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A classificação da faculdade que apresentou a maior área de expansão no modelo radiado nesta pesquisa como estando no segundo plano de profundidade em relação às mudanças no processo de formação em saúde é indicativa de que os cursos de Odontologia ainda têm um longo caminho a percorrer em direção a mudanças mais profundas, que sejam capazes de promover uma verdadeira transformação social. Segundo Feuerwerker (2002, p.291-292) os cursos precisariam investir não só no trabalho multiprofissional interdisciplinar e na efetiva integração do ensino e dos serviços – que já constituem importantes desafios, mas também na atuação inter-setorial, na efetiva articulação bio-psico-social, no controle social, na associação entre estudo e trabalho, e na transformação do poder em autoridade compartilhada. Assim, as mudanças poderiam ser não apenas técnicas e sociais, mas também políticas, o que corresponderia ao plano de maior profundidade de mudanças.

Toda esta análise está diretamente relacionada ao perfil do egresso, a função social das universidades, a capacidade de atuação autônoma, crítica, humanizada e cidadã dos profissionais, e tudo isto se relaciona à formação ética dos estudantes. Significa dizer que mudanças em geral na formação em saúde implicam mudanças na dimensão ética da formação profissional, e vice-versa. Mas não de forma proporcional, direta, senão vejamos: os cursos analisados estão em processo de mudanças, mas em níveis diferentes: o primeiro opera modificações mais superficiais e delimitadas no seu enfoque teórico e na abordagem pedagógica, que se expressam de forma pouco significativa no comprometimento com a formação ética dos estudantes (pontual com tendência a inexpressivo, ou mesmo inexpressivo); enquanto o segundo curso, que vai mais ao fundo na reforma curricular, encarando maiores desafios, compromete-se com a formação ética com uma maior intencionalidade e de forma mais significativa (seja ela considerada abrangente, ou mesmo, pontual com tendência a abrangente), porém, também “às custas” das alterações no enfoque teórico e na abordagem pedagógica.

Isto porque ambos os cursos deixam muito a desejar com relação à abordagem propriamente ética. Em outras palavras, a concepção de ética predominante ainda é a da postura profissional, mais relacionada às normas externas (etiqueta) que às internas (ética). Os docentes até têm consciência de que são modelos de atuação ética, mas de um modo em geral, não se dão conta da necessidade de incluir questões relacionadas em seus próprios planos de ensino. Nem mesmo aqueles que trabalham em disciplinas que têm como base a relação clínica que se estabelece entre sujeitos de diferentes moralidades e interesses. Os poucos docentes que sabem da importância, não sabem como fazê-lo.

A propósito, as próprias Diretrizes não expõem com clareza a questão do desenvolvimento das atitudes. Enfatizam os termos “competências e habilidades”, omitindo que por competência se entende um conjunto articulado de conhecimentos, habilidades, atitudes, comportamentos e experiências. Em outras palavras, para que um profissional seja competente em algo, deve desenvolver não só suas dimensões cognitivas e psicomotoras, mas também as afetivas. Assim, estaria justificado falar apenas em “competências” ou então, em “conhecimentos, habilidades e atitudes”, mas não em “competências e habilidades”. Além disto, apenas mencionam o desenvolvimento das atitudes em relação à formação geral (científico-cultural) e cidadã dos alunos, deixando-as de fora da formação profissional, como se possível fosse.

O desconhecimento de como operacionalizar esta dimensão da formação profissional acaba por manter a ética presente no currículo formal basicamente como mais um conteúdo, o qual abarca o exercício legal da profissão com ênfase na proteção profissional e corporativa, e com uma preocupação ainda recente quanto às questões éticas relacionadas a pesquisas científicas. Já a temática da Bioética e seus referenciais teóricos ainda nem estão presentes, possivelmente também

pela falta de formação docente na área. E tudo isto é válido para ambas as faculdades analisadas. É onde as experiências que, na primeira análise, mais superficial, pareciam tão distintas, quase opostas, encontram-se, equivalem-se. São as dificuldades notórias, as travas e amarras compartilhadas: o “lugar comum” da formação ética de nossos profissionais.

Evidentemente que esta percepção da realidade das faculdades analisadas não pode ser simplesmente generalizada para os cursos brasileiros. Aliás, generalizações implicam em redução da complexidade do real e por isso devem ser cautelosas. Sabe-se, por exemplo, que alguns cursos de graduação em Odontologia já incluíram a disciplina de Bioética em seus novos currículos, ainda que poucos (MUSSE et al., 2007). Mas esta limitação metodológica tampouco desmerece a aproximação das realidades pedagógicas tomadas como exemplo exatamente por parecerem muito distintas entre si na análise inicial. Ao indicarem a superficialidade do tema e da vivência ética em comunhão, estas faculdades nos permitiram ter uma noção da pequena amplitude e variedade de nossas ações quanto à dimensão ética da formação dos estudantes de Odontologia nas faculdades brasileiras. Resguardadas as especificidades e os momentos de cada curso, os maiores ou menores avanços em suas reformas curriculares, pode-se assim considerar que, em termos de conjunto, desenvolvemos uma formação ética bastante frágil, deficitária, pouco significativa e muito desafiadora, como melhor descreveremos no capítulo seguinte.

Em tempo, cabe uma ressalva quanto à consideração (p.140) de que o observado por Lampert (2002, p.251) seria possivelmente válido no caso desta pesquisa. Embora a faculdade pública tenha se mostrado realmente mais aberta, ela não confirmou a expectativa de que também seria mais crítica do seu “fazer”. Segundo a autora, sendo públicas, as faculdades consideram que dividem a responsabilidade com o Estado e a Sociedade, sentindo-se menos responsabilizadas, enquanto as particulares mostraram-se mais temerosas ao realizar sua autocrítica, tomando mais cuidado perante a opinião pública. Nesta pesquisa, a faculdade privada confirmou o maior senso de responsabilidade, mas também por ser mais autocrítica do que a faculdade pública.

Buscando-se responder ao questionamento introdutório – se mudanças no currículo formal representam perspectivas de mudanças na formação ética – poder-se-ia dizer então que, ainda que as alterações propostas para os novos currículos possam repercutir e mobilizar mudanças, avanços na formação ética, elas não serão suficientes. Há que se ir além. Há que se mudar as perspectivas. Mas uma análise acerca dos fatores relacionados à formação ética também no currículo oculto, que se revela no currículo efetivamente vivido, faz-se antes necessária, para então ponderarmos os desafios que precisamos assumir rumo ao perfil profissional idealizado.

6 – A FORMAÇÃO ÉTICA VISTA MAIS DE PERTO: REVELANDO O CURRÍCULO REAL

Os resultados apresentados neste capítulo são a síntese de todas as informações colhidas no campo de pesquisa e interpretadas à luz do marco conceitual construído, especialmente aquelas mais relacionadas aos fatores do currículo oculto que participam da formação ética dos estudantes de Odontologia. Significa dizer que o fio condutor da análise das relações interpessoais, dos modelos profissionais e das vivências acadêmicas e institucionais foi a ética – pensada, vivida, idealizada; a ética como a expressão dos valores, cuidados, desejos e atitudes que conformam a identidade profissional de nossos estudantes.

Nesse processo, as relações de poder, as lideranças, a organização, a cultura, os relacionamentos, os exemplos, os cuidados, os papéis, as contradições, enfim, várias questões que tomam parte no currículo oculto, interagem com as situações previstas no currículo formal, resultando no currículo que é o efetivamente vivido, ao qual se tem chamado de currículo real38. A partir da análise deste currículo vivo é que buscamos uma melhor compreensão sobre como se processa a dimensão ética da formação profissional.