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4. Um vale na periferia urbana de Lisboa

4.3. O sistema irrigado da ribeira de Arroios à Mouraria

4.3.1. As fontes de São Lázaro e São Domingos

A fonte setecentista localizava-se sob o hospital de S. Lázaro, no espaço junto da capela de Nossa Senhora do Desterro, sendo composta por um poço situado num curral, com uma cruz de pedra e um campo de esterco que abastecia o rego de Arroios através de um caminho fronteiriço à horta do hospital.260 No século XVI, a fonte ainda era conhecida por “poço de São Lázaro”, 261 fazendo parte das diversas de fontes de água que serviam o sistema irrigado de todo o vale, habitualmente implantadas em cada uma das almuinhas, ainda que ocorressem alguns casos de partilha da água.262 Embora raros, esses casos constituíam-se como bons indicadores do comportamento do sistema perante processos de segmentação do seu traçado original. Traduziam uma resistência

260

“Da banda de Norte, parte com caminho por onde vêm as águas do curral em que está um poço e uma cruz de pedra e de um estericho que está de fronte da Santa Cruz até chegar à ponta que volta para o rego que está entre as hortas, tendo de largo ao longo desse caminho afeição dele 48 varas,” ANTT, Hospital

de S. José, liv. 1895, fl. 20.

261

"Azinhaga que vai por entre as ortas dos canos de Sao Vicente para o poço de Sao Lazaro,” ANTT,

Gaveta 21 da Torre do Tombo, m.. 1, doc. 1, fl. 32.

262

Essa partilha pode ser observada no reguengo régio, ainda durante o século XV, a partir da confirmação de um chão a Rui Sequeira, dada na sequência da sua queixa contra Lourenço Afonso, por este usar a água do poço comunitário: metade para o consumo doméstico, metade para irrigar a horta, poluindo, assim, a fonte e o seu chafariz, cf. ANTT, Livro IV da Estremadura, fl. 17v. Contudo, já no século XIII se observa a utilização da água entre diferentes almuinhas, numa prática que impunha já ser delimitada. Nesse sentido apontava o testamento de Giral Paes, com data de Maio de 1318, pelo qual concedia à sua sobrinha Maria Perez uma almuinha situada no arrabalde, ADB, Colecção Cronológica, n.º 326 (pública forma de 3/12/1319). Quando em 1326 esse testamento foi finalmente executado, os cónegos vicentinos fariam questão proibir a prática corrente de partilha de água entre esta almuinha e uma outra das Comendadeiras de Santos emprazada à mesma senhora, cf. ANTT, Mosteiro de São Vicente de

100 que apenas a abertura de novas fontes de água e por de novas áreas irrigadas poderia modificar. Seria esse o caso do Mosteiro de São Domingos de Lisboa que no decurso da sua implantação viria a abrir uma nova fonte junto ao seu curral provavelmente na segunda metade do século XIII.263 Nesse sentido, apontam os vestígios arqueológicos da Praça da Figueira, onde foi detectado um nível de impermeabilização dos solos datado entre a segunda metade do século XIII e os inícios do século XIV.264

O aparecimento desta fonte em São Domingos não vinha apenas estabelecer uma nova área irrigada ribeira abaixo, refletia antes de mais uma dinamização progressiva desse espaço promovida pela instalação de um novo mosteiro nesse espaço e pela incrementação dos sistemas irrigados intramuros. Contudo, este processo de instalação não deixaria de ter contribuído para as tensões sociais que atravessaram os últimos anos do reinado de D. Sancho II e se prolongaram para o reinado do seu irmão, o Bolonhês.

No cerne dessa questão, encontrava-se a construção do mosteiro, a par do reguengo e fazendo uso de um chão que até ali pertencera ao concelho.265 A chegada do Conde de Bolonha ao poder levaria finalmente à concretização desse projeto266 e à doação de uma extensa propriedade no espaço onde se incluiria a horta, o conchoso e o olival com a sua pedreira267 (vide Mapa 4), mas não resolveria essa tensão. Apenas nos

263

Fruto desse evento viria a nascer um poço “novo”, que se manteria na documentação dos mendicantes durante o século XV; ANTT, Mosteiro de São Domingos de Lisboa, Livro 12, fl. 1.

264

Rodrigo Banha da SILVA, “A ocupação do período da dominação islâmica na Praça da Figueira (Lisboa)”, em Actas do Congresso Afonso Henriques e a sua época, Lisboa, Associação dos Amigos de Lisboa, (em publicação) (http://www.museudacidade.pt/arqueologia/estonline/Publicacoes/A%20ocupa% C3%A7%C3%A3o%20isl%C3%A2mica%20da%20Pra%C3%A7a%20da%20Figueira.pdf).

265

Cf. ANTT, Núcleo Antigo, livro 314, fl. 17v.

266

De acordo com a epígrafe desaparecida que comemorava a sua fundação no ano de 1249: “Strenuus Alfonsus Rex Quintus Portugallensis / Qui Dilatavit Regnum Patris et Reparavit / Ac Extirpavit Pravos Hostes Superavit / Istius Ecclesie Iecit Fundamenta Magnis / Sumptibus Egregie Complevit Quinque Bis Annis / Annos Millenhos Domini Desciesque Vigenos / Ac Quinquagenos Minus Uno Collige Plenos / Cum Rex Incipiens Opus Hoc Produxit In Esse / Annos Tres Faciens Ex Quo Rex Ceperat Esse”, em EMP, vol. 2, Tomo 1, n.º 338, pp. 846.

267

ANTT, Mosteiro de São Domingos de Lisboa, liv. 20, fls. 2 (13-7-1372) e 3 (2-1-1337). Na descrição de 1372, refere-se que este terreno, composto por um olival e por uma pedreira, teria sido doado pelo Rei D. Afonso III. Partia do adro da Igreja, subia na direção do muro da cidade e descia pelo outro lado, para o Vale de Arroios, até junto do rego onde o conchoso dessa instituição se situava, a par de uma almuinha de S. Vicente de Fora: ANTT, Mosteiro de São Vicente de Fora de Lisboa, mç. 9, doc. 12 (1-1-1339). As

101 inícios do reinado de D. Dinis é que esses agravos seriam por fim resolvidos com a concessão de diversos privilégios ao Concelho, 268 ainda que esse campo que outrora pertencera ao município, fizesse agora parte do reguengo régio (vide Mapa 4).

A consequência mais visível para o sistema seria uma expansão do sistema a jusante, impondo mais transformações do ponto de vista da interação dos poderes nesse espaço, se bem que isso não tenha tido outras implicações na distribuição da água nos percursos irrigados a montante. Para isso contribuía a autonomia do sistema de São Domingos obtida através da edificação do poço “novo”, que à imagem do poço de São Lázaro, faria uso do regueiro vindo de Arroios para distribuir a água na sua horta e permitindo igualmente o abastecimento das hortas reguengueiras situadas junto da Rua da Betesga. Nesse espaço, o próprio rei mantinha igualmente poços como forma de armazenamento e fornecimento de água, procurando obter uma autonomia progressiva das fontes de água que percorriam o eixo estruturante do rego. 269 Este comportamento indicava assim um processo de autonomização das diversas áreas do sistema irrigado associado a uma progressiva expansão da área urbanizada das almuinhas cada vez mais presente a partir da construção da Cerca Fernandina.