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4. Um vale na periferia urbana de Lisboa

4.1. Os núcleos periféricos do vale da Mouraria

4.1.1. Os núcleos nos montes e colinas a par do Vale de Arroios

Os pequenos núcleos rurais estabelecidos em torno deste vale apresentavam diversos tipos de povoamento. Durante os séculos XII e XIII, encontrava-se um conjunto de realidades de reduzida dimensão, orientadas para a exploração de recursos,

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Maria Filomena BARROS, A Comuna Muçulmana de Lisboa. Sécs. XIV e XV, Lisboa, Hugin, 1998, p. 90

86 ou de caráter religioso ou, ainda, consagrado à defesa da cidade. Distingui-los-ia a dinâmica que cada um alcançaria ao longo das centúrias seguintes, por vezes, integrando-se no aro urbano, por outras, permanecendo praticamente até ao século XX quase inabitadas.

Desse modo, sobre as colinas adjacentes, surgiam os primeiros topónimos referidos na documentação, que correspondiam aos sítios de São Gens (Senhora do Monte) e de Almofala (Monte da Graça).213 Estes sítios dominavam visualmente o vale, delimitando-o na sua geografia física e humana, tendo servido de eixos orientadores do crescimento da moderna Avenida Almirante Reis.214 No seu topo, encontravam-se diversos moinhos, inseridos nos domínios do Mosteiro de São Vicente de Fora. Situados nas proximidades do lugar onde D. Afonso Henriques teria estabelecido o seu acampamento na operação de conquista de Lisboa, em 1147, os conhecimentos acerca destas estruturas são escassos para o período. Entre os poucos dados conhecidos, a história da implantação dos eremitas de Santo Agostinho revela-se particularmente útil.

De acordo com a história, o sítio de São Gens era assim denominado em memória do segundo bispo de Lisboa no século IV d.n.E..215 No século XIII, o local teria sido doado a quatro eremitas de Santo Agostinho, para a construção de um eremitério, com o propósito de substituir outro mais antigo, situado na encosta acima do que viria a ser o Bairro das Olarias, não muito distante do qual o bispo do Porto faria o seu famoso discurso às tropas atacantes, em 1147. Contudo, por se encontrarem num local pouco protegido do vento, os eremitas acabaram por mudar a sua localização a partir de uma nova doação, agora para o monte de Almofala, onde fundaram o Convento da Graça em 1291.216

213

ANTT, Mosteiro de S. Vicente de Fora de Lisboa, mç. 1, doc. 9.

214

Jorge GASPAR, A Dinâmica Funcional do Centro de Lisboa, Lisboa, Livros Horizonte, 1986.

215

D. Rodrigo da CUNHA, História Ecclesiástica da Igreja de Lisboa: vida, e acçoens de seus Prelados,

& varões eminentes em santidade, que nella florescerão, Lisboa, por Manoel da Sylva, 1642.

216

Cf. Maria Júlia JORGE, “Senhora do Monte (Ermida da)”, em Dicionário da História de Lisboa, dir. de Francisco SANTANA, e Eduardo SUCENA, Lisboa, Carlos Quintas e associados, 1994, pp. 876-877; Manuel Maia ATHAIDE, “Ermida de N. S. do Monte”, em Monumentos e edifícios notáveis do Districto

87 Após a instalação deste mosteiro, consagrado a Nossa Senhora da Graça, observou-se um fenómeno de progressiva substituição do topónimo árabe,217 indicador potencial de um povoado muçulmano presente nos subúrbios da cidade cuja nova designação associou ao culto dos eremitas de Santo Agostinho. Os diversos passos que levaram à sua implantação no atual monte da Graça são bons indicadores das peculiares características de ambos os núcleos de povoamento.

Em ambos os casos, distinguem-se pela posição de domínio visual sobre o vale a Ocidente e por uma estratégia comum de exploração dos recursos naturais: neste caso, os moinhos de vento. No entanto, apresentam uma evolução distinta, na qual o abandono dos eremitas de Santo Agostinho teria um papel marcante. Por um lado, São Gens permaneceria um pequeno núcleo, com importância restrita na documentação até finais do século XIII, indício de um lento crescimento, a que as características topográficas e ambientais não seriam alheias. Por outro lado, Almofala foi-se urbanizando progressivamente, influenciada pela sua localização nas cercanias da cidade e do crescente subúrbio do Mosteiro de São Vicente de Fora. Além disso, assentava nas proximidades do eixo viário que se dirigia a Santarém, um dos mais importantes do termo olisiponense e que garantia a ligação ao interior da urbe. A sorte destes dois subúrbios acabou por ser selada no momento em que se construiu a Cerca Fernandina. Enquanto o Monte de São Gens ficaria isolado, apenas com o dito eremitério consagrado ao segundo bispo de Lisboa, o topo do Monte da Graça foi inserido no perímetro amuralhado, à imagem de S. Vicente de Fora, ainda que se mantivesse eminentemente rural, como é visível em algumas imagens da cidade de Lisboa no século XVI (vide Ilustração 3).218

Os sítios de São Gens e de Almofala não seriam no século XII os únicos núcleos de povoamento em altura. No lugar da atual Penha de França, surgia ainda nos inícios do século XV o topónimo “Cabeço de Alporche”. Este topos de origem muçulmana teria a sua origem na palavra al-burj, tendo como significado torre isolada. Dada a

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Trata-se de um topónimo de origem árabe, que radica na palavra al-mahâla, cujo significado habitual indicia uma posição dita estratégica. Cf. António REI, “Ocupação Humana no Alfoz de Lisboa durante o período Islâmico (714-1147) ”, em A Nova Lisboa Medieval, Actas do Encontro, Lisboa, edições Colibri, 2005, p. 34, nota 54.

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Cf. “Olissipo: quae nunc Lisboa, civitas amplissima Lusitaniae, ad Tagum, totius Orientis et multarum Insularum et Aphricaeque et Americae emporium nobilissimum”, in G. BRAUN & F. HOGENBERG,

88 proveniência do topónimo e, sobretudo, a sua particular implantação num dos sítios onde mais facilmente era assegurado o controlo visual do vale, pode constituir-se como um indício da presença de um sítio, pelo menos, desde o domínio islâmico.219

Alcandorados nos montes do Vale de Arroios, estes sítios dominavam visualmente uma via de acesso à cidade pelo Norte e todas as que seguiam para Oriente, através quais, na última metade do século XIV, entrariam os exércitos castelhanos de D. Henrique e de D. João de Trastâmara. Em simultâneo, constituíam-se como pontos de apoio aos sítios radicados nos vales, que se consagravam à exploração dos seus ricos solos. Ainda assim, apenas o sítio da Penha de França, pelas suas condições de difícil acesso, fácil proteção e domínio pleno sobre o vale, poderia enquadrar-se na noção habitual de “povoado de altura”.220 A posição de destaque permitia-lhe manter, não apenas uma relação visual com o castelo, como também com algumas das mais importantes aldeias do planalto olisiponense, como Alvalade, Chelas e, mesmo, o Lumiar, constituindo-se provavelmente como um elemento essencial no sistema de defesa da cidade durante a Idade Média.