• Nenhum resultado encontrado

Fonte e Alvo deôntico no discurso político

CAPÍTULO V – A MANIFESTAÇÃO DA MODALIDADE DEÔNTICA EM

5.5. Fonte e Alvo deôntico no discurso político

O valor deôntico instaurado pode ser percebido como proveniente quer de um indivíduo quer de uma instituição, e este valor, por sua vez, pode recair sobre um indivíduo ou uma instituição. Vejamos, na seqüência, trechos do corpus ilustrativos do que acabamos de asseverar:

51) Devo dizer que o Governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva está se mostrando absolutamente inábil não só na condução desse processo, mas também no enfrentamento de todas as questões brasileiras, talvez por ser a primeira vez que seu partido assume o comando do País. [Mv1mIIL4K] Disc 42

52) A partir deste momento, a Casa tem a responsabilidade de aprofundar o debate e fazer as emendas necessárias para adequar o projeto às discussões e idéias representadas por cada um de nós, membros do Poder Legislativo. [bs1xIiU4K] Disc.08

53) Em 2002, a sociedade destinou R$ 17 bilhões para financiar o déficit do Regime Geral de Previdência Social RGPS, complementando o pagamento de 19 milhões de benefícios, e, no mesmo período, teve de destinar R$ 39 bilhões para complementar o pagamento de apenas 3,2 milhões de servidores públicos. [ev1xiiU4Y] Disc.12

Em (51), o indivíduo, orador, é, a um só tempo, fonte e alvo da obrigação instaurada. Estamos diante de uma obrigação de cunho moral (afinal não há força externa que obrigue o orador a admitir publicamente a inabilidade de seu próprio partido) instaurada pelo orador que recai sobre si próprio. Ele se manifesta como estando compelido a admitir as falhas do seu partido.Em (52), o orador instaura obrigação que recai sobre a instituição a qual pertence (a Casa). Em (53), o orador dar a conhecer ao seu auditório uma realidade visando instigar a revolta e mover aqueles que o escutam a abraçar a defesa da Reforma nos moldes propostos pelo Executivo, como o orador o quer. Para tanto, alude a uma obrigação instaurada pelo próprio sistema Previdenciário brasileiro na sua atual conformação; este legou à sociedade (instituição), nas palavras do orador, a pesada obrigação de ter de destinar 39 bilhões para complementar o pagamento de apenas 3,2 milhões de servidores públicos.

As funções persuasivas a que se prestam as escolhas da fonte e do alvo são de extrema relevância. Constatamos, por exemplo, que, quando o orador se deixa perceber, ao mesmo tempo, como a fonte a instaurar obrigação de cunho moral e o alvo sobre o qual recai o valor instaurado, ele se reveste da máscara da honestidade, como no exemplo (51). Ele se apresenta como aquele que reconhece a existência de falhas ou como aquele que precisa fazer uma dada declaração etc. Essa estratégia, presente em vários discursos de nosso corpus, principalmente na introdução dos discursos, arrefece um possível ímpeto belicoso dos membros do auditório que manifestam posicionamento contrário ao do orador, tornando, assim, possível a este desenvolver seu ponto de vista com uma maior probabilidade de ser ouvido; afinal, ele já iniciou sua fala estabelecendo um elo entre ele e aqueles que tenderiam a não admitir as idéias que ele exporá. Quando o orador instaura

valor que apenas indiretamente recai sobre si e seus pares, como no exemplo (52), optando por enfatizar a responsabilidade de uma instituição, ele se livra do desgaste de ter “apontado o dedo” para um grupo partidário em específico, para um membro de grupo partidário etc. A opção pelo alvo instituição faz recair o peso da obrigação sobre um todo. Quando o orador, por seu turno, dá voz a um valor instaurado por alguém ou por uma instituição, como no exemplo (53), ele geralmente o faz para respaldar o posicionamento que está a defender. Os valores deônticos percebidos em nosso corpus como não provenientes da voz do orador, mas citados por ele, mostraram-se ser poderosas “âncoras” à construção da defesa do ponto de vista do orador, pois atuam no sentido de adicionar informação ao conhecimento pragmático dos membros da audiência.

Destacamos que a identificação tanto do alvo quanto da fonte como individual ou coletiva nem sempre é ponto pacífico; daí estarmos a falar em como percebemos a origem ou o alvo do valor deôntico instaurado, respaldados, obviamente, no co-texto e contexto dos discursos em análise. Seguem-se exemplos por meio dos quais explanaremos a dificuldade por nós percebida por ocasião da identificação dos tipos de fonte e alvo bem como o proceder metodológico que adotamos:

54) Cabe ao Governo, portanto, adotar medidas capazes de evitar o pânico que ora se instala na classe média quanto ao futuro e rever posicionamentos fixados na reforma da Previdência que vão provocar graves perdas de renda nas futuras aposentadorias e pensões desse importante segmento da população. [eV1xIiU4Z] Disc15

55) Temos que ver como se vai fazer a reforma e como se vai cobrar. [ev1xIIL4Y] Disc.16

56) É inadmissível a manutenção da atual situação. [ea3mIIU4Y] Disc.12

Os dois primeiros exemplos, (54) e (55), não nos apresentam problemas em termos de identificação dos tipos de fonte e alvo, pois estes se encontram claramente expressos ou facilmente depreendidos. Em ambos, percebemos o indivíduo orador como a fonte da qual emana o valor instaurado; em (54), o alvo é a instituição Governo (expresso) e, em (55), o alvo são indivíduos (parlamentares), segundo depreendemos da utilização do verbo na 1º

pessoa do plural por parte do orador. O alvo sobre o qual recai a proibição instaurada pelo orador em (56), por sua vez, não vem expresso, como se dá em (54), nem podemos depreendê-lo da desinência verbal, como em (55). Temos um caso de ausência de marca em relação ao alvo.

A princípio, a análise do ambiente de proferimento, a Câmara dos Deputados, bem como o conhecimento de que compete aos parlamentares modificar a situação caracterizada pelo orador como inadmissível (informação contextual), nos movia no sentido de asseverar que os parlamentares (indivíduos) são o alvo. Reconhecemos, no entanto, que, nesse caso, muitos poderiam, legitimamente, considerar ser o alvo o Parlamento (instituição), afinal, é a instância que compete modificar a situação denunciada pelo orador. Desta feita, parece-nos que a ausência de uma marca que identifique o alvo sobre o qual recai o valor instaurado é, de fato, estratégia de descomprometimento relevante em discursos políticos. Assim, identificamos uma escala de comprometimento com a responsabilidade de agir ou de indicar quem deve agir que caminha no sentido de um menor comprometimento para um maior, segundo ilustração abaixo:

(-) (+)

Nenhuma marca Instituição Indivíduo

Deste modo, em nossa análise, a ausência de expressões capazes de indicar o alvo sobre o qual o valor instaurado recai foi interpretada como relevante recurso de descomprometimento. Por seu turno, consideramos alusivas a instituições as expressões este Governo, a sociedade, esta Casa, Parlamento, Executivo, Constituição. Por sua vez, as expressões parlamentares, formadores de opinião, deputados, inativos, burocratas, petistas, aqueles que governaram o País, homens públicos, Lula foram interpretadas como designações de indivíduos, embora possamos fazer a ressalva de que, por serem designados desse modo (pela profissão que exercem, pelo partido a que são filiados etc), há, imediatamente, uma referência a instituições. Registramos, assim, que não se trata de uma dicotomia inequívoca.

Em termos porcentuais, dos 189 trechos modalizadores deônticos presentes em nosso corpus, 85% tiveram indivíduos como fonte da qual emana o valor instaurado. No que concerne ao alvo, 25% dos valores instaurados recaíram sobre indivíduos. A alta produtividade da ausência de marcas indicativas daquele/ daquilo sobre o qual recai o valor instaurado se fez notar em 65% das ocorrências. Em apenas 10% das ocorrências foram percebidas instituições como alvo.

Percebemos a alta produtividade de indivíduos como fonte de valores deônticos e alta produtividade da inexistência de marcas indicativas do alvo. Se indicar como alvo uma instituição, segundo comentamos acima, já permite ao orador fazer recair o valor deôntico instaurado apenas indiretamente sobre si e seus pares, utilizar-se apenas de expressões como “É inadmissível”, presente em (56), sem indicar a quem compete alterar a situação denunciada, soa como um eco de revolta, um extravasamento. Há um forte efeito retórico nesse tipo de enunciado, e um baixo comprometimento com o encaminhamento das ações necessárias.

Ainda sobre o alvo deôntico, deixamos claro que, quando asseveramos a ausência de uma marca que nos indique ser o alvo um indivíduo ou instituição não estamos postulando sua inexistência; trata-se de um modo de dizer que diminui responsabilidades. Ressaltamos que, no estudo, não interessa a existência real do alvo. A argumentação fundamenta-se na linguagem, nesse modo, o falante opta por não explicitar o alvo, o que tem como efeito a diluição das responsabilidades.

Documentos relacionados