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4. Um vale na periferia urbana de Lisboa

4.3. O sistema irrigado da ribeira de Arroios à Mouraria

4.3.3. O sistema e a sua área habitacional

A entrada destas instituições a partir da conquista cristã teve diversas consequências na organização de cada almuinha, composta pela área irrigada e por uma área habitacional não irrigada. Como adiante veremos, isso implicaria um cuidado particular na interação com os espaços irrigados de forma a garantir a preservação destes sistemas. Essas transformações podiam ser observadas sobretudo nas formas distintas das estruturas das casas das almuinhas identificadas arqueologicamente até à data da conquista cristã e as descritas pela documentação no século XV.

Desse modo, a imagem destas propriedades em inícios do século XII permitia identificar sobretudo as áreas habitacionais. Neste espaço, normalmente, elas eram compostas por uma divisão apenas, na qual se conjugavam os espaços de armazenamento e as lareiras estruturadas291, à imagem de outras habitações já conhecidas por todo o al-Andalus.292 As estruturas conhecidas na Encosta de Sant’Ana, em conjugação com os seus vestígios materiais, refletem o que teria sido uma ocupação permanente entre o século IX e a conquista cristã de Lisboa, ainda que em construções

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Esse tipo de área habitacional foi identificado na Encosta de Sant’Ana, caracterizando-se pela presença de diversos silos construídos e reutilizados como fossa detrítica durante o domínio islâmico, em associação a uma lareira estruturada: Cf. Diego ANGELUCCI et alli, ob. cit., p. 34; Marco CALADO; Vasco LEITÃO, ob. cit., pp. 462-463.

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André BAZZANA, Maisons d’al-Andalus. Habitat médiéval et structures du peuplement dans

l’Espagne orientale, Madrid, Casa de Velázquez, 1992, p. 129-131. Para um contexto rural em Portugal

durante o domínio islâmico, conferir para o sítio de Alcaria Longa, James BOONE, “Tribalism, Ethnicity and Islamization in the Alentejo of Portugal: preliminary results of investigation into transitional period (AD 550-850) rural settlements”, em Era Arqueologia, n. º 4 (Dez. 2000), Lisboa, pp. 104-121, e para outros exemplos no estudo de Helena CATARINO: “O Algarve oriental durante a ocupação islâmica: povoamento rural e recintos fortificados”, em Al-Ulyã. Revista do Arquivo Histórico Municipal de Loulé, n.º 6, vol. 2, Loulé, 1997/98, pp. 720-731.

107 relativamente perecíveis.293 Por seu turno, o bairro islâmico junto da Praça da Figueira traduzia provavelmente uma urbanização mais cuidada, com ruas estruturadas, a que não seria estranha a proximidade ao núcleo urbano.294

As estruturas que lhes sucederiam entre os séculos XII e XIII, ainda que nos sejam desconhecidas, não deveriam ser muito distintas das anteriores, refletindo hipoteticamente uma organização distinta naquele espaço, orientadas a partir dos dois núcleos do vale no sítio de São Lázaro e da Corredoura, bem emanado pela distribuição de outras estruturas, como as adegas e os lagares que se estendiam pelas vias até à cidade, caso da rua que ia para a Corredoura, na freguesia de S. Julião, ou da rua que ia para São Lázaro.

A partir de meados do século XIII, quando surge a primeira documentação notarial sobre as hortas, aparecem rapidamente contratos, onde se refere não apenas a manutenção da área irrigada, mas também a construção de casas. Desse modo, quando, em novembro de 1321, os cónegos de São Vicente realizaram um contrato de emprazamento de uma almuinha acima da Corredoura a Fernão Joanes e sua mulher, Domingas Gil, o casal ficava obrigado a explorar e manter a vinha e construir casarias nos limites dessa propriedade,295 sem, ainda assim, ter direito a emprazá-la. Apenas em 1324, esta instituição viria a emprazar-lhe a casa sob a condição fazer uma casa de pedra e telha de modo a servir como habitação permanente. De certo modo, a intenção dos cónegos de São Vicente refletia o investimento que cada vez mais se impunha na almuinha através da construção de áreas habitacionais mais duráveis seguindo modelos

293

Marco CALADO, Vasco LEITÃO, ob. cit., p. 463 e ss.

294

Apesar do nosso desconhecimento sobre tais estruturas dada a ausência de dados publicados, as informações fornecidas pelo Professor Carlos Fabião e pelo Arqueólogo Rodrigo Silva, além das comunicações sumárias disponíveis em alguns artigos, permitem localizar tanto a sua presença no espaço mais meridional da Praça da Figueira, como a existência de estruturas e ruas anexas. Sobre este assunto, conferir Jacinta BUGALHÃO, “Lisboa Islâmica: uma realidade em construção”, em Xelb 9 – Actas do 6º

Encontro de Arqueologia do Algarve: O Gharb no al-Andalus: sínteses e perspectivas de estudo, Silves, 23, 24 e 25 de Outubro de 2008 Homenagem a José Luís de Matos, Silves, Câmara Municipal de Silves,

2009.

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"E uos deuedes logo affazer en essa almuinha a par da Carreyra hua casarya per uos assi convem cada huma da fonte que y forem feytas e dardes della assim como em derem de cada huma das outras sey fezer feytas com seruentura a certas cassarias nom forem feytas a dicta casarya deve ficar" (...) “E uos deuedes logo affazer e assentar as casas e os poços dessa almuinha todo a uossa custa de todolas cousas que llas cumpre e faz mester,” ANTT, Mosteiro de São Vicente de Fora de Lisboa, m. 6, doc. 31 (27-11-1321).

108 urbanos distintos dos conhecidos na encosta de Sant’Ana no século XII296. Além disso, prescrevia alguns cuidados na interação entre as áreas habitacional e agrícola irrigada, de modo a garantir que a última não era poluída pela primeira.297 Estes princípios contratuais, como a proibição de arremesso de detritos sólidos e líquidos, assumiam-se para os sistemas irrigados como uma das formas fundamentais de assegurar a salubridade da água usada na irrigação das suas almuinhas e daquelas situadas rego abaixo.

Alguns destes princípios traduziam-se igualmente na imposição da limpeza das ruas e, em particular, dos regos e canos que atravessavam a cidade e também estes vales irrigados. Esta situação encontrava-se bem documentada nas posturas tardomedievais para os canos junto à Porta de São Vicente,298 que seguem os princípios conhecidos para Santarém no que se refere à preservação das hortas através dos foros e costumes.299 A aplicação destas normas refletia assim o reconhecimento da fragilidade do uso da água nestes sistemas, impondo necessariamente uma distribuição própria da área habitacional face à área irrigada de cada almuinha. Essa organização apenas se viria a romper com a progressiva urbanização desse espaço iniciada primeiro junto das vias que atravessavam o vale, como a Rua de São Lázaro, e mais tarde, na área intramuros, com a edificação da Rua Nova da Palma, como já acima foi referido. Seria nesta área que este desequilíbrio seria mais rápido, mas também onde a incrementação e a divisão da área irrigada estaria

296

”Uos façades en essa casaria huma boa casa de pedra, de cal, de madeyra e de telha e de todallas outras cousas que pertencerem a dita casa,” ANTT, Mosteiro de São Vicente de Fora de Lisboa, m. 6, doc. 41 (13-6-1324).

297

“Uos nom deuedes na dicta casa ffazer ffresta nem janela nem huma contra a nossa Almoyna per que possa deytar esterco nem agua nem lixo, per que a dita almoyna calhe dano nem perda,” ANTT, Mosteiro

de São Vicente de Fora de Lisboa, m. 6, doc. 41 (13-6-1324).

298

Cf. AML, Chancelaria da cidade, Livro das Posturas Antigas, doc. 3, fl. 1 (publicado em Livros das Posturas Antigas, leit. paleo. e transcrição de Maria Teresa CAMPOS RODRIGUES, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1974). Acerca das posturas medievais e da vida urbana em Lisboa, consultar Iria GONÇALVES, “Posturas municipais e vida urbana na baixa Idade Média,” em Estudos Medievais, n.º 7, Porto, 1986, pp. 155-172.

299

Cf. Portugaliæ Monumenta Historica, a Sæculo Octauo Post Christum usque ad Quintum-decimum

iussu Academiæ Scientiarum Olisiponensis edita: Leges et Consuetudines, Alexandre HERCULANO

(ed.), Olisipone, Typis Academicus, 1858-1873; Maria Alice TAVARES, Vivências quotidianas da

população urbana medieval: o testemunho dos Costumes e Foros da Guarda, Santarém, Évora e Beja,

dissertação de mestrado em História Regional e Local apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, texto policopiado, 2007, pp. 102-105.

109 mais presente. Seria esse o caso dos sistemas presentes no Mosteiro de São Domingos e no Vale Verde que agora vamos conferir.