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4 O ILÊ AXÉ OXUM DEMUN E A CIDADE DE ALEGRETE

4.1 FORMAS DE ORGANIZAÇÃO E REPRESENTAÇÃO DO GRUPO

Conforme dito anteriormente, o Batuque chega em Alegrete no final dos anos 1960. Uma década após essa chegada (entre final da década de1970 e ao longo da década de 1980), houve um grande crescimento do número de terreiros de Batuque e de Umbanda em Alegrete, conforme contam Airton e Carlos.

Para atender a uma comunidade religiosa que estava começando a ganhar maior vulto, um grupo de líderes de terreiro de Batuque e de Umbanda uniu-se para formar uma associação similar àquelas que já existiam nos grandes centros urbanos do país desde a década de 1940 (OLIVEIRA, 2008), a exemplo da Afrobrás de Porto Alegre. Foi assim que a AURAFA (Associação de Umbanda e Religião Africana de Alegrete) foi fundada em 27 de agosto de 1981.

Os pioneiros da AURAFA se organizavam em torno do terreiro de Mãe Eunice de Oxum, que hoje pertence à sua filha carnal, Mãe Tita, situando-se no mesmo local (Rua Planalto, travessa da Avenida Liberdade nº 116, bairro Coxilha). Mãe Eunice é mencionada como uma referência por várias lideranças de terreiro da atualidade, pois sua autoridade e experiência eram respeitadas também fora de seu terreiro. O primeiro presidente da AURAFA foi seu genro, Scylla Orguissa, que era também filho do seu terreiro. Outros também se somaram à causa da AURAFA, inclusive um dos ex-prefeitos da cidade, Nilo Soares, que compunha o corpo jurídico da Associação.

O principal interesse da AURAFA eraa representação da comunidade de terreiro frente ao poder público, mas a associação também desenvolvia atividades doutrinárias, como palestras, nas quais autoridades religiosas de outras cidades eram convidadas para expor seus conhecimentos. Muitas dessas autoridades tinham ligação com a Afrobrás de Porto Alegre, associação à qual a AURAFA era vinculada institucionalmente.

A AURAFA já organizou inclusive viagens, como no caso do dia de Yemanjá (dois de fevereiro). Nas décadas de 1980 e 1990, Mãe Tita diz que costumavam fazer viagens às praias do litoral gaúcho, para que os filhos de terreiro de Alegrete pudessem homenagear a rainha das águas salgadas em seu reino. Também eram feitas procissões públicas na cidade de Alegrete no dia de Yemanjá e no dia de Ogum (23 de abril). Essas e outras atividades de fins religiosos ou de confraternização eram financiadas pelos membros da AURAFA, que pagavam uma anuidade, e também através da imagem de Xangô Peregrino, que era levada de terreiro em terreiro coletando donativos. A procissão de Xangô peregrino era feita no dia 30 de setembro, quando a imagem de Xangô era levada pela cidade no caminhão dos bombeiros.

A AURAFA chegou ao fim no final da década de 1990 devido à desistência de muitos membros e por dissidências em sua diretoria. Tive a oportunidade de conversar com o presidente Scylla Orguissa, enquanto este ainda era vivo, no ano de 2012, quando fazia meu TCC de especialização. Ele me mostrou diversos tomos do seu acervo de livros sobre Umbanda, Candomblé, Batuque, Espiritismo e religiões orientais. Permitiu-me fotografar as antigas atas da AURAFA e me mostrou os planos inconclusos que ele ainda guardava, esperançoso de que alguém pudesse dar continuidade futuramente, como uma sede recreativa que seria construída no Bairro Assunção.

Como se vê, a AURAFA desempenhava um importante papel na vida dos filhos de terreiro em Alegrete. Ela publicizava as ações dessa comunidade, levando-as para fora dos muros dos terreiros, o que lhes dava, além de representatividade, visibilidade perante a sociedade. Esse fato me chama a atenção, pois muitas vezes, quando estou explanando o conteúdo da minha pesquisa para pessoas da minha cidade, uma das primeiras indagações é: “mas Alegrete tem muitos terreiros?”. E quando eu respondo que apenas os terreiros com alvará da Afrobrás totalizam 82, as pessoas realmente se impressionam. Percebo que algo ocorreu entre o fim da

AURAFA e os dias de hoje. Algo que reduziu a visibilidade dessa religião, pois, em comparação com os relatos e registros da AURAFA, hoje existem significantemente menos ações públicas do povo de terreiro.

A Afrobrás, que foi fundada em 5 de outubro de 1973, ainda hoje é uma das maiores organizações relacionadas ao culto afro-brasileiro no Rio Grande do Sul. Embora existam federações regionais, como a Aruanda de Uruguaiana, e internacionais, como a Afroconesul, a Afrobrás ainda é a mais difundida nos terreiros de Alegrete. Ela oferece aos terreiros, basicamente, um apoio jurídico nas questões tocante à lei do silêncio (as chamadas licenças de toque) e também em casos de intolerância religiosa. Porém, esses direitos já são garantidos constitucionalmente, como exemplo a criação da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (Decreto federal nº 6.040/2007) e do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (Decreto federal nº 8.750/2016). Mesmo assim, alguns batuqueiros e umbandistas acreditam que, caso seus terreiros não possuam um alvará, seja da Afrobrás ou de outra federação, esses direitos lhes serão tirados.

Na realidade, a Afrobrás dá um acompanhamento jurídico profissional para a defesa desses direitos que são inalienáveis. Não é minha intenção me posicionar contrário à presença da Afrobrás nos terreiros, muito pelo contrário, mas um fato que percebo é que há um imaginário nos terreiros defendido por muitos líderes religiosos que os tornam reféns da necessidade de ter o alvará em dia, temerosos de que sem ele seus terreiros possam ser fechados pela prefeitura ou pela polícia. Nos tempos dos mais velhos, havia a experiência e a vivência de que os direitos não eram universais aos Batuqueiros e Umbandistas, então, a Federação vinha dar amparo diante de uma sociedade ambígua que usa o terreiro para suas demandas, mas que os acusa de magia negra e de práticas antiecológicas.

Informar a comunidade de terreiro da cidade de Alegrete acerca de seus direitos é uma das frentes de ação de uma iniciativa recente e que vem demonstrando bastante sucesso. Falo do Conselho do Povo de Terreiro do Município de Alegrete (CPTMA), que, dentre outras incumbências, vem conscientizando a comunidade de terreiros da cidade, pondo-a a par de seus direitos. Além disso, o CPTMA também tem desenvolvido um trabalho de mediação entre o povo de terreiro e o poder público.

O movimento político que deu origem ao CPTMA teve início em 2014. Por uma iniciativa do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, foi emitido o decreto nº 50.932/2013, que criava o Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul e convocava as cidades à criação de conselhos municipais. Na Fronteira Oeste, apenas Alegrete, Uruguaiana e Santana do Livramento atenderam a essa convocação.

Quando o estado lançou o referido decreto, eu era assessor pedagógico da Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Alegrete. Fui incumbido juntamente com outro servidor da prefeitura, Clodoaldo Rodrigues57 (diretor do CAPS II, ligado à

Secretaria de Saúde de Alegrete), para organizar a Criação do Conselho Municipal. O secretário de Educação e Cultura, que na época era o Professor Jorge Sitó, indicou meu nome por conhecer a minha trajetória de pesquisa nos terreiros da cidade. Com essa incumbência em mãos, Clodoaldo e eu (juntamente com alguns líderes de terreiro do nosso círculo de convivência) criamos um grupo que se encarregaria da criação do CPTMA, que chamávamos de Comitê do Povo de Terreiro do Município de Alegrete. Dessa forma, começamos a mobilizar o povo de terreiro da cidade, fazendo contatos e convidando as lideranças para reuniões, nas quais explicávamos a relevância política desse tipo de iniciativa. Fomos muito bem recebidos pela grande maioria dos mais de trinta terreiros contatados. Destes, apenas treze terreiros acompanharam o processo até a criação do CPTMA em 18 de setembro de 2015, por meio do decreto nº 374/15. Isso nos impressionou bastante, pois, desde a extinção da AURAFA, ainda não havia acontecido tamanha organização entre os terreiros da cidade.

Atualmente, o CPTMA não é o único meio de organização do povo de terreiro de Alegrete. Existe ainda a Afroconesul, que tem bastante popularidade no Estado do Rio Grande do Sul e também nos vizinhos Uruguai e Argentina. Porém, as atividades da Afroconesul são de natureza diferente do CPTMA, como diz no próprio endereço eletrônico da entidade:

Uma entidade dinâmica na sua publicação de marketing diferenciado que facilita as suas qualidades em suas palavras permitindo com qualidade a nossos afiliados e buscando um aperfeiçoamento contínuo em tudo o que

57 Também conhecido como Clodoaldo de Oxalá, que além de funcionário público é filho de santo

iniciado no terreiro de Mãe Eth de Bará Agelú. Ele também é mestre de capoeira na Associação de Capoeira Arte Sem Fronteiras (ACAF).

fazemos, a fim de alcançar excelente trabalho junto a Sociedade Africanista (Afroconesul, online)58.

Por esse motivo, o CPTMA atua como principal representante do povo de terreiro da cidade no tocante à representatividade política e luta pela efetivação das políticas públicas. Nas seções seguintes,relato casos de como o CPTMA se fez presente e quais avanços foram conquistados, tanto na luta para derrubar projetos de lei que lesariam a comunidade de terreiro quanto fazendo o papel de tradutor entre o povo de terreiro e o poder público.