• Nenhum resultado encontrado

3.1 O marco conceitual

3.1.1 Socialização primária

Foi ao longo da década de 1980 que os conceitos e concepções mais atualizados de socialização foram surgindo, resumidos por Dubar15 (2005, p.XVII), na expressão "construção social da realidade". A partir de então, a distinção entre "socialização primária" e "socialização secundária" permitiu que o conceito se emancipasse do campo escolar e infantil, sendo aplicado com sucesso ao campo profissional, e se conectasse às problemáticas da mudança social.

Atualmente, a socialização pode ser definida como o "processo de construção, desconstrução e reconstrução de identidades ligadas às diversas esferas de atividade (principalmente profissional) que cada um encontra durante sua vida e das quais deve aprender a tornar-se ator" (DUBAR, 2005, p.XVII). Mas para chegar a este conceito, Dubar recorreu à noção de socialização ao longo da história das ciências sociais, valendo-se de algumas grandes teorias que, ao menos sucintamente, aqui precisam ser lembradas.

A primeira delas é a teoria de Piaget sobre a socialização. Para este autor, o desenvolvimento mental da criança consiste em uma construção contínua, não linear, que procede por estágios sucessivos de menor equilíbrio a outros de equilíbrio superior, sendo que em cada um ocorrem os processos de assimilação (incorporação das coisas do mundo exterior às estruturas cognitivas e afetivas já construídas) e acomodação (reajustamento das estruturas em função das transformações externas). Por este processo, passa-se do egocentrismo inicial do recém-nascido à inserção do adolescente escolarizado no mundo profissional e na vida social do adulto. Do estágio inicial ao último, a criança aprende a exprimir sentimentos diferenciados, depois a imitar seus próximos diferenciando-se deles, em seguida a praticar, graças à fala, as trocas inter-individuais, descobrindo e respeitando as relações de coerção exercidas pelos adultos e, então, passa da coerção

à cooperação graças ao domínio conjunto da reflexão como discussão interiorizada consigo e da discussão como reflexão socializada com os demais, o que lhe permite adquirir simultaneamente o sentido da justificação lógica e o da autonomia moral. Essa passagem da coerção à cooperação, em outras palavras, da submissão à ordem social (pais e escola) à autonomia pessoal (colaboração voluntária), constitui um ponto essencial no processo de socialização, ao final do qual a criança terá

seus valores morais organizados em sistemas autônomos, numa correspondência entre operações lógicas e ações morais (DUBAR, 2005, p.4-10).

Assim, a socialização seria um processo de educação moral. Diferentemente de Durkheim, Piaget não a considerava uma transmissão coercitiva do espírito de disciplina, mas sim uma construção ativa e interativa de novas "regras do jogo" que implicam o desenvolvimento autônomo da noção de justiça e a substituição das regras de coerção pelas de cooperação. Deste modo, Piaget instaurou uma cisão entre as relações de coerção estabelecidas sobre os vínculos de autoridade das sociedades tradicionais e as relações de cooperação sobre o respeito mútuo e a autonomia da vontade das sociedades modernas. Considerou a passagem das primeiras as segundas o resultado conjunto de uma evolução intelectual e de um desenvolvimento moral que tornam possível a construção voluntária de novas relações sociais, mesmo por crianças (DUBAR, 2005, p.10-13).

A socialização foi então definida por Piaget como o processo descontínuo de construção individual e coletiva de condutas sociais que incluem três aspectos complementares: o cognitivo (traduzido pelas regras), o afetivo (expresso em valores) e o expressivo que representa os significantes da conduta (simbolizado por signos). Esta concepção se baseia na correlação essencial entre as estruturas sociais e as mentais, ou seja, entre a socialização concebida como a construção de formas de organização da atividade e a concebida como modo de desenvolvimento dos indivíduos. Tal correspondência postula a reciprocidade entre as representações mentais (interiorização das estruturas sociais) e as cooperações sociais (exteriorização das estruturas mentais), sendo dois aspectos indissociáveis de uma mesma realidade, a um só tempo social e individual (DUBAR, 2005, p.14-15).

Embora Dubar não faça referência à teoria de Kohlberg, é necessário ao menos citar o trabalho deste famoso autor que deu prosseguimento aos estudos de Piaget, em relação à teoria em si e também à faixa etária estudada, incluindo adolescentes e adultos jovens. O autor buscou estudar a capacidade cognitiva de avaliar, argumentar e refletir sobre aspectos morais, não entrando no mérito da ação ou prática moral que envolve outros elementos mais (caráter, emoções) que apenas a questão cognitiva (REGO, 2003a, p. 84-5; 2005, p.1082).

Kohlberg compreendeu o desenvolvimento moral como uma passagem progressiva e irreversível, linear e universal, por seis diferentes estágios, agrupados em três níveis de julgamento moral (pré-convencional, convencional e pós-convencional), e subdivididos em: nível 1 - o correto se define em termos de obediência à autoridade e de prevenção do castigo; nível 2 – se considera correto o que serve aos próprios interesses, permitindo aos outros conseguir os seus; nível 3 – o correto é definido pelas relações interpessoais, de acordo com os sentimentos e expectativas compartilhados pelo grupo; nível 5 – a conduta moral se estabelece em termos de direitos e regras básicas aceitadas livremente; e nível 6 – o correto é considerado de acordo com princípios éticos

universais e abstratos livremente aceitos. Estes níveis avançam à medida que as pessoas vão amadurecendo biológica e humanamente, mas a maioria dos indivíduos não amadurece em seus juízos morais, não passando do que seria normal aos 15 anos e inclusive, retrocedendo. Isto porque os últimos níveis só são alcançados mediante a educação e o cuidado com os aspectos emocionais que acabam conformando as atitudes morais (GRACIA, 2000a, p.177), ou seja, interferindo no desenvolvimento moral.

Os níveis do desenvolvimento moral apresentados por Kohlberg são avaliáveis por meio de uma escala que o autor construiu e depois validou (o que tornou sua teoria amplamente conhecida), permitindo a avaliação da capacidade cognitiva de julgamento moral. No entanto, as críticas ao seu uso embasam-se na limitação do estudo do domínio moral apenas pela capacidade de julgamento moral, excluindo a ação moral (REGO, 2005, p.91).

Na continuidade da problemática piagetiana sobre a socialização, Percheron (1974) a prolonga sociologicamente ao fazer da identidade em construção um componente do pertencimento social. Para esta autora, a socialização é um processo interativo e multidirecional entre socializando e socializadores, que implica em renegociações permanentes sobre as necessidades e desejos dos indivíduos e os valores dos diferentes grupos com os quais desenvolve uma relação; é uma construção gradual de um código simbólico, não como um conjunto de crenças e valores herdados, mas um sistema de referência e de avaliação do real que possibilita escolher comportamentos. Ao mesmo tempo, não considera a socialização uma simples transmissão de valores, normas ou regras, mas sim o desenvolvimento de determinada representação de mundo, não imposta, nem pronta, mas composta lentamente pelo indivíduo para si mesmo, a partir das diversas representações existentes que ele reinterpreta conforme suas aspirações e experiências. Também não a considera uma aprendizagem formalizada, mas o produto das influências (presentes ou passadas) dos múltiplos agentes de socialização, freqüentemente impessoal e não-intencional. Enfim, para Percheron, a

socialização poderia ser compreendida como um processo de identificação, de construção de identidade, ou seja, de pertencimento e de relação (DUBAR, 2005, p.22-24).

Para Dubar (2005, p.27-35) essas teorias da socialização da criança permitiram uma ruptura necessária com a concepção de formação/socialização em termos de inculcação de regras, normas ou valores por instituições a indivíduos passivos progressivamente modelados, e ao mesmo tempo, uma ruptura com a representação linear e unificada da formação/socialização em termos de acumulação de conhecimentos ou de progressão contínua de competências, antes remetendo a uma concepção dinâmica deste processo. Conservando o "núcleo" teórico, Dubar acrescenta que a socialização deve ser concebida como permanente e mais complexa, pois já não termina mais com a entrada no mercado de trabalho, mas se prolonga por toda a vida. Também chama atenção para a limitação desta abordagem, centrada no indivíduo-criança e ignorando ou minimizando as enormes

variações que podem ser observadas nos "produtos" da socialização conforme a época, os tipos de sociedade, os meios sociais ou as classes sociais.

A abordagem da antropologia cultural da socialização (Kardiner) e a abordagem estrutural- funcionalista (Parsons), também são criticadas por Dubar. Primeiramente, porque consideram a formação da criança segundo o modelo do adestramento, envolvendo a assimilação precoce e inconsciente de esquemas corporais e atitudes culturais determinantes das condutas futuras. Assim, o indivíduo deixaria de ser um ator livre e responsável para fazer escolhas, para ser um indivíduo programado por suas experiências passadas. Segundo, porque essas abordagens privilegiam as experiências da primeira infância e as imposições da cultura do grupo social de origem, marcando o indivíduo muito mais do que as relações seguintes e considerando o adulto, um produto do complexo parenteral de que provém, a partir da interiorização de valores, normas e disposições. Terceiro, porque têm como pressuposto uma unidade do mundo social, a qual Dubar julga irreal, assim como inúmeros outros sociólogos. Contudo, tais abordagens encontram alguns empregos ainda hoje úteis, como no caso de Merton e a sua noção de socialização antecipatória, que é o processo pelo qual um indivíduo aprende e interioriza os valores, normas e modelos de um grupo de referência ao qual deseja pertencer (DUBAR, 2005, p.67).

Já a abordagem causal-probabilista da socialização a considera um processo biográfico de incorporação das disposições sociais oriundas da família, da classe de origem e do conjunto dos sistemas de ação pelos quais passa o indivíduo em sua vida, o que implica uma relação causal entre o passado e o presente. Sendo as identidades sociais produzidas pelas histórias dos indivíduos, elas também são produtoras de sua história futura, na dependência de suas relações sociais e do balanço subjetivo das capacidades dos indivíduos, capazes de engendrar rupturas nas trajetórias e modificações possíveis das regras do jogo nos campos sociais. Mas segundo Dubar (200, p.93-95), embora tal abordagem permita explicar a reprodução da ordem social, ela apreende de forma insatisfatória a produção das verdadeiras mudanças sociais.

A exteriorização do subjetivo e a interiorização do objetivo, ou seja, a relação entre o desenvolvimento dos indivíduos levando a "identidades sociais" e a estruturação dos sistemas sociais que servem de suporte a "mundos sociais" constitui, segundo Habermas, a problemática fundadora das ciências sociais clássicas, pois tanto para Durkein quanto para Weber a socialização é o processo explicativo primordial, sendo que não há individualização sem socialização. Habermas, um dos teóricos da abordagem da socialização como “construção social da realidade”, considera que os dois sistemas estruturantes da identidade são a atividade instrumental ou estratégica, que estrutura os processos de dominação da natureza (trabalho), e a atividade comunicativa que estrutura a interação interindividual (e, portanto, sua identidade) por meio da prática lingüística. Assim a dialética motriz da socialização situa-se, neste entendimento, no vínculo entre trabalho e

interação, ou seja, entre os sistemas racionais em relação a um fim e os sistemas de poder e de legitimidade, de libertação e reciprocidade (DUBAR, 2005, p.99-102).

A importância dada à interação na definição do social e a recusa do entendimento da sociedade como uma totalidade unificada e funcional caracteriza toda uma tradição sociológica da qual Weber é o teórico mais fecundo. Para ele, a questão geral da socialização é indissociável das formas da atividade humana e, principalmente, dos modos de orientação de um comportamento individual em relação aos dos demais, pois a estrutura da situação de troca na socialização societária16 impõe a quem dela participa a adoção de um tipo de relações privilegiadas fundamentadas na busca ótima do interesse mútuo (DUBAR, 2005, p.107).

Mas foi Mead quem primeiro descreveu a socialização como construção de identidades sociais, na e pela interação com os outros, de forma complementar e não antagônica à abordagem de Piaget. Para este autor, a conversação por gestos está na origem de toda linguagem, comportando os dois aspectos de todo processo social: a reação adaptativa ao outro e a antecipação do resultado do ato social. O comportamento social seria então uma reação significativa ao gesto de outrem. Assim, na primeira etapa da socialização, a criança assume os papéis desempenhados por seus próximos, não os imitando passivamente, mas recriando por gestos organizados os papéis (conjunto de gestos que funcionam como símbolos significantes e associados para formar um personagem socialmente reconhecido). A segunda etapa acontece quando a criança se torna capaz de assumir a atitude dos demais do grupo com os quais se identifica, respeitando a organização vinda de fora, a partir da compreensão do outro. Finalmente, a terceira etapa consiste em ser reconhecido como membro do grupo com o qual a criança se identificou progressivamente. Este reconhecimento implica ser um ator que preencha no grupo um papel útil e reconhecido. Por um lado, é o "mim" (identificado pelo grupo) e por outro, o "eu" que reconstrói ativamente a comunidade a partir de valores particulares ligado ao papel que assume. Da união destas duas faces depende a consolidação da identidade social, ao que Mead denominou "Si-mesmo". Conforme Dubar, esta teorização tem o mérito de colocar a ação comunicativa no centro do processo de socialização e de mostrar que seu resultado depende das formas institucionais da construção do “Si-mesmo” e, principalmente, das relações comunitárias (e não apenas societárias) entre socializadores e socializandos (DUBAR, 2005, p.115). Berger e Luckmann (1985, p.173-195) foram quem, mais recentemente retomando e prolongando as análises de Mead, propuseram uma distinção interessante entre socialização primária e socialização secundária (esta segunda discutida mais adiante no tópico “socialização profissional”). Estes autores introduziram à análise da socialização primária a problemática dos

16 Um dos modos fundamentais de se relacionar com o comportamento dos outros, segundo Weber, orientado no sentido

de uma racionalidade em relação a fins, devido à vontade dos membros. O outro modo seria a socialização comunitária, que assume formas unificadoras e repousa sobre os pertencimentos (família, etnia e outros).

"saberes", afirmando que a socialização se define, antes de tudo, pela imersão dos indivíduos no "mundo vivido", que é um universo simbólico e cultural e, ao mesmo tempo, um saber sobre esse mundo. Assim, a incorporação deste saber no e com o aprendizado da linguagem (falar, ler e escrever) constituiria o processo fundamental da socialização primária, o qual depende essencialmente das relações estabelecidas entre a família e a escola (DUBAR, 2005, p.120-121).

Com base na análise da produção dos teóricos acima, Dubar (2005) elabora então a sua teoria sociológica da identidade, considerando que a socialização tem como produto o fenômeno

identitário. Conceitua identidade como sendo "o resultado a um só tempo estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural, dos diversos processos de socialização que, conjuntamente, constroem os indivíduos e definem as instituições" (p.136).

Trata-se, portanto, da construção de formas identitárias que articulam dois sentidos dos termos "socialização" e "identidade": a socialização relacional dos atores interagindo em um contexto de ação que produz as identidades para os outros e a socialização biográfica dos atores engajados em uma trajetória social que produz as identidades para si. Assim, as formas identitárias resultam de uma concepção de ator que se define a um só tempo pela estrutura de sua ação e pela história de sua formação. Em outros termos, a identidade pode ser traduzida tanto por acordos quanto por desacordos entre identidade "virtual", proposta ou imposta por outrem, e identidade "real", interiorizada ou projetada pelo indivíduo (...). Essa negociação identitária constitui um processo comunicativo complexo, irredutível a uma 'rotulagem' autoritária de identidades predefinidas com base nas trajetórias individuais e implica fazer da qualidade das relações com o outro um elemento importante da dinâmica das identidades (DUBAR, 2005, p.141).

Trabalho, emprego e formação profissional constituem áreas pertinentes das identificações sociais dos próprios indivíduos (produtos do processo de socialização secundária), mas a elas as identidades sociais não se limitam: já na infância, herda-se uma identidade sexual, étnica e de classe social. Mas é nas e pelas categorizações dos outros - e principalmente dos parceiros de escola (professores e colegas) que a criança vive sua experiência de primeira identidade social (produto do processo de socialização primária), conferida não somente pelos pertencimentos étnicos, políticos, religiosos, profissionais e culturais de seus pais, mas também pelo seu desempenho escolar. Dessa dualidade (identidade para o outro conferida e para si construída), mas também da identidade social herdada e da identidade escolar visada, se origina na infância, na adolescência e no decorrer da vida, todas as estratégias identitárias, entre as quais as de apresentação de si que podem ter grande importância no desenvolvimento futuro da vida profissional (DUBAR, 2005, p. 146-150).