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Obrigação, permissão e proibição: subtipos

CAPÍTULO V – A MANIFESTAÇÃO DA MODALIDADE DEÔNTICA EM

5.4. Obrigação, permissão e proibição: subtipos

Conforme mencionamos no capítulo anterior, para análise dos tipos de valores deônticos instaurados, utilizamos a proposta de Almeida (1988). Desta feita, na tentativa de flagrar as distintas e, por vezes, sutis nuances na instauração de valores deônticos, adotamos, parcialmente, a classificação de Almeida na análise das obrigações e proibições, caracterizando-as como dever transferido (externas) ou como dever autodestinado (internas), e, integralmente, na análise das permissões, analisando-as como sugestão, concessão, autorização ou ordem.

Quando, por ocasião da instauração de uma obrigação ou proibição, o orador recorre a atributos tradicionalmente cultuados, em nossa sociedade, como pertencentes aos homens de bem – justiça, coerência, lealdade, solidariedade – a fim de fundamentar, respaldar o valor instaurado, afirmamos estar diante quer de uma obrigação interna, quer de uma proibição interna. Valendo-se de um expediente lingüístico sugerido por Almeida, estaríamos diante de um enunciado que poderia ser parafraseado como temos a obrigação de... Somos, de fato, ensinados que temos a obrigação de compartilhar, de ponderar as conseqüências de nossos atos... (proceder moralmente desejável); por outro lado, ouvimos que temos a obrigação de não nos julgarmos superiores aos outros, de não agirmos deslealmente (proceder moralmente reprovável). Os exemplos (45) e (46) ilustram, respectivamente, obrigação interna e proibição interna:

45) Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, a coerência deve ser a bússola dos homens públicos de bem, que, apesar de não serem impedidos de rever posições ou mudar de

opinião ao longo de sua trajetória política, devem fazê-lo de forma responsável, sem se exporem ao ridículo ou ao constrangimento. [ev1mIIU4K] Disc.11

46) Realmente, de vez em quando, sinto-me envergonhado de ser Parlamentar. Por mais que discorde historicamente das posições do PT, tenho certeza de que ninguém pode praticar estelionato eleitoral para chegar ao Governo. Não é possível mandar cartas, discursar contra a reforma da Previdência e, quando aqui chega, apresentar uma proposta mais draconiana ainda do que seu antecessor! [Mv3mIIU4Y] Disc.33

Em (45), o orador fundamenta as obrigações que instaura em atributos consagrados por nossa sociedade como imprescindíveis a pessoas respeitáveis. Temos a obrigação de ser coerentes e responsáveis e não mudarmos de posicionamento, oportunistamente, se almejamos granjear um mínimo de credibilidade. Quanto ao trecho (46), registramos a inexistência, no ordenamento jurídico brasileiro, de uma sanção institucionalizada para o que o orador denominou de estelionato eleitoral. Desta feita, ao instaurar as proibições presentes no trecho transcrito, o orador respalda-se no atributo moral da integridade; é consenso que, se um representante foi eleito por prometer fazer X, ao assumir a representação daqueles que o elegeram, ele tem, moralmente, a obrigação de fazer X, portanto, de ser íntegro. Existe a obrigação moral, há sanções que podem advir sobre ele (a perda da credibilidade, inviabilizando a continuidade na vida pública, por exemplo), mas não há um poder imperioso capaz de imediatamente sancionar um ocupante de cargo público que não agiu em consonância com suas promessas.

Por sua vez, quando o orador, ao instaurar uma obrigação ou proibição, recorre ao ordenamento jurídico, por exemplo, afirmamos ser a motivação do valor instaurado externa. Nós somos obrigados a obedecer à Norma jurídica. A força da Lei vigente em um País é tão imperiosa que, segundo o princípio constitucional da inescusabilidade, ninguém, nem mesmo um estrangeiro, pode alegar a ignorância sobre a existência de uma lei com o pretexto de justificar a sua não observância. Desta feita, enquanto existem sanções institucionalizadas que recaem sobre alguém que descumpra um contrato lavrado em cartório, por exemplo, daí sermos obrigados a honrar algo juridicamente acordado, não há uma força imperiosa que obrigue alguém a, por exemplo, ser solidário, embora nossa

sociedade dissemine (via religião, educação formal) que temos a obrigação de agirmos solidariamente. Os trechos, abaixo, ilustram, respectivamente, a obrigação externa e a proibição externa:

47) Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, os debates nas audiências públicas promovidas pela Comissão Especial que aprecia a reforma da Previdência Social e os que se realizam nos mais diferentes pontos do País estão demonstrando a absoluta necessidade de revisão, por parte do Governo, de dispositivos constantes de sua proposta original. [Ms1xiiU4K] Disc.38

48) Os servidores públicos têm direitos e não podem arcar sozinhos com a conta da Previdência. [bv3xIIU8Y] Dis.06

Em (47), a obrigação instaurada tem por fundamentação o próprio processo legislativo. Se os debates nas audiências promovidas pela Comissão instituída para apreciar o texto da Reforma, bem como os realizados externamente à Câmara, com a sociedade, indicam a necessidade de rever pontos do texto em discussão, os parlamentares são obrigados a agir em conformidade com o que o processo de discussão está evidenciando; caso contrário, o proceder legislativo pode ser considerado inconstitucional, portanto nulo. Em (48), a proibição instaurada respalda-se na questão legal. Os direitos que os servidores têm, segundo o orador, inviabilizam modificações no sistema previdenciário que resultem em os servidores terem de arcar, sozinhos, com o ônus da dívida da Previdência.

Em termos quantitativos, constatamos que, das 151 seqüências instauradoras de obrigações presentes em nosso corpus, 83 (55%) foram analisadas como internas e 68 (45%) como externas. Quanto às proibições, das 32 seqüências constantes em nosso corpus, 24 (75%) foram consideradas internas e 08 (25%) externas.

Para melhor compreensão da alta produtividade da motivação interna do valor deôntico instaurado na construção da argumentação em discursos políticos, é relevante considerarmos, mesmo que sucintamente, o conceito de topoi presente em Ducrot (1990). Os topoi são princípios argumentativos pressupostos, lugares comuns que, por si mesmos, consistem numa interpretação do mundo e têm força persuasiva pelo fato de constituírem uma sabedoria aceita por muitos, daí terem autoridade. Consideremos o enunciado “a

coerência deve ser a bússola dos homens públicos de bem” sob a ótica da concepção argumentativa da linguagem a fim de entendermos de que modo o conceito de topoi se aplica em nosso trabalho.

A concepção argumentativa da linguagem entende que o sentido argumentativo da linguagem não é psicológico, antes consiste na colocação das coisas em certa perspectiva. Desta feita, não faz sentido dizer que é falsa ou verdadeira a frase “a coerência deve ser a bússola dos homens públicos de bem”, pois seu sentido está na intenção do orador de conduzir o auditório à aceitação de uma, entre muitas, conclusões. Uma das possibilidades caminharia na seguinte condução dos argumentos: Se a coerência deve ser a bússola dos homens públicos de bem (lugar comum), se os membros do Partido dos Trabalhadores mostram-se incoerentes (é o que, de fato, o orador procura evidenciar ao longo de seu discurso), estes são homens públicos mal-intencionados, portanto, indignos da aceitação público.

Percebemos que, ao recorrerem à necessidade de coerência por parte do homem público, à necessidade de construção de uma sociedade mais justa, ao dever cidadão de garantir a sustentabilidade do sistema previdenciário para as próximas gerações, à necessidade de inclusão dos menos afortunados, à inaceitabilidade da ascensão ao poder via mentira, entre outros expedientes, os oradores estão valendo-se de topoi. Os topoi são valorosos à condução da conclusão a que o orador deseja fazer seu auditório chegar na medida em que estabelece como ponto de partida algo cuja aceitabilidade é tão difundida que, dificilmente, será aspecto controverso para qualquer que seja o membro da sociedade no período histórico em que a argumentação está sendo proferida.

Desta feita, a alta produtividade do tipo interno não nos surpreendeu. Afinal, na disputa pelo eleitorado (mesmo não sendo período oficial de palanque; quando a discussão recebe grande atenção por parte da mídia, o que torna o posicionamento dos parlamentares alvo de crítica ou de elogio, ela se torna, sim, delimitadora de eleitorado), o discurso visceral, que faz do orador um paladino dos sentimentos nobres e um ardoroso combatente dos valores tradicionalmente reprováveis pela sociedade, é muito utilizado por políticos.

Ao analisarmos os tipos de permissões, valendo-nos da classificação proposta por Almeida (1988), segundo mencionamos, constatamos a existência, em nosso corpus, dos tipos concessão e sugestão. Os exemplos, a seguir, ilustram ambos os tipos:

49) Mas hoje me permito falar da reforma da Previdência Social. [ev2tpIIL4K] Disc. 16 50) Com a proposta do Governo em mão, poderemos apresentar as nossas. O Governo apresentará um projeto, ao qual estou disposto a votar favoravelmente. Mas, se pudermos apresentar emendas, esta é a Casa e o espaço que finalmente decidirá o verdadeiro encaminhamento. [bv2niIL4Z] Disc.07

Em (49), temos a instauração de uma concessão; o próprio orador concede a si permissão para versar sobre a Reforma da Previdência ao invés de sobre outras questões. Esse trecho está localizado nas palavras introdutórias do orador, portanto atuando como delimitador do assunto a ser considerado. Em (50), temos a instauração de uma sugestão. O orador, que claramente defende o texto emanado do Executivo na íntegra, a fim de não transparecer autoritarismo, traz à tona o direito outorgado pela Constituição aos parlamentares, que podem, sim, emendar um texto em apreciação. É como se ele dissesse que não há imposição da parte do Governo. É muito mais fácil olhar com simpatia algo que não nos é imposto. Assim, mediante a sugestão, o orador evidencia maleabilidade. Essa qualidade é reforçada, ainda, pela inclusão do orador entre aqueles a quem a Constituição permite apresentar emendas a propostas, pois, ao utilizar o verbo poder na 1º pessoa do plural, o orador, que, segundo depreendemos do todo do seu discurso, parece não ter ressalvas ao texto emanado do Executivo, pois a ele manifesta anuência plena, aproxima-se daqueles que desejam propor modificações ao texto.

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