• Nenhum resultado encontrado

O curso de Odontologia da faculdade 8, público, funciona há várias décadas. Por ocasião da publicação das DCNCGOs, uma comissão de reforma curricular previamente existente foi ampliada com o engajamento de representantes de várias áreas e disciplinas e também com uma representação discente. Ao longo dos anos seguintes, essa comissão, “com demandas diferentes, quanto à construção de uma nova estrutura curricular” (DOC 8), discutiu o funcionamento do curso e estratégias de implantação de um novo currículo, por considerar o currículo até então vigente “inadequado, simplesmente pelo fato de ter sido pensado em um outro contexto, com uma outra concepção de ensino e dentro de uma lógica radicalmente diferente da atual” (DOC 8). Ao final, a instituição aprovou um novo PPP (que no momento desta pesquisa estava no quarto semestre de implementação), o qual ressalta possuir “dialeticamente, as características de concepções distintas, resultado de diferentes visões de mundo, de diferentes inserções no processo de educação superior. É, no entanto, o produto de uma reforma possível, que avança na tentativa de superação das deficiências da atual proposta” (DOC 8).

O trabalho de análise qualitativa deste novo PPP evidenciou a preocupação, acima de tudo com a adaptação do curso às DCNCGOs. Não apenas a análise detalhada do conteúdo em si e do seu direcionamento revelam este objetivo, mas também a inclusão explícita de conceitos e de longos trechos das diretrizes no documento, como por exemplo, a respeito das competências e habilidades gerais e específicas do cirurgião-dentista.

Uma das principais mudanças instituídas pelo novo PPP consiste na reestruturação do currículo com a integração das disciplinas profissionalizantes, por meio do trabalho multidisciplinar nas clínicas de complexidade crescente. Ainda hoje, as disciplinas pré-clínicas e clínicas deste curso possuem, cada uma delas, o seu próprio ambiente de ensino-aprendizagem, seus próprios laboratórios e clínicas, ao que atribuem parcialmente a visão fragmentada da prática odontológica, como relata abaixo um dos professores entrevistados:

...os feudos são avessos às reuniões, a contatos, à conversa. Eu sei porque eu faço parte de um deles, mas graças a Deus eu me libertei um pouquinho dele, entendeu? (...) Eu sou da (nome da disciplina) que era um

feudo fechadão. Pra você ter idéia na (nome da disciplina) tem sala de aula, tem clínica, tem laboratório só para quem trabalha com (a especialidade), a tal história (ENT P18).

No novo currículo, estas disciplinas do ciclo profissionalizante deverão atuar conjuntamente, não apenas no mesmo ambiente, mas de forma integrada no ensino e no atendimento clínico. No entanto, as disciplinas do chamado ciclo básico não foram pensadas sob esta mesma lógica, fato justificado pelo “modo ainda tradicional de organização burocrática e administrativa da instituição” (DOC 8). Outra ressalva a esta questão da integração curricular e que surge também nos discursos dos docentes como um dos avanços do novo currículo, é que o conceito de multidisciplinaridade está restrito ao trabalho conjunto de disciplinas apenas do curso de Odontologia. Experiências de ensino-aprendizagem multiprofissional não estão previstas, nem mesmo no estágio supervisionado extra-muros, no último período do curso, onde atuam estudantes de diferentes cursos de graduação em saúde.

Uma segunda mudança curricular enfatizada, diz respeito a uma maior importância às temáticas da saúde coletiva. É possível perceber a valorização das diferentes áreas pela distribuição do tempo curricular entre elas (Figura 23) e, efetivamente, as disciplinas que estão diretamente relacionadas à saúde coletiva e aos serviços públicos passaram a ocupar, de 5,30% no antigo currículo, 9,75% do tempo da nova matriz curricular, devido à inclusão de 4 disciplinas de Saúde Bucal Coletiva ao longo da formação.

Figura 23 – Distribuição da carga horária do curso entre as disciplinas agrupadas por temas, nos currículos antigo e novo da Faculdade 8.

Contudo, o aumento da carga horária destinado à temática é um indicador limitado, parcial, uma vez que puramente quantitativo. Ao se aprofundar a análise neste sentido, percebe-se que não está prevista uma integração do ensino-serviço: não há planejamento comum dos serviços de saúde nas áreas de influência do curso, nem um serviço de referência e contra-referência com a rede

básica. Não há previsão de um programa de integração docente-assistencial, estando a participação de profissionais da rede no ensino limitada à atuação clínica no serviço de pronto-atendimento da faculdade, e a participação de docentes na rede sendo esporádica. O termo “saúde da família”, por exemplo, consta uma única vez em todo o documento institucional, ainda que nele estejam inclusas as ementas de todas as disciplinas relacionadas à Saúde Bucal Coletiva. Por tudo isto, resultam escassas as situações de ensino-aprendizagem pensadas na própria rede de assistência à saúde, muito embora o direcionamento pelo Sistema Único de Saúde com o aprendizado em cenários variados seja uma das principais diretrizes curriculares. É evidente que um novo currículo vai sendo aperfeiçoado concomitantemente com a sua implantação e que as ausências aqui indicadas, entre outras, poderão vir a ser contempladas, mas de qualquer maneira, o não-dito no PPP de alguma forma também diz sobre as escolhas, valores e possibilidades de cada curso.

Apesar da preocupação com a formação humanística também ser enfatizada no documento, uma análise mais apurada questiona tal discurso: no currículo anterior as disciplinas de humanidades correspondiam a 6,93% da carga horária. Com o aumento desta e a manutenção do número de horas dedicadas a tais disciplinas, tal proporção diminuiu, passando a ser de 5,81% (Figura 23). Além disto, o formato dessas disciplinas, isoladas dos conteúdos profissionalizantes e ofertadas por professores externos ao curso, também não foi considerado no novo currículo. Colabora nesta interpretação a observação de uma única disciplina responsável por desenvolver “habilidades relativas ao trabalho em equipe, à multidisciplinaridade e à articulação entre cidadania e saúde” (e uma das poucas que inclui em sua ementa a abordagem de “questões éticas em trabalho social”). Apesar de tudo isto, a disciplina é considerada no documento “uma atividade de flexibilização”, optativa e complementar (DOC 8).

Já os conteúdos relacionados à pesquisa científica que antes não figuravam no currículo passaram a corresponder a 5,81% deste, e as atividades complementares (monitorias, estágios, pesquisa de iniciação científica, participação em eventos, publicação e apresentação de trabalhos etc.) entraram no currículo, respondendo por 2,29% da carga horária total (Figura 23). Todas estas alterações curriculares confirmam a preocupação do curso em se atualizar, adequando-se às diretrizes.

Mas é preciso atentar para o fato de que a aparente redistribuição do tempo entre os temas curriculares se deve basicamente ao aumento no total de horas do curso. Isto fica evidente ao se observar as disciplinas básicas, que ocupavam 24,48% do tempo, e que no novo currículo passaram a equivaler a 20,86%, embora a redução tenha sido de apenas 15 horas-aula. Do mesmo modo, as disciplinas pré-clínicas e clínicas que antes representavam 63,26% do total, apesar de terem sido aumentadas em número, agora constituem 55,53% do tempo curricular. O depoimento dos

estudantes evidenciou que a carga horária destas disciplinas, na prática, não foi diminuída com a integração curricular, mas mantida ou mesmo aumentada:

Tem aula aqui, em determinadas disciplinas, que tem duas aulas na segunda e três aulas na quarta (na grade curricular), mas eles dão a manhã toda da segunda, a manhã toda da quarta e a manhã toda da sexta e assim, do início ao fim do período (ENT E8).

Se a gente tem tanta aula, porque isso não está no nosso currículo? Devia entrar no currículo (GFC 8).

Assim, as mudanças propostas não são indicativas de um reequilíbrio entre o enfoque biológico/clínico hegemônico e o social/epidemiológico, ou de uma provável alteração do perfil do egresso, de clínico especialista com preferência pela atuação liberal para o profissional generalista, capacitado a atuar de acordo com as necessidades da sociedade. Ainda que o PPP afirme tal qual as DCNCGOs que “o Cirurgião Dentista deve ter uma formação generalista, humanista, crítica e reflexiva” (DOC 8), poucos elementos no documento reforçam este objetivo, estando mais incorporados ao discurso formal do que à proposição de estratégias práticas que visem mudanças efetivas no ambiente de formação.

A capacitação dos docentes para uma nova atuação acadêmico-pedagógica é mencionada superficialmente, tanto na voz dos docentes ouvidos...

Já houve duas oficinas que trabalharam essa questão pedagógica e também para mudar o perfil do professor (...) de cinco em cinco anos tem um curso dado pela Pró-Reitoria de Recursos Humanos com novas metodologias de avaliação e para todo professor que entra na faculdade, em seguida a contratação dele, tem um curso também na PRH (ENT P18).

...quanto no documento: “o curso deverá proporcionar oficinas de trabalho regulares na perspectiva de capacitar os docentes, não somente em questões relativas à avaliação, mas também com relação às técnicas pedagógicas participativas e voltadas para um melhor aproveitamento do aluno” (DOC 8). No entanto, em nenhum outro momento, o documento aborda a inserção de metodologias ativas ou minimamente mais participativas que as tradicionais. Significa dizer que não há indícios de que as aulas deixarão de ser predominantemente centradas nos professores, baseadas na transmissão de conhecimentos e no treinamento de habilidades. O mesmo pode ser dito acerca da avaliação dos estudantes, pois o PPP não contempla a alteração das atuais práticas que empregam principalmente provas escritas e a demonstração das habilidades práticas desenvolvidas.

A responsabilidade docente pela formação moral dos estudantes, pela sua capacidade de reflexão, de autonomia para a crítica e a auto-crítica, tampouco está expressa nos documentos acadêmicos. Assim, as competências política e ética - em seu sentido ampliado parecem ser pouco valorizadas, tanto que a bioética não está de forma alguma inserida no documento institucional e a ética não consta nas ementas das disciplinas que envolvem a relação profissional-paciente.

Apenas uma disciplina enfoca a ética, no entanto, com uma concepção estritamente deontológica, voltada à orientação da postura profissional e dos direitos e deveres profissionais, conforme ressaltado na ementa da disciplina, atualmente chamada de Orientação Profissional:

“Etapas evolutivas da Odontologia; exercício lícito e ilícito da profissão; charlatanismo; curandeirismo; documentos odonto-legais; especialidades; coeficientes estético e mastigatório; identificação; datiloscopia; rugoscopia palatina; odontoscopia; ficha clínica; segredo profissional; perícia odontolegal; doenças profissionais; instalação de consultório; responsabilidade profissional; ergonomia; honorário profissionais; mordidas em Odontologia legal; órgãos de classe; avaliação odonto-legal do complexo maxilo-mandibular; mercado de trabalho em Odontologia; código de ética odontológica” (DOC 8) (destaque nosso).

No novo currículo, esta disciplina passará a ser denominada de Odontologia Legal, reforçando o seu conteúdo forense e mantendo a concepção de ética puramente deontológica, como destacado em sua ementa, na qual consta que a disciplina visa...

“Fornecer ao aluno conhecimentos que ele possa aplicar na identificação dos caracteres do fundamento biológico da identidade, descrevendo os processos de identidade e suas técnicas, classificando as perícias, elaborando documentação para fins forenses; noções da traumatologia forense, aplicando os conhecimento para uma perícia no vivo e no morto com obtenção de imagens empregadas na odonto-legal, orientando para o exercício da profissão, e com conhecimento da ética e da deontologia odontológica” (DOC 8) (destaque nosso).

Coerentemente com as ementas, as indicações relacionadas à ética nas bibliografias destas disciplinas são apenas normativas, não havendo nenhuma referência bibliográfica relacionada à temática ética/bioética, nem a seus referenciais teóricos. Apesar de tudo isto, o PPP atribui a esta disciplina a responsabilidade pela formação ético-humanística dos estudantes, pois como cita “no campo da formação humanística, a disciplina de „Odontologia Legal‟, trata das questões éticas e da organização do trabalho profissional” (DOC 8).

Há apenas mais uma citação de conteúdo ético no documento institucional, na ementa da disciplina de metodologia da pesquisa científica, que inclui a abordagem de “condutas éticas em pesquisa” (DOC 8), porém não há nenhuma referência bibliográfica que dê suporte à temática. Um dos professores entrevistados relata que:

A gente tem que inserir o conhecimento de bioética nessas atividades (de iniciação científica), mas especificadamente no currículo não tem (...) não é uma coisa que esteja fazendo falta porque eu acho que todo mundo tem também, de uma forma empírica, mas todo mundo tenta fazer, sabe? (ENT P28).

Para finalizar a análise do currículo formal deste curso, vale retomar a análise sobre o foco principal do PPP desta faculdade – a necessidade de adaptação às DCNCGOs - para comentar a percepção de uma coerente e constante presença da reforma curricular no discurso de todos os docentes entrevistados, muito embora, também de um modo um tanto limitado. A este respeito, o

professor entrevistado que mais manifestou preocupação e crítica com o rumo deste processo, referiu que o mesmo...

...está engatinhando, sabe? É uma coisa assim que eu acho que se não... que ele pode terminar repetindo muito do outro (...) ele tem um currículo maior de disciplinas da área de humanas e de saúde coletiva, mas a mudança que eu acho, no miolo mesmo que seria nas clínicas é que eu não sei se vai ser possível. A minha grande preocupação é com essas disciplinas das clínicas, né? Porque eu acho que é aí onde se dá realmente a formação do profissional. Se a gente não conseguir, eles vão ter uma boa carga de conteúdo na área de saúde coletiva, mas se ela continuar separada como uma coisa a parte, aqui são os dentistas que vão para o SUS e aqui são os dentistas que vão para a clínica privada, isso aqui vai ser apenas um aporte para os dentistas que vão para o SUS, porque eles vão usar muito pouco o que eles aprenderam na clínica. É a visão tradicional, é essa visão. Então não vai ter muita mudança, você vai ter só um aluno meio... talvez... com uma visão mais ampliada em relação a um perfil melhor para a saúde pública, no sentido dele conhecer melhor o sistema de saúde (ENT P38).

De acordo com a classificação de Almeida (1999), aperfeiçoada por Feuerwerker (2002) (apresentado no subcapítulo 3.1.3), a reforma curricular em implementação nesta faculdade se enquadra no plano mais superficial de mudanças na formação em saúde, caracterizada por algumas inovações pontuais, sem alteração da concepção tradicional de educação e da concepção biologicista em saúde, e portanto, com uma provável reprodução das práticas hegemônicas nas duas áreas. Sendo a dimensão da formação ética influenciável por todos estes fatores e outros mais, é coerente o resultado desta faculdade, nesta pesquisa, como sendo de comprometimento com a formação ética pontual com tendência a inexpressivo.

Porém, vale registrar que, terminada a coleta de dados, a pesquisadora retornou ao questionário relativo a este curso, buscando respondê-lo sob seu ponto de vista. Ao fazê-lo, observou uma área de expansão do modelo radiado ainda menor (42,84%) que a obtida quando respondido sob o ponto de vista do coordenador do curso (57,14%), não apenas, mas principalmente pela menor expansão do modelo nas questões relacionadas à abordagem ética. A este segundo resultado, caberia então a classificação de um comprometimento inexpressivo com relação à dimensão ética da formação profissional.