o elemento mais importante dos quadrinhos, mas que é, por vezes, negligenciado como tal. É o quadro que indica que o tempo e o espaço estão sendo divididos, e suas diversas formas e disposição podem afetar a experiência de leitura da passagem do tempo na narrativa, mas não o significado temporal em si. O significado temporal é definido mais pelo conteúdo do quadro e pela relação de um com o outro através do

processo de conclusão, por meio da sarjeta, do que pela sua forma em si. A exceção seria a

ocorrência da analepse ou flashback.

Em todo caso, o conteúdo do quadro é importante para designar que ocorre uma manifestação temporal na narrativa. A forma em si não diz tudo. “Nada é visto entre os dois

quadros, mas a experiência indica que deve ter alguma coisa lá!” (McCLOUD, 1995, p. 67):

76 Aqui, com base nas seis categorias de transição de quadro-a-quadro propostas por

McCloud (1995, 2008), mostraremos algumas transições d’O Alienista a fim de qualificarmos,

em capítulo posterior, o estilo narrativo dessa história.

a) Momento-a-momento

As transições momento-a-momento ocorrem em uma mesma cena e focam um mesmo elemento da cena. As variações de movimento do desenho são sutis, exigindo pouquíssima conclusão. A dinâmica dessas transições é lenta. Elas não contribuem para a progressão dos eventos narrativos, mas sim, geralmente, para criação de um estado emocional do personagem ou para estabelecer suspense (pois retardam a ação).

Figura 14: O Alienista. Momento-a-momento. (p. 30).

A transição Q2-3 é de momento-a-momento, e o Q2 retarda a ação mostrando movimentos sutis dos personagens, que avistam a esposa do alienista chegando do Rio de Janeiro com sua comitiva.

Contamos aproximadamente 25 transições momento-a-momento. As mais representativas estão no desfecho na história, situação em que Simão Bacamarte chega à conclusão de que é o único louco de Itaguaí. Analisaremos essas sequências em seção ulterior.

b) Ação-a-ação

Ao contrário do tipo de transição anterior, as transições ação-a-ação mostram a narrativa em progressão. Esse tipo de transição é dinâmico: o quadrinista “escolhe um momento por ação,

de modo que cada quadrinho contribua para levar o enredo adiante e manter o ritmo acelerado.”

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Figura 15: O Alienista. Ação-a-ação. (p. 58).

As transições ação-a-ação mostram um único tema em progressão distinta. Na cena acima, vemos o mensageiro se dirigir à Câmara e entregar o ofício encaminhado pelo Dr. Bacamarte. Apesar do uso comum desse tipo de transição nos quadrinhos ocidentais, a

recorrência n’O Alienista foi baixíssima se em comparação aos mesmos quadrinhos citados por

McCloud (1995). Apenas quatorze transições.

c) Tema-a-tema

As transições tema-a-tema permanecem na mesma cena ou ideia, ou seja, não há corte espacial ou temporal brusco. São “igualmente eficientes para levar a história adiante...

alternando os ângulos para dirigir a atenção do leitor conforme o necessário.” (McCLOUD,

2008, p. 16). Em outras palavras, o olhar do narrador se desloca rapidamente na direção de vários pontos importantes da cena. As cenas de diálogo ou de confronto entre personagens são geralmente de tema-a-tema.

Figura 16: O Alienista. Tema-a-tema. (p. 12).

No fragmento acima, Ciência (Dr. Bacamarte) e Religião (Padre Lopes) discutem a causa da loucura. Um embate que vai se mostrar em vários outros pontos da narrativa.

78 d) Cena-a-cena

Como o nome indica, as transições cena-a-cena estabelecem mudanças significativas de tempo e/ou espaço. Elas servem para narrar eventos simultâneos em lugares distintos, e/ou para narrar eventos ocorridos em tempo e/ou lugares diferentes. É comum encontrar nesse tipo de transição o uso de recordatários para auxiliar na localização tempo-espacial, com indicações cênicas similares às didascálias do teatro: “Longe dali...”, “Em algum lugar distante...”, “Horas

depois...”, etc. Na sequência seguinte, temos um exemplo de mudança de cena.

Figura 17: O Alienista. Cena-a-cena. (p. 16).

É possível notar a transição de cena-a-cena claramente pela mudança de cenário e pela presença dos mesmos personagens, Simão e D. Evarista, com vestimentas diferentes. O corte que caracteriza a sequência acima é de tempo e espaço, realçando o hábito do alienista de se dedicar excessivamente aos estudos e o abandono constante em que ficou D. Evarista.

e) Aspecto-a-aspecto

O quinto tipo de transição – aspecto-a-aspecto – possibilita uma descrição visual do cenário mais refinada, à medida que foca elementos que estão na mesma cena, mas em perspectivas diferentes.

Às vezes pode convir à narrativa paralisar o tempo e deixar que o olho vagueie. As transições de aspecto-a-aspecto fazem justamente isso, e foram usadas com sucesso no Japão – e recentemente na América do Norte – para criar uma forte sensação de local

e de estado de espírito. (McCLOUD, 2008, p. 17, grifos nossos).

79 aspectos de um mesmo lugar, ideia ou atmosfera. Há corte espacial e mudança de foco, mas não há corte temporal.

A sequência seguinte mostra D. Evarista chegando do Rio de Janeiro com sua comitiva. Pela ausência de som (balões de fala ou onomatopeias), os quadros criam um efeito de atemporalidade, pois o som se propaga no tempo e no espaço.

Figura 18: O Alienista. Aspecto-a-aspecto. (p. 30).

A sequência anterior serve de exemplo também pelo uso de outro recurso que modifica a percepção temporal da cena: o uso de um quadro sangrado, ou seja, o quadro sem contorno, indo além dos limites da mancha gráfica.35 Esse recurso, atrelado à ausência de som dos balões, estabelece certa atemporalidade na imagem, como veremos em outra seção.

Contamos aproximadamente 17 transições aspecto-a-aspecto, o que é um número considerado alto nos quadrinhos ocidentais, como mostrou McCloud (1995). As transições aspecto-a-aspecto e momento-a-momento, segundo McCloud (2008, p. 18): “funcionam bem

em histórias cheias de nuances ou viés emocional”. Ou, como deve ser óbvio, numa graphic novel, sobretudo uma baseada numa obra de Machado de Assis.

f) Non sequitur

A transição non sequitur – do latim, não se segue – não contribui para levar o enredo adiante. Ela não está ligada à sequência dos eventos. No entanto, a aparente desconexão entre os

35 Mancha gráfica é o espaço de ocupação dos quadros na página. O espaço da página é dividido entre mancha

gráfica e margem. Alguns quadrinistas optam por ocupar parte da margem ou ela toda para criar efeitos

singulares de tempo e espaço. McCloud (1995, p. 103) chamou esse recurso de “‘quadros sangrados’... aqueles que extrapolam a margem da página”.

80 quadros numa transição dessa categoria é questionada por McCloud (1995), que acredita que sempre há uma ligação possível de ser atribuída na construção de sentido entre dois quadros. Não encontramos nenhuma sequência que pudesse ser categorizada como non sequitur n’O

Alienista.

A transição de um quadro a outro tem sentido a partir do processo de conclusão. Essa é uma das formas que a narrativa progride no tempo e no espaço nas histórias em quadrinhos. A seguir, aprofundaremos nossa análise da linguagem d’O Alienista abordando outros dos seus mecanismos de tempo ficcional e quais os efeitos de sentido que esses recursos possibilitam.