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As escolhas profissionais femininas têm sido fortemente direcionadas para opções vinculadas ao cuidar e ao servir, assumidas pelo social e transmitidas para elas, como próprias à sua “natureza”. Porém, como vimos nas seções anteriores, as subjetividades, embora sejam efeitos de verdades produzidas no interior das diversas práticas – familiares, política, científica e pedagógica – não são inertes nem passivas. Elas representam uma síntese reelaborada dialeticamente do mundo externo e interno do indivíduo. Desta forma, é importante analisar como as mulheres têm dado novos significados a esses condicionamentos,

associados ao feminino pela nossa cultura, reportando-nos a Elizete Passos (1999) e Tereza Cristina Fagundes (2001), que realizaram estudos acerca da formação profissional oferecida na Faculdade de Filosofia e no Curso de Pedagogia da Universidade Federal da Bahia. Estas pesquisadoras confirmam que as posições hierárquicas, bastante fortes em nossa realidade, vêm definindo a escolha profissional feminina.

Elizete Passos (1999), ao analisar a intenção política do ensino desenvolvido na Faculdade de Filosofia, no período que vai de 1943 a 1970, identificou que esse Centro de Cultura tinha como principal objetivo instrumentalizar pessoas que, desinteressadamente, pudessem desenvolver altas atividades culturais e preparar profissionais para exercerem o cargo de professores do ensino médio e superior, além de formar pesquisadores capazes de realizarem pesquisas do interesse da cultura e do ensino. No que diz respeito ao primeiro objetivo, Elizete Passos (1999) desvela na palavra desinteresse o seu real significado, que pode ser traduzido por formar mulheres educadoras para o Ensino Médio. O alvo principal desta formação centrava-se nelas, justamente pelo fato de que o saber feminino representava um saber desinteressado social e economicamente, missionário, solidário e sem ambição profissional. Isto comprova que essa Instituição do saber, numa postura de não neutralidade, reproduzia a divisão hierárquica sexual do trabalho presente na sociedade. Quanto ao segundo objetivo, embora parecesse que, conforme a autora, a preparação para lecionar no ensino médio e superior correspondesse a atividades destinadas para os homens, devido ao seu grau de importância e atratividade, eles só assumiam cargos e lecionavam disciplinas de maior prestígio na hierarquia docente. Às mulheres cabiam, em maior incidência, as disciplinas da área de letras, pois o aprendizado de uma língua estrangeira sempre fez parte da sua formação, em especial aquelas de classe social mais alta, enquanto a pedagogia era iminentemente feminina, por ser considerada de menor valor e por ser um curso mais prático do que teórico.

Essas atitudes também reproduzem a crença existente na sociedade de que os homens, por dominarem a esfera racional e possuírem uma orientação pela via intelectual, estão mais

capacitados para lidarem com o saber mais elaborado e mais profundo. Para as mulheres, como são determinadas pelas emoções, movidas e orientadas pelos sentimentos, restam as atividades e disciplinas menos valorizadas, de menor reflexão teórica e responsabilidade. Essas ocupações, por serem menos qualificadas, representam também um menor retorno econômico.

O ato de cuidar tem sido considerado como inerente à mulher, historicamente definida como portadora de uma essência biológica e psicológica voltada para a nutrição, o zelo, a ajuda, a direção, a adaptação, a promoção, a meiguice, a docilidade, a dedicação e a disposição, cabendo a ela apenas as profissões que representem uma extensão da sua maternidade.

De acordo com Suzan Bordo (1997, p.25), são justamente as concepções domésticas de feminilidade apregoada pela nossa cultura que provoca

[...] amarras ideológicas para uma divisão sexual de trabalho rigorosamente dualista, com a mulher como principal nutridora emocional e física. As regras dessa construção de feminidade (e falo aqui numa linguagem tanto simbólica como literal) exigem que as mulheres aprendam como alimentar outras pessoas, não a si próprias, e que considerem como voraz e excessivo qualquer desejo da auto-alimentação e cuidado consigo mesmas. Assim, exige-se das mulheres que desenvolvam uma economia emocional totalmente voltada para os outros.

[...] o controle do apetite feminino é meramente a expressão mais concreta da norma geral que rege a construção da feminidade, de que a fome feminina – por poder público, independência, gratificação sexual – deve ser contida e o espaço público que se permite às mulheres deve ser circunscrito, limitado.

É com esta leitura hierárquica de contexto, onde o homem no processo educativo, de maneira ampla, é considerado como superior à mulher, que Elizete Passos (1999) analisou a educação de gênero efetivada na Escola de Filosofia. Para a autora, neste espaço público de ensino foi difícil para as mulheres, tanto discentes quanto docentes, se imporem, por serem espaços educacionais superiores, até então considerados como pertencentes ao sexo masculino.

Tereza Cristina Fagundes (2001) observa que o curso de Pedagogia, no período analisado, que se estende de 1969 a 1999, não se constituiu num lugar privilegiado de questionamentos e reconstrução de conceitos sobre as relações hierárquicas de gênero. Pelo contrário, ele serviu durante muito tempo à manutenção de estereótipos em relação ao papel social da mulher como o de maternar, cuidar e servir, entre outros, que consolidaram a identidade feminina. Para a autora, o acesso a esse curso, para a maioria das mulheres, demonstra que, na sociedade, ainda perdura uma formação diferenciada para o sexo masculino e feminino. É ilusória, neste sentido, a oferta de oportunidades iguais para os dois sexos, tanto na educação quanto no trabalho, pois as gerações mais novas continuam buscando áreas consideradas como próprias do sexo feminino, ao fazerem suas escolhas profissionais.

As escolas brasileiras de Serviço Social, nosso objeto de estudo, também foram criadas com a intenção de desenvolver um modelo de trabalho social baseado nos princípios de solidariedade e de caridade cristã, conforme veremos no próximo capítulo. Como as mulheres ocuparam ao longo da história na sociedade as funções de cuidar dos doentes, dos pobres e dos marginalizados sociais, elas foram incentivadas a assumirem esta profissão. Desta forma, as qualidades de abnegação e passividade, consideradas como inerentes à natureza feminina, puderam ser utilizadas cientificamente. Este modelo de trabalho social foi fortemente carregado de uma concepção paternalista definida pela ideologia burguesa, aceitando valores como o da racionalidade em detrimento da emotividade, assumindo uma posição ideológica de neutralidade.

Em relação à competitividade feminina, não podemos esquecer, entretanto, que além dos fatores educacionais, políticos, econômicos e religiosos, responsáveis pela dificuldade do desenvolvimento deste traço, algumas mulheres têm contribuído, de uma certa forma, para permanecerem em posições hierárquicas inferiores, na profissão, na família e na vida afetiva. Vários fatores podem ser responsabilizados por esta atitude como: falta de auto-estima;

sentimento de inferioridade; personalidade dependente; tarefas domésticas internalizadas como exclusivamente de sua responsabilidade etc.

É no sentido da anuência da mulher em relação a sua submissão que Gabriela Castellanos (1996) propõe uma revisão e um redimensionamento do termo patriarcado, acrescentando que a hierarquia do varão se deve, em parte, em muitas ocasiões, à conivência e cumplicidade da mulher e não a uma inocente ou impotente vitimização dela. Esta cumplicidade, nem sempre consciente, possibilita o deslocamento das tarefas domésticas exercidas pelas mulheres nos espaços privados do lar para os espaços públicos profissionais. Mais uma vez, é delegado e assumido por elas, aquilo que os homens não querem fazer.

Em nossa pesquisa, procuramos também investigar os valores referentes ao papel feminino e sua relação com a escolha profissional apontados por Elizete Passos (1999), na Escola de Filosofia, e por Tereza Cristina Fagundes (2001), ao estudar o Curso de Pedagogia, através de questionamentos feitos às alunas de Serviço Social sobre o fato desta profissão ser escolhida, majoritariamente, por mulheres. Isto porque, concordamos com essas autoras, ao afirmarem que o conteúdo do que trocamos, do que ensinamos na educação de nossos filhos e de nossos alunos e alunas na sala de aula pode estar pleno de valores doutrinários da ideologia dominante oficial, branca, burguesa, jovem e masculina.

Como esta ideologia sempre utilizou posturas epistemológicas baseadas no cartesianismo, privilegiando e colocando num patamar superior o modo de conhecimento racional, neutro e objetivo, tidos como próprios do jeito inato de conhecer masculino, em detrimento do modo de conhecimento intuitivo, afetivo e subjetivo, considerados como inerente e característico da natureza feminina, propomos que essas instâncias sejam levadas em conta, no processo de aprendizagem, não como opostas, mas sim como indissociáveis para um conhecimento mais total e fidedigno da realidade. Neste sentido, defendemos um espaço de reconhecimento para as emoções relacionadas ao aprendizado do papel profissional, no espaço acadêmico.